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Artigo publicado na edição nº 3 de julho de 2005.
Conflitos Sexuais, Medicina e Direito: Piracicaba nos Primeiros Tempos da República

Daniela Meira Cotrim

Meu querido predileto
João[*1] você não fique zangado comigo hoje nós precisamos ir à cadeia.
Você não me abandone que não deixo ficar preso. João pelo amor de Deus você não me deixe que eu queria e quero bem você peço, por favor, você não me abandone que eu te salvo da prisão hoje se eu não te salvar é bem capaz de você ficar preso. Por isso você não deixe de mim que te salvo. E vamos fazer as pazes outra vez que eu não deixo você ficar preso. Não me abandone João pelo amor de Deus.
Ana Maria de Carvalho[*2]

Essa carta, escrita por Ana Maria de Carvalho em 1917, poderia ter sido encaminhada a João Couto, se a polícia não a tivesse tomado como parte integrante do processo aberto contra o referido, acusado de crime de defloramento. A prática descrita nesse documento histórico nos permite afirmar que as denúncias desse tipo de crime sexual eram recorrentes entre a maior parte da classe trabalhadora de Piracicaba, que se envolvia em conflitos sobre sexualidade no período abordado.

Além de ser algo recorrente na sociedade piracicabana dessa época, os crimes de defloramento eram tema de debates científicos e jurídicos, que preocupavam os profissionais da saúde e da justiça, principalmente em função do seu ideário civilizatório direcionado ao Brasil. Essa elite intelectualizada pretendia auxiliar o Estado brasileiro no desenvolvimento de políticas de controle social, pautadas pela noção de que o Brasil deveria ingressar na modernidade tendo como parâmetro a civilização européia, que tinha na defesa da família a sustentação das nações ditas civilizadas. Para proteger as famílias brasileiras da barbárie, a elite criou mecanismos, inclusive no campo da lei, que pudessem reprimir comportamentos concebidos como imorais.

Conflitos como o de João Couto e Ana Maria de Carvalho eram tidos como objeto de ciência por essa elite. Entretanto, nesse texto, objetivamos ressaltar as ações desses atores sociais que, em grande medida, contrariavam as exigências morais da sociedade expressas na lei. A partir da análise de dezoito processos criminais pertencentes ao Fórum da Comarca de Piracicaba e localizados no Centro Cultural Martha Watts da Unimep, buscamos desenvolver uma discussão sobre as relações entre médicos, juristas e instituições republicanas no que se refere aos conflitos sexuais desencadeados em Piracicaba nas primeiras décadas do século XX.

Porém, mais importante é enfatizar as representações que os diferentes sujeitos históricos elaboravam sobre a sexualidade e em que medida essas representações eram remetidas ou não à lei ou dela se distanciavam, afirmando outros valores morais. Eram diversos os motivos que levavam esses indivíduos a recorrer à justiça; era um verdadeiro mecanismo estratégico para a realização do casamento ou de outros objetivos. Em suma, nosso propósito é estabelecer um diálogo entre as fontes históricas e a historiografia sobre o tema, ressaltando a problemática das relações de gênero, classe social e poder no período em questão.

Os valores morais há muito eram tidos como objetos de ciência. Os filósofos enciclopedistas do século XVIII já se preocupavam com a definição de parâmetros de conduta moral direcionados aos indivíduos pertencentes à sociedade da época. O conhecimento era concebido a partir da racionalização do pensamento religioso que representava – segundo alguns iluministas, como Diderot e D’Alembert –, o atraso da civilização. A maior inquietação desses ilustrados era determinar as bases da moralidade numa sociedade na qual a religião, de acordo com alguns estudiosos, já não era considerada capaz de orientar o progresso europeu.[*3] A ciência, nesses termos, durante todo século XIX, objetivou responder às indagações dos iluministas, institucionalizando a produção do conhecimento. Foi no espaço acadêmico que essa problemática se desenvolveu com maior intensidade.[*4]

Os setores intelectualizados da sociedade brasileira, que formavam a elite científica, mobilizaram-se a fim de estabelecer medidas de controle social, formuladas a partir de princípios morais. A repressão sexual em relação à classe trabalhadora de Piracicaba é um exemplo desse controle social. No Brasil, a tradição cristã, os ideais iluministas do século XVIII e os ideais cientificistas do século XIX conviveram harmonicamente no processo de definição da honra como valor social. Os juristas e os médicos brasileiros buscavam se instrumentalizar do conhecimento científico, sustentando, no caso de crimes de defloramento, meios para averiguação dessa prática sexual ilícita e moralmente condenável.[*5]

Os defloramentos praticados em Piracicaba, no início do século XX, eram julgados por essa elite a partir da prova material do crime: a virgindade feminina. Porém, esse critério não era objetivo, pois o que estava em questão era a avaliação do comportamento feminino, que poderia ser considerado honesto ou desonesto. Na maioria dos processos analisados, os juristas objetivavam moralizar as famílias da classe trabalhadora piracicabana. A justiça era um recurso propício para os propósitos dessas famílias: promover o casamento para reparar o mal causado. Mas, o casamento era efetivado se a condição social e a honestidade feminina fossem quesitos favoráveis à ofendida.

No caso do defloramento de Sônia de França e Souza, a preocupação jurídica com a moralização das famílias é evidente, vejamos:

Há ainda nos autos prova exuberante de que Sônia era noiva e tinha já casamento marcado com Rafael da Silva. Essas provas são os depoimentos das testemunhas e principalmente a certidão fornecida pelo cartório do Registro Civil (...).
As testemunhas todas atestam o bom comportamento de Sônia e todas afirmam que Sônia e Rafael eram namorados de muito tempo; fato aliás, público e notório no bairro em que residem (...).
Acreditamos na culpabilidade de Rafael da Silva (...). A sua própria atitude fugindo no dia e pouco antes da hora marcada para o seu casamento, o denuncia.[*6]

Esses crimes ocorriam, em grande medida, a partir de promessas de casamento feitas pelo homem à mulher e/ou a sua família, servindo como argumento para o consentimento da mulher à relação sexual. A presença de valores morais definidos socialmente era tema de divergências entre os juristas, entretanto, a moral cristã e a cientificidade eram mecanismos que estabeleciam modelos de análise do atraso brasileiro em relação às nações européias, sendo a honestidade feminina o símbolo da civilização.

Nas décadas de 1920/1930, as divergências e os debates entre os juristas se acentuaram. Em Piracicaba, as mulheres envolvidas nos processos já não apresentavam comportamentos condizentes com a moral tradicional. A moralização e a modernização das famílias brasileiras eram os objetivos que deveriam ser conquistados por essa elite intelectualizada e, para isso, era mister empreender medidas de higienização moral dos indivíduos aptos ao casamento para constituição de famílias civilizadas. O elemento material do crime de defloramento – a virgindade feminina –, não era mais considerado prova da honestidade da mulher, mas o comportamento moral cerceado pelos padrões estabelecidos socialmente. As mulheres que se aproximavam de um comportamento “moderno” representavam, para essa elite intelectualizada, uma ameaça aos valores da família e da civilização, pois sua liberdade era tomada como enfrentamento aos valores morais.

O caso amoroso entre Ana Maria de Carvalho e João Couto nos auxilia no entendimento da relação dos juristas com o comportamento “moderno” de algumas mulheres. O discurso do advogado de defesa do acusado elucida essas questões:

No caso, se Ana Maria de Carvalho, com 18 anos de idade, permitiu, livremente, que o acusado João Couto a deflorasse – exercitou um direito seu, podia assentir na sua desonra.
Se, arrependida, depois, suplica o auxílio da Justiça – esta, quando muito, poderá lastimar. Nada mais poderá fazer, como nada poderia fazer a uma pessoa capaz, que se arrependesse de uma transação mercantil. (...)
A vítima não era honesta. Tinha mau comportamento; andava em companhia de prostitutas; tivera relações sexuais com as testemunhas Ignácio Lima e Francisco Ramos, como eles próprios afirmam; tivera relações sexuais com muitos estudantes. (...)
Andava em companhia de mulheres de vida alegre. E a carta, que consta dos autos, dirigida pela vítima ao acusado, fala bem alto da sua sagacidade e esperteza.[*7]

Em virtude das diversas interpretações acerca da honestidade feminina, os juristas tinham dificuldade em definir parâmetros de boa conduta para essas mulheres. A moralidade defendida pelos juristas e alguns acusados no período indica que aos homens era permitido o relacionamento com várias mulheres enquanto, em contraposição, esse comportamento, quando praticado por mulheres, era tido como desonesto. Os depoimentos das testemunhas revelam a desigualdade e a hierarquização das relações de gênero, pautadas pela defesa da honra feminina e pela ênfase na vigilância familiar, favorecendo o emprego das normas sociais compatíveis com a legislação e jurisprudência do período.

Em Piracicaba, nas primeiras décadas do século XX, a maioria das “mulheres modernas” não consumava casamentos. O “mau comportamento” indicava imoralidade, questão fundamental para o impedimento de uniões formais. O rompimento com esse tipo de disciplina demonstra que as mulheres não podem ser vistas como vítimas, de acordo com a visão do Estado, que buscava intervir nas relações de gênero para evitar que a modernidade trouxesse perigos à honestidade feminina. As mulheres de vida “moderna” faziam escolhas pessoais, e no seu cotidiano, apresentavam comportamentos que, às vezes, contrariavam os valores morais defendidos por essas personagens, instrumentalizando seu discurso a fim de conquistar seus objetivos.

O embate entre a posição tradicional e a tendência modernizante de alguns juristas nos oferece elementos para afirmar que os conflitos sexuais entre homens, mulheres e demais personagens envolvidos nos processos eram complexos. As mulheres “modernas” possuíam um comportamento não condizente com os valores sociais sustentados pela elite brasileira. Em Piracicaba, no início do século XX, as mulheres apresentavam diversas representações quanto à sexualidade que, ora se aproximavam, ora se distanciavam das concepções morais dos diferentes sujeitos históricos presentes na trama judicial. A justiça se apresentava como uma complexa área de enfrentamento e os atores sociais se apropriavam de discursos jurídicos e médicos, resignificando-os com sentidos muitas vezes contrários à normatividade dominante no campo da moralidade. Eram múltiplas as interpretações e, por conta disso, as mulheres não reproduziam a lei.

Bibliografia

AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra João Couto, caixa 6-B, 1917.
AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra Rafael da Silva, caixa 11-A, 1926.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
DARNTON, Robert. Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie. In: O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
HOBSBAWM, Eric. A ciência. In: A era das revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
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Graduou-se pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Atualmente é professora de História na Escola Estadual Romana Cunha em Santa Bárbara D’Oeste e desenvolve projeto de mestrado em história social da cultura.
E-mail para contato: daniela-cotrim@ig.com.br
Os processos-crimes citados nesse texto contam com nomes fictícios.
AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra João Couto, caixa 6-B, 1917.
DARNTON, Robert. Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie. In: O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, pp. 247-270.
HOBSBAWM, Eric. A ciência. In: A era das revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 301-320.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra Rafael da Silva, caixa 11-A, 1926.
AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra João Couto, caixa 6-B, 1917.