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Artigo publicado na edição nº 3 de julho de 2005.
Discursos Intolerantes:
O Lugar da Política na Educação Rural e a Representação do Camponês Analfabeto

Claudia Moraes de Souza

A década de 50 e os princípios dos anos 60 testemunharam o surgimento, em todo o continente americano, de um conjunto de iniciativas em educação de adultos e capacitação de um amplo contingente de trabalhadores que, naquele momento, compunham as surpreendentes estatísticas que revelavam os altíssimos índices de analfabetismo e baixa escolarização da população latino-americana. Neste contexto, a Educação Rural ganhou importante dimensão, gerando um conjunto de ações e projetos educacionais relacionados à capacitação individual e formação agrícola do trabalhador rural, que se espalharam pelos territórios americano e brasileiro.

Este artigo trata da educação de trabalhadores rurais, buscando resgatar os preceitos dos projetos e das políticas públicas em Educação Rural e suas perspectivas políticas e culturais intolerantes. Em nosso entender, a construção conceitual acerca do analfabeto e do homem do campo, nos moldes da Educação Rural da década de 50, revela a intolerância aos valores sociais e ao modo de vida do homem rural, ou seja, um projeto de subordinação da cultura popular à cultura moderna.

A representação elaborada acerca do camponês revela-nos a rejeição do arcabouço cultural do adulto analfabeto rural, concebendo-o como ícone do atraso econômico brasileiro e identificando-o como um empecilho à plena realização do desenvolvimento econômico necessário ao ingresso do território campestre na modernidade pretendida pelo processo capitalista. A forma intolerante de representação do camponês revela, na verdade, o lugar político que o Estado e as classes dominantes definiram para este grupo social na integração de excluídos ao projeto modernizador brasileiro. Propomos assim, um resgate das representações construídas acerca do analfabeto rural e uma discussão da intolerância cultural e política revelada no conteúdo da Educação Rural.

Historicamente, as iniciativas acerca da Educação Rural brasileira não despontaram unicamente na década de 50. A difusão do ensino elementar entre adultos, com o intuito de promover a alfabetização em massa, tanto no campo quanto na cidade, teve uma primeira visibilidade nacional no período imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial. Uma onda de diferenciados “nacionalismos” e fortes preocupações com as questões da “ordem social” levou a discussões da necessidade de combate ao “mal do analfabetismo” entre imigrantes, migrantes das cidades e a imensa população rural brasileira, estimulando ações voluntaristas de diferentes entidades representativas da sociedade – as ligas católicas, as ligas nacionalistas, o Exército Nacional – que, naquele momento, empreenderam ações de combate aos elevados índices estatísticos de analfabetismo de adultos, sem que, no entanto, estas ações atingissem repercussões eficazes sobre o problema.

Até as duas primeiras décadas do século XX, podemos dizer que o debilitado processo de industrialização brasileira alimentava as características de um país rural em que a educação do homem do campo vinculava-se à fixação deste indivíduo à terra. Nas décadas de 10 e 20, a fixação do homem na terra era objetivo de parcas políticas educacionais – orientadas por concepções teóricas denominadas “ruralismo pedagógico”.

Em meados dos anos 20, passamos a perceber que um movimento reformador e modernizador da educação começava a se formar a partir das ações dos chamados “pioneiros da educação”. Este movimento, nas décadas seguintes, irá refletir-se nas ações governamentais e em políticas públicas implementadas pelos pioneiros do sistema educacional do país – dentre eles, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Sampaio Dória. Podemos dizer que, apenas com o Governo Vargas foi que, pela primeira vez, um conjunto de políticas públicas convergentes permitiram a configuração do que poderíamos chamar de um sistema nacional de educação. Neste contexto, as perspectivas urbanas e industrializantes da Era Vargas evidenciaram para o Estado brasileiro a necessidade de uma intervenção orgânica no campo como função retificadora das debilidades da economia rural e, conseqüentemente, do homem rural, potencialmente transformado em mão-de-obra migrante carente de qualificação profissional.

Com o advento da Segunda Guerra Mundial, a difusão do ensino elementar nos países pobres – em especial a educação de jovens e adultos e a Educação Rural – sofreu acentuado processo de mudança. O contexto surgido da Guerra acirrou a centralidade pretendida pelos EUA no controle do pólo capitalista mundial, ao mesmo tempo em que informou ao mundo as fragilidades do sistema capitalista: pobreza, miséria social, analfabetismo, mortalidade infantil, fome, etc. A necessidade urgente de consolidação da democracia liberal representativa colocou o controle político-ideológico da América Latina como elemento fundamental do evento da bipolarização ideológica. As condições reveladoras do subdesenvolvimento e das desigualdades sociais entre os países ricos e a África, a Ásia e a América Latina foram irrestritamente condenadas, o que transformou os problemas do desenvolvimento desigual do capital, tais como a fome, a mortalidade infantil e o analfabetismo em “males” a serem combatidos acirradamente diante do “atraso” econômico da região. Desta maneira, a escolarização da população dos países pobres transformou-se em panacéia de organismos internacionais como UNESCO, OEA e CEPAL.

A cooperação internacional apareceu como paradigma central das nações, que passaram a se “responsabilizar” pelo combate aos “males do atraso”. No campo educacional, diferentes atitudes cooperacionistas foram incentivadas pelos organismos internacionais em consonância com governos nacionais, como os do Brasil, do México, do Peru, da Venezuela, da Colômbia, dentre outros. O Projeto Principal para a América Latina e os Seminários Interamericanos de Educação, no quadro geral das atitudes cooperacionistas e reformadoras da realidade local, foram pontos de partida para a reorganização dos sistemas nacionais de educação, para o combate ao analfabetismo , para a ampliação dos níveis de escolarização e para a elaboração dos preceitos da educação das populações rurais e indígenas da América Latina.

Em 1949, o Brasil foi escolhido como sede do Seminário Interamericano de Educação, devido ao acúmulo de um conjunto de iniciativas em educação de adultos de consumada significação no continente: o constante debate de idéias promovido pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP – fundado e dirigido por Lourenço Filho; a Campanha Nacional de Construção de Escolas Rurais; e, principalmente, a grande Campanha Nacional de Educação de Adultos e Adolescentes – CEAA – que, em 1947, transformou o país em referência internacional em matéria de alfabetização de jovens e adultos.[*1]

Em se tratando da Educação Rural no Brasil, o Seminário Interamericano de Educação, promovido pela UNESCO e pela OEA em 1949, com sede no Rio de Janeiro, configurou-se como momento de reflexão, planejamento e sistematização de diretrizes que projetaram o conjunto inicial de práticas em Educação Rural estendidas pelos anos 50. Para nós, a busca das idéias originais do Seminário se faz importante na medida em que o entendimento dado ao problema do analfabetismo rural revela, na verdade, o uso político da educação num projeto interventor e intolerante.

Como objetivo geral, o Seminário estabeleceu para si o compromisso com a construção de uma “nova vida internacional”, com formação de uma “cultura americana”, com a estruturação política e econômica do continente, com a convivência civil e a participação democrática de todos no bem estar geral, além do compromisso central, que era o da incorporação das massas indígenas e rurais à vida nacional e o “cumprimento da missão histórica da América em construir uma pátria aberta a todos os perseguidos da terra”.[*2]

A Educação Rural e Alfabetização de Adultos foram definidos como projetos de integração social, e o objetivo explícito era o da assimilação do indivíduo ou do grupo isolado (comunidades camponesas ou indígenas) “à cultura comum através da habilitação do adulto para atuação de forma construtiva na vida social”.[*3]

Desta forma, o analfabetismo das populações indígenas e camponesas da América Latina foi visto como um empecilho à realização da missão histórica do continente, que, para os idealizadores do Seminário, seria o da “cooperação internacional” e construção de uma “cultura americana”.[*4] Curioso foi notar também que o analfabetismo, nas concepções apresentadas pelos relatores do Seminário, seria um problema massivo devido à postura do próprio analfabeto, na medida em que a causa apontada como principal para os altos índices estatísticos foi o ausentismo, ou seja, a não freqüência à escola por parte da população analfabeta. O nível de vida das populações foi apontado como problema a ser enfrentado. No entanto, vencer o ausentismo – resistências da população à escola – seria o ponto principal da luta contra o analfabetismo.

Como finalidades da Educação Rural e da alfabetização, o homem do campo deveria ser integrado ao meio social por meio de ações solidárias e cooperativistas e pela divisão do trabalho. Estudos da língua; estudos econômicos e sociais (as leis, o cooperacionismo); estudos da educação cívica (condutas sociais no trabalho, na família, no sindicato, etc.) e estudos da educação recreativa (com o papel de enobrecer o ócio) deveriam fomentar e direcionar as relações sociais do educando. Além disto, a formação técnica para o trabalho teria a finalidade de dar ao indivíduo “um status construtivo na sociedade”, adaptando-o às técnicas agrícolas modernas.

A partir da análise das proposições do Seminário, nossa idéia central é a de que a Educação Rural – concebida como um projeto modernizador pelo pensamento conservador – foi parte de um mecanismo de intervenção sobre processos sociais e políticos em curso, quais sejam: a atualização histórica proposta pelo pacto burguês capitalista de modernização do Estado e do território brasileiro[*5] concomitantemente à irrupção, no campo, de um conjunto de manifestações e ações coletivas contestatórias do iminente processo de expulsão da terra ou da perda de direitos de trabalhadores rurais na exploração da terra para sobrevivência familiar.

Assim, a Educação Rural relaciona-se à história do país, ou, ainda, do continente, como produto de uma nova dinâmica do capitalismo em desenvolvimento que desafiava o pólo modernizador a agrupar uma estrutura agrária caracterizada, dentre outras coisas, pelo predomínio do latifúndio, pelo atraso tecnológico e pela alta exploração do trabalho.[*6] No plano internacional, e inserida no contexto do pós-guerra, a Educação Rural vinha assumindo papel significativo nas proposições modernizadoras relacionadas à manutenção da ordem democrática liberal, à educação para a paz e ao combate ao comunismo.

Em nosso entender, no Brasil, a trajetória da educação rural inclui-se na dinâmica de modernização do campo assumindo um papel decisivo no processo de expropriação, proletarização e controle dos trabalhadores rurais. A modernização da produção no nordeste brasileiro, por exemplo, incentivou o processo de sindicalização em massa dos trabalhadores das zonas canavieiras, estimulou reivindicações no campo do trabalho ligadas à aplicação do Estatuto do Trabalhador Rural e, contraditoriamente, fez emergir as manifestações pela distribuição de terras encampadas pelas Ligas Camponesas.[*7]

Esta aparente contradição revela-se, na verdade, como uma articulação entre capital e Estado, no sentido de disciplinarização do movimento de trabalhadores num processo que, inicialmente, contrapôs o latifúndio tradicional usineiro à ação modernizadora, mas que, posteriormente, beneficiou este mesmo latifundiário com o atrelamento do movimento de trabalhadores rurais à máquina e ao controle do Estado. Neste contexto, o papel da Educação Rural foi o de criar as condições necessárias para a modernização da produção, na medida em que “modernizava” o homem do campo – preparando-o para as novas exigências do trabalho e da formação econômico-social e cultural – ao mesmo tempo em que combatia formas organizativas populares autônomas, como a ação das Ligas Camponesas.

Das análises da documentação produzida pelo Seminário e de um conjunto de artigos sobre Educação Rural publicados entre 1944-1952 na Revista do INEP, podemos dizer que, a priori, a Educação Rural foi definida como um dos elementos centrais do processo modernizador do campo e do homem rural. Como elemento modernizador, esta modalidade educacional foi incorporada pelo desenvolvimentismo, tornando-se mecanismo de extrema importância nas políticas agrícolas do Estado – dentre elas, a política de reforma agrária –, estruturalmente necessárias para a modernização do capitalismo brasileiro.

À guisa de conclusão, podemos dizer que o lugar da Educação Rural no processo de formação econômica e social brasileira articulou-se ao projeto de modernização conservadora, que visava a subordinação do campo ao processo de urbanização-industrialização; a regulamentação das relações sociais de produção no campo aos moldes do capitalismo; a homogeneização econômica do território nacional, eliminando as grandes desigualdades regionais; e a adaptação da população rural aos preceitos da cultura moderna.

Na tessitura histórica, o projeto educativo cedeu espaço aos “usos da política” no cotidiano. Desta forma, apontamos o tema da cultura popular e suas relações com o processo social da modernização agrária por meio dos projetos em Educação Rural, como fundamental para o entendimento do movimento modernizador da sociedade brasileira. Os projetos de Educação Rural da década de 50 – como a CNER (Campanha Nacional de Educação Rural) e as Escolas Rurais –, quando instalados em comunidades rurais das regiões “atrasadas” do Norte e do Nordeste, propunham-se a reconstruir o homem do campo, emoldurá-lo segundo novos preceitos, desconsiderando sua cultura, suas formas organizacionais e suas representações sociais. Apoiados em pressupostos teóricos e filosóficos liberais reformadores, agentes da Educação Rural instalaram-se nas comunidades rurais com proposições de reorganização social, política e cultural – introduzindo elementos estranhos às representações sociais dos camponeses (civismo, nacionalismo). Nestas ações revelam-se as assertivas autoritárias e intolerantes do projeto educacional em questão, que negava preceitos culturais existentes – no lazer, na vida familiar, nos pactos políticos do camponês – em prol de comportamentos pré-estabelecidos que regulamentariam novas relações sociais impostas pelo projeto nacional-desenvolvimentista.

Bibliografia

ANDRADE, M. C. Latifúndio e Reforma Agrária no Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1980.
MARTINS, J. S. Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1936, 3ª edição.
OLIVEIRA, F. Elegia para uma (re)ligião. São Paulo: Paz e Terra, 1981.
SOUZA, C. M. Nenhum brasileiro sem escola: projetos de educação de adultos do Estado desenvolvimentista. São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
UNESCO/OEA/BRASIL. Seminários Interamericanos de Educación. Washington D. C., 1951.
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Doutoranda em História Social, professora de Teoria da História da Unifieo e pesquisadora do LEI.
SOUZA, C. M. Nenhum brasileiro sem escola: projetos de educação de adultos do Estado desenvolvimentista. São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
UNESCO/OEA/BRASIL. Seminarios Interamericanos de Educación. Washington D. C., 1951, p. 2.
UNESCO/OEA/BRASIL. Seminarios Interamericanos de Educación. Washington D. C., 1951, p. 59.
UNESCO/OEA/BRASIL. Seminarios Interamericanos de Educación. Washington D. C., 1951, p. 99.
OLIVEIRA, F. Elegia para uma (re)ligião. São Paulo: Paz e Terra, 1981, cap. V.
ANDRADE, M. C. Latifúndio e Reforma Agrária no Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 59.
MARTINS, J. S. Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1936, 3ª edição, cap. 1.