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Artigo publicado na edição nº 4 de Agosto de 2005.
A História, a Codicologia
e os Reclames

Elizangela Nivardo Dias

Para o estudo da História são desejáveis conhecimentos de diversas ciências auxiliares.

Um grande número de historiadores estuda documentos ou objetos antigos fazendo análises e comparando suas informações com outras já sabidas, desenvolvendo a partir daí o seu trabalho. Fazem uma pesquisa minuciosa acerca dos documentos, que culmina numa análise numismática, esfragísitica, heráldica, paleográfica, papirológica, epigráfica, codicológica e assim por diante.[*1]

O foco principal deste artigo é apresentar-lhes brevemente a Codicologia – uma ramificação da Paleografia – e a inserção dos reclames nesta ciência.

As ciências auxiliares estudam questões específicas que, para a História, estão em segundo plano, apesar de ser reconhecido que as estruturas dessas ciências ditas auxiliares potencializam ganhos para o saber histórico.[*2]

Podem ser divididas conforme o tipo de questão específica que estudam, sendo classificadas em três grupos principais: objetos, fatos ou circunstâncias e fontes escritas:

a) objetos: a Numismática (moedas), a Esfragísitica (selos) e a Heráldica (brasões);

b) fatos ou circunstâncias: a Teologia, a Sociologia, a Etnologia, a Economia Política, a Cronologia (calendários) e a Metrologia (padrões de medida), entre outros;

c) fontes escritas: a Paleografia, a Papirologia, a Epigrafia e a Codicologia.[*3]

A Paleografia foi consagrada por Jean Mabillon (1642-1707), um beneditino francês que, além de dedicar-se ao estudo dessa ciência, pesquisava a Diplomática e a Cronologia. Inicialmente, a principal função destes estudos era, digamos, jurídica: servia para provar a autenticidade de documentos, provando, assim, o direito de uma pessoa sobre determinado patrimônio. Grosso modo, ocupa-se da decifração e ordenação de escritos antigos.

Entre o estudo das fontes escritas temos:

a) Papirologia: o estudo dos papiros, que foi o suporte para escrita mais utilizado na Antigüidade. Esta ciência trata da leitura, conservação e interpretação dos papiros;

b) Epigrafia: o estudo da escrita em materiais sólidos, como madeira, pedra e metal;

c) Codicologia: o estudo dos documentos manuscritos ou impressos, em pergaminho ou papel, encadernados em forma de livro (códice).

A Codicologia tem como objeto de estudo o livro manuscrito ou impresso, mas apresenta orientações segundo os objetivos. Interessa ao pesquisador da área conhecer o quadro teórico da ciência codicológica e atender à finalidade essencial do estudo do códice, que é situá-lo de modo a entender a transmissão do texto e a sua funcionalidade de leitura, fixando a atenção particularmente em constituir instrumentos de recuperação do livro e dos fundos de manuscritos.

Alguns tópicos são importantes para a Codicologia:

a) Suportes da escrita medieval (papiro, pergaminho e papel): inicialmente a madeira, casca de árvores, folhas de palmeira, peles de animais, tabuletas de cera e o couro foram utilizados como suportes para a escrita. A revolução para a confecção do livro foi a produção do papiro, que diminuía os problemas apresentados pelo uso de vegetais, madeira e argila. O papiro era de uso exclusivo do Egito até aproximadamente o século VII. Era feito de caule de junco; as lâminas longitudinais e transversais eram coladas e formavam as folhas, geralmente usadas em forma de rolo – portanto os livros eram em rolos, mas também havia os livros quadrados. Este material não era muito resistente e com as novas alternativas de materiais para a escrita, deixou totalmente de ser usado no século XI.

O pergaminho foi o principal material utilizado para a escrita entre os séculos IX e XII na Europa. Era feito de pele de animais, tais como o carneiro, bode, bezerro, etc. Seu preparo é teoricamente simples, mas bastante trabalhoso: deixava-se a pele do animal de molho em água com cal por aproximadamente três dias; depois disso, raspava-se a pele para extrair os pelos e gorduras e, a seguir, para uma raspagem mais refinada, usava-se pedra-pomes; então, sobre uma bancada, a pele secava ao sol. A História afirma que a origem deste suporte deu-se em Pérgamo, pelo rei Euménes II, no século II a.C. Portanto, a origem do nome pergaminho, deve-se ao topônimo Pérgamo. Diz-se que esta invenção deveu-se à proibição do uso do papiro, por Ptolomeu V, do Egito. No entanto, atualmente, consideramos que o que ocorreu foi um aprimoramento da técnica de confecção de suportes para a escrita.

Por volta do século X, as peles de animais possuíam grande valor comercial e eram elementos corriqueiros na vida do homem medieval. Havia, naquele período, o peliteiro, que possuía a função de preparar, curtir e vender as peles. No entanto, as peles por eles preparadas não tinham a finalidade da escrita, mas sim do fabrico de calçado e vestuário. Nos séculos XII e XIII os monges, em seus respectivos mosteiros, eram quem preparavam os pergaminhos para a escrita. Em períodos de falta de pergaminhos, raspavam-se os livros mais antigos para a reutilização – eram os chamados palimpsestos ou opistografia. Com a indicação dos produtos (tipos de papiro, pergaminho ou papel) produzidos ou utilizados em determinado local e data, indicando-se como eles eram manipulados, podemos ter uma idéia a respeito da economia desta região com o devido apoio da História.

Já o papel, invenção chinesa datada de aproximadamente 100 d.C., chegou à Europa por intermédio dos árabes por volta do século IX. Apesar de já ser conhecido, passou a ser mais amplamente utilizado a partir do século XIV. A utilização do papel deu-se pela dispersão, no século XV, de fábricas pela Europa. O pergaminho, nesta época, apresentava preço pouco acessível.

b) Scriptorium: os scriptoria eram os locais de trabalho dos copistas (ou escribas), que tinham, inicialmente, duas funções principais: a religiosa e a administrativa – finalidades judiciais, reais, fiscais, etc. Apresentava divisões definidas de tarefas, cada trabalhador tinha sua função específica na composição do códice: um preparava o suporte da escrita, outro cortava este suporte, outro definia os limites dos fólios e sua justificação (margens), outro trabalhava as capitulares, outro tratava da iluminura e assim por diante. A cópia era uma ação repetitiva e devia-se agir com fidelidade máxima ao texto original.

c) Instrumentos da escrita: estilo, cálamo, pena: nos primeiros tempos utilizou-se o estilo – stilus ou graphium –, que era uma haste de ferro ou mármore com ponta para traçar os caracteres nas tabuletas. Com o tempo, deu-se a utilização do cálamo – calamus – que era um pedaço de junco cortado em forma de pena e foi utilizado até o século XIII. A pena de pássaro, geralmente de ganso ou de cisne, também foi bastante usada. Elas eram afiladas e talhadas, isto é, passavam por um processo de endurecimento para que atendesse de forma mais adequada à finalidade de servir de instrumento para a escrita. Pelo menos no ocidente peninsular, a pena foi o instrumento de escrita mais usado.

d) Códices e encadernações medievais: a codicologia, conforme já referido acima, trabalha com a descrição técnica e a análise do codex, isto é, do códice. O códice é um antecessor do livro.

Os livros de papiro eram em formato de rolo ou quadrados; já os de pergaminho somente podiam ser quadrados, pois as folhas eram um tanto espessas e não eram tão flexíveis como as folhas de papiro. Os códices de pergaminho datam do início da Era Cristã e não eram projetados com o intuito de serem portáteis.

Para a confecção do códice, o pergaminho era cortado em formato padronizado, os fólios eram atados em conjunto por um lado e formavam os cadernos que, reunidos, formavam o livro, de modo similar ao utilizado hoje. Geralmente, na primeira página de cada um dos cadernos havia uma “assinatura”, que até hoje é usada para indicar onde deve ser feita a dobra e as margens de cada uma das folhas para uma posterior organização dos cadernos para que, finalmente, se coloque a capa do livro. A assinatura é ou um número ou uma letra, ou ainda, um número e uma letra juntos. Vejamos as gravuras abaixo:

O primeiro livro manuscrito foi confeccionado em data não definida, aproximadamente até o século XV d.C. A partir deste século, até aproximadamente 1470, confeccionaram-se os incunábulos, que deixaram de ser usados, e nos dias atuais temos o livro moderno, impresso.

e) A folha como espaço racionalizado: nos primeiros tempos, não havia a concepção de margens para a escrita como atualmente. Hoje trabalhamos com o contraste do preto no branco, isto é, estudamos as melhores medidas para a mancha, com a finalidade de proporcionarmos uma melhor fluência da leitura.

Do período medieval até os primeiros anos da imprensa, a formatação da mancha do texto deu-se de modo que, aparentemente, a margem superior fosse menor do que a margem inferior, pois na última linha havia o reclame, que ocupava um pequeno espaço do canto direito desta linha, acarretando um maior espaço em branco na margem inferior.[*4]

Há muito, a margem superior tem sido menor do que a inferior; caso contrário, parecerá que o texto está “caído” na folha, criando uma sensação visual não agradável. No entanto, a margem inferior deve deixar espaço para que o leitor vire a página sem tocar no texto, pois se isso acontecesse, o texto escrito seria deteriorado devido ao manuseio.

f) Incunábulos – do latim incunabulu, “berço”: eram livros publicados antes de 1500. Estes impressos do final da Idade Média tornaram os conhecimentos mais acessíveis, evitando o contato com o manuscrito, o que era raro. Assim como o códice é um antepassado do livro, o incunábulo é um antecessor do livro impresso.

Os Reclames

São chamadas Reclames as repetições de palavras que se dão ao final de um fólio e no início do fólio seguinte. Uma das utilidades reconhecidas do reclame é indicar a seqüência dos fólios e adiantar sua leitura. “A ordem, ou como hoje dizemos, a paginação, era indicada por uma abreviação colocada, quase sempre, em baixo da página, mas isso começou tardiamente, no século XIV”.[*5]

Dizemos que os reclames tinham a função de adiantar a leitura pois, como já referido acima, boa parte dos antigos códices e livros não apresentava o tamanho e o formato atuais. Sendo bem maiores, os livros não eram projetados para ser objetos portáteis e, portanto, tomavam um certo tempo do leitor para virar a página e dirigir os olhos até o início do fólio seguinte, causando uma interrupção da leitura. Consideremos, também, que a tradição era essencialmente oral, assim, essa interrupção na leitura não era agradável.

“O codex semelhava-se assim ao livro de hoje; entretanto o livro moderno pode ser de tamanho reduzido, ao passo que o de pergaminho não era dobrado nem cortado em folhas pequenas, o que significa que os códices são livros grandes, in-fólio, isto é, ‘em folhas’, no tamanho da folha.”[*6] Tomamos este trecho do professor Spina como uma esclarecedora explicação sobre o porquê de os livros serem realmente maiores que os atuais.

Entretanto, havia outras maneiras de indicar a seqüência dos fólios:

a) o sistema de assinaturas: de tradição romana, aparece quase sempre ao início dos cadernos, apesar de que, em alguns casos, aparece na última página;

b) a própria numeração, como conhecemos atualmente;

c) assinaturas e reclames simultaneamente.

Cabe informar que existem reclames horizontais, reclames verticais e reclames oblíquos.[*7]

Porém, o fato de não haver nenhum sistema de ordenação entre as páginas de um texto era freqüente no período medieval, pois se afirma que o uso deste elemento técnico está relacionado com os costumes dos copistas, que podiam utilizá-lo com certa independência.

Julgamos que este tema apresenta relevância, uma vez que acreditamos ser um estratagema muito perspicaz usado nos séculos passados e que seria interessante que ainda hoje existisse, pois, muitas vezes, durante uma leitura, um espaço de silêncio ocorre entre a mudança de página. Sem mencionar as possíveis implicações e relações que os reclames podem ter com diversas ocorrências atuais, como os comerciais de rádio e televisão, uma vez que os reclames de TV também são artifícios para ocuparmos um período entre um bloco e outro do programa ao qual estamos assistindo ou ouvindo, assim como os reclames aqui estudados, que também não passam de artifícios para ocuparmos o tempo da virada de um fólio para outro.

Bibliografia

ACIOLI, V. L. C. A Escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: Editora Universitária UFPE/Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana, 1994.
AZEVEDO FILHO, L. A. de. Iniciação em Crítica Textual. Rio de Janeiro/São Paulo: Presença/EDUSP, 1987.
BUENO, F. S. Estudos de Filologia. São Paulo: Edição Saraiva, 1954, 1º vol.
DÍAZ, E. E. R. El uso del reclamo en España. In: Scriptorium, 53, 1, Bruxelas, 1999.
HOUAISS, A. Elementos de Bibliologia. Rio de Janeiro: INL, 1967, 2 v.
MARTINS, W. A Palavra Escrita. São Paulo: Anhembi, 1957.
MEGALE, H. Filologia Bandeirante. São Paulo: Humanitas, 2001.
SILVA NETO, S. da. Textos Medievais Portugueses e seus problemas. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1956.
SPINA, S. Introdução à Edótica: crítica textual. São Paulo: Ars Poetica/EDUSP, 1994.
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Mestranda da área de Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
“Não cabe ao paleógrafo somente ler textos; a ele compete igualmente datá-los, estabelecer sua origem e procedência e criticá-los quanto à sua autenticidade, levando em consideração o aspecto gráfico dos mesmos. Das ciências auxiliares da História, a Paleografia é a mais importante porque ela se dedica ao estudo da escrita sobre material brando, principal fonte de informação do historiador.” In: ACIOLI, V. L. C. A escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: UFPE/Editora Massangana, 1994, p. 5.
“O documento manuscrito é considerado a mola-mestra da História. É indiscutível que ele proporciona recursos inestimáveis ao historiador, representando o melhor testemunho do passado, fonte direta de informação básica para o estudo da História. A interpretação do fato histórico depende do conjunto de documentos de que se dispõe, do mesmo modo que a interpretação dos documentos históricos depende do conhecimento paleográfico do historiador. Para que o documento seja bem interpretado, é necessário que antes tenha sido bem analisado e criticado sob o ponto de vista paleográfico.” In: ACIOLI, V. L. C. A escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: UFPE/Editora Massangana, 1994, p. 1.
In: ACIOLI, V. L. C. A escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: UFPE/Editora Massangana, 1994, p. 6.
HOUAISS, A. Elementos de Bibliologia. São Paulo: HUCITEC/INL/FNPM, 1983, p. 46.
BUENO, F. S. Estudos de Filologia Portuguesa. São Paulo: Edição Saraiva, 1954, p.156.
SPINA, S. Introdução à Edótica: crítica textual. São Paulo: Ars Poetica/EDUSP, 1994, pp. 34-35.
DÍAZ, E. E. R. El uso del reclamo en España (Reinos Occidentales). In: Scriptorium, 53, 1, Bruxelas, 1999, pp. 3-30.