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Artigo publicado na edição nº 4 de agosto de 2005.
As Gravuras Brasileiras de Albrecht Dürer

Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner

As estampas das principais coleções brasileiras de Albrecht Dürer foram submetidas, pela primeira vez no Brasil, a uma minuciosa investigação científica sob métodos laboratoriais.

A idéia da pesquisa surgiu da leitura de uma nota banal em uma revista de consultório médico, que continha uma matéria sobre os “tesouros artísticos da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro”, entre os quais encontravam-se as gravuras de Albrecht Dürer. A nota dizia que a procedência de tais gravuras era a antiga Real Biblioteca Portuguesa, e teria sido herdada pelos brasileiros após a partida da Família Real, no século XIX. Portanto, valia a pena investigar se “as gravuras de Albrecht Dürer”, de porte real, estando entre nós, brasileiros, há mais ou menos 125 anos, já possuíam o devido laudo de autenticidade ou se nunca haviam sido submetidas a um estudo pericial que as identificasse corretamente a respeito de sua legitimidade.

A investigação começou pela seleção e separação do material. Havia 167 imagens entre xilogravuras, buris, reproduções de todas as qualidades (desenhos, estampas propriamente ditas, cópias), estampas elaboradas por copistas de Albrecht Dürer, que se apropriaram do monograma do artista, cópias fraudulentas. Tal era a heterogeneidade do acervo que cada peça teve de passar por minuciosa pesquisa antes de ser descartada ou resgatada de acordo com a proposta do projeto de origem. Iniciou-se, então, a inspeção técnica das peças selecionadas.

As gravuras medievais de Albrecht Dürer, para serem consideradas autênticas, devem ser situadas dentro de rígidos parâmetros técnicos. Para serem consideradas originais (cujo termo técnico é mais flexível em seus parâmetros), devem ter uma proveniência direta da matriz, de madeira ou de metal, para a folha. Porém, seu limite de impressão é muito mais amplo, porque inclui a hierarquia das tiragens.

As estampas de Albrecht Dürer não consideradas autênticas e nem originais não têm valor artístico. São situadas em tempo e espaço abertos, e têm pouquíssima importância no âmbito internacional, sendo consideradas por seu valor histórico-patrimonial, por exemplo.

A perda do valor artístico de uma estampa ocorre por conta de algum elemento atípico, que distorce suas características originais no que diz respeito ao papel, ou à impressão, ou às marcas d’água.

O passo seguinte da investigação foi a seleção das estampas originais e o estudo de seu estado de conservação, implicando não somente inspeção criteriosa do papel e das devidas marcas d’água, responsáveis por grande parte do diagnóstico, como também definição da qualidade de impressão das peças do acervo, identificando-se, com este trabalho, as diferenças entre estampas advindas de matrizes retrabalhadas, estampas retrabalhadas no laboratório de restauro ao longo dos anos, e o conseqüente reflexo deste procedimento na qualidade das impressões. Após este processo, realizou-se identificação historiográfica da procedência da peça, laudo técnico e, por último, elaboração dos corpi.[*1]

Materiais Utilizados na Pesquisa:

a) lentes microscópicas: para inspeção do tipo de impressão, tiragem, etc;

b) lâmpada fluorescente: para análise da impressão;

c) lâmpada ultravioleta: para inspeção da qualidade das restaurações realizadas ao longo do tempo;

d) eventual lavagem da estampa para identificação da marca d’água, às vezes de difícil leitura por sobreposição de grossas veladuras de proteção ou borrões de cola advindos de antigas manipulações, nem sempre bem administradas;

e) fotografação das marcas d’água dos originais em infravermelho para comprovação científica dos passos da pesquisa.

A correção desta parte da historiografia brasileira tinha por intuito introduzir as gravuras de Albrecht Dürer no âmbito internacional, em que a renovação de catálogos e as identificações por acervo ocorrem à medida que avança este tipo de pesquisa. No entanto, somente exemplares autênticos são bem-vindos nestes inventários culturais. Entre as estampas analisadas (xilogravuras, buris e águas-fortes) não houve exemplar que pudesse ser enquadrado na categoria de autêntico.

A pesquisa às estampas de Albrecht Dürer obedeceu a duas etapas: a primeira, dedicada somente ao exame do acervo da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, deteve-se na análise das xilogravuras, selecionando as peças originais e separando-as daquelas sem atribuição possível. A segunda etapa deteve-se na investigação dos buris e águas-fortes, obedecendo ao mesmo procedimento, porém, abrangendo os acervos de mais duas importantes coleções de São Paulo, além da Coleção Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Foram elas: Coleção Fundação Cultural Ema Gordon Klabin e Coleção Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand-MASP.

As estampas passaram por provas rígidas, sendo permanentemente reconferidas em seus detalhes mais íntimos. No exterior, a pesquisa contou com a possibilidade de manusear exemplares autênticos das quatro coleções mais conceituadas neste tipo de acervo, para fins de comparação: Albertina Museum (Viena); Kupferstichkabinett (Berlim); Germanisches Museum (Nuremberg), e Musée du Petit Palais (Paris).

A grande colaboração profissional dos especialistas e curadores das coleções supracitadas foi relevante a fim de levar a cabo esta difícil empreitada.

Algumas observações significativas deste tipo de pesquisa

Papel

A análise de uma estampa de Albrecht Dürer do século XV/XVI inicia-se pelo papel no qual ela está impressa. Grosso modo, em uma folha de papel antiga é possível se observarem os seguintes caracteres:

Vergaduras – são linhas horizontais alternativas, escuras e claras, que podem ser vistas quando se observa a transparência do papel.

Pontusais – são marcas postas de forma perpendicular aos fios horizontais da vergadura.

Filigranas (ou marcas d’água) – são impressões fixadas em profundidade em uma folha de papel; tipo de adorno elaborado com fio de metal regulado, de acordo com a forma que se pretende registrar. Estas marcas, empregadas pelos papeleiros de diversos lugares e épocas, demonstram, de uma maneira mais ou menos precisa, a idade da folha de papel. As marcas d’água eram sujeitas a todo tipo de falsificações que, naturalmente, apareciam a partir daquelas mais notórias da época. Estas contrafações, a julgar pelos casos conhecidos, muitas vezes não tinham uma identidade absoluta com o modelo-padrão, limitando-se a uma imitação, por vezes até grosseira.

Desde as primeiras décadas de 1900 as contrafações das marcas d’água são levadas em grande consideração, e desde a metade do século são constantemente aglutinadas, de acordo com o andamento da pesquisa mundial, em um Museu fundado por um pesquisador dedicado a esta vertente de investigação, daí a Instituição que leva seu nome: Museu de Marcas d’água Gehard Piccard, no Arquivo Maior da Cidade de Stuttgart – Alemanha (Der Wasserzeichenkartei Piccard im Hauptstaatsarchiv Stuttgart).

É por esta razão que cada uma das marcas d’água da coleção brasileira foi submetida a uma investigação criteriosa e posterior fotografação em infravermelho, reunindo-se, então, material suficiente para envio a esse Museu de Marcas d’água, participando, até mesmo, pela atipicidade de seu desenho, do circuito da pesquisa internacional.

Matrizes e impressões

De maneira geral, as matrizes elaboradas por Albrecht Dürer foram expostas a todo tipo de dano, em conseqüência de utilização demasiada e de má conservação.

Matrizes de madeira – as primeiras lacunas apareceram nas bordas superiores e inferiores, dando início às fendas, que aos poucos foram se alargando e espalhando e, no final, acabaram por destroçar pedaços inteiros. No relevo desenhado, atuaram interrompendo a continuidade das linhas artísticas e, como conseqüência, provocaram intervalos brancos na impressão.

Outro grande inimigo das matrizes eram os carunchos, que deixavam vestígios na superfície em forma de caminhos ou orifícios, e, nas impressões, círculos brancos. A irregularidade das impressões, resultante de fendas e lacunas feitas pelos carunchos, fez com que algumas matrizes fossem corrigidas de maneira muito habilidosa, com, por exemplo, pó de madeira.

Alguns dos danos são visíveis e reconhecíveis nas impressões, e, dessa forma, pode-se chegar a conclusões corretas acerca da seqüência cronológica da estampa, além da qualidade da matriz.

Matrizes de metal – tinham arranhões causados pela limpeza na face polida da chapa, arranhões resultantes de escorregões ocorridos durante o manuseio do buril. Como era extremamente difícil reconstituir o trajeto dos traços, uma vez que o buril escorregava para os lados, às vezes fora do controle do restaurador, isto fez surgir linhas duplas ou mesmo linhas com abas, sinais típicos de placas retrabalhadas. Impressões retiradas deste tipo de matriz deixavam, inclusive, as linhas mais cheias e úmidas, provocando quase sempre um hiperescurecimento da impressão.

No caso de matrizes que resultassem em impressões fracas e débeis, pela perda de profundidade das linhas, retrabalhavam-se com o buril as suas partes principais, aprofundando o contorno. Então, linhas normalmente finas, claras e lisas tornavam-se grosseiras, adquirindo um aspecto “desfiado” e trêmulo.

Tipos de impressão

Impressões de teste – significavam as primeiras provas da prancha incompleta e pressupunham necessidade de eventuais correções antes que a impressão final fosse entregue ao mercado. Eram elaboradas pelo artista em papel sem marca d’água. Hoje em dia, são praticamente inexistentes.

Impressões pessoais de Dürer – folhas soltas, invariavelmente elaboradas em papel “Coroa Alta” para as xilogravuras, e em papel “Cabeça de Boi” para os buris e águas-fortes.

Impressões editoriais – para o grande lançamento dos “três grandes livros” de Dürer, A Vida da Virgem, A Grande Paixão e O Apocalipse de São João, em 1511, usou-se papel “Triângulo com Flor”. Já para o lançamento do pequeno livro Pequena Paixão, no mesmo ano, valeu-se do papel “Coroa Alta”.

Problemas comuns das impressões

As séries encadernadas sempre causaram sérios embaraços ao estudioso, uma vez que o mais comum é se deparar com folhas soltas das imagens e, às vezes, ocorre de o conjunto não se completar. Também é comum encontrar imagens de séries, que deveriam formar álbuns inteiros, impressas em papel com marcas d’água variadas.

Heterogeneidade na impressão das folhas – suavização de uma gravura, pode indicar tensão desigual da prensa ou impressões muito tardias. Já estampas excessivamente claras derivam de tiragens exaustivas.

Outro dano comum às impressões é a destruição pelo uso da tesoura, que ocorre com o objetivo de eliminar completamente manchas de sujeira ou rasgões na linha de borda da gravura.

Conclusão

O Catálogo/Corpus das xilogravuras periciadas, junto com a documentação laboratorial comprovativa e o laudo técnico, encontra-se na Fundação Biblioteca Nacional-RJ e, embora ainda não editado, pode ser consultado pelo pesquisador (HITNER, Sandra Daige Antunes Corrêa. Investigação Historiográfica de um Patrimônio Brasileiro: As Gravuras de Albrecht Dürer. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, SP, 2002, 2 vol.).

Em relação ao Catálogo/Corpus dos buris e águas-fortes do acervo das três fundações (FBN-RJ, Klabin e MASP), encontra-se no prelo.

A exposição deste patrimônio deve acontecer daqui a algum tempo, dependendo apenas da obtenção do apoio de patrocinadores.

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Doutora (MS-3) – ECA-USP
Pós-doutorada (MS-4) – UNICAMP-IA
Corpus: (etimologia emprestada do lat. corpus)1. coletânea ou conjunto de documentos sobre determinado tema. Plural: corpi. Houaiss, Antônio (et al.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, 1ª edição.