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Artigo publicado na edição nº 5 de Setembro de 2005.
Representações sociais
da liberdade e do controle
de si[*1]

Denise Bernuzzi de Sant'Anna

Quando James Dean declarou à imprensa que estava cansado dos atores que não corriam riscos e dos jovens avessos às “coisas verdadeiramente excitantes”, a maior parte de suas fãs ainda desconhecia a liberdade corporal sugerida nos filmes de Hollywood.[*2]

Naqueles anos, proclamados como “dourados”, audácia, irreverência e liberdade de escolher o próprio destino costumavam ser exibidos nas revistas dedicadas às “fofocas” do cinema como valores tanto atraentes quanto perigosos. Muitos jovens das classes médias em ascensão queriam imitar seus ídolos, mas estavam apenas iniciando uma trajetória de liberação e rebeldia que, nas décadas seguintes, se tornaria um fenômeno de massa.

Desde o pós-guerra, diversos países influenciados pelo “american way of life“ foram o palco para o sucesso de revistas dedicadas a fortalecer a fama de atores estrangeiros e o novo “it“ revelado por seus hábitos julgados modernos. Ben Cooper, Antony Perkins, James Dean, entre outros, apareciam em publicações dirigidas ao grande público em fotografias coloridas, a partir das quais era possível deduzir que moravam sozinhos e em apartamentos bem diferentes das residências de seus pais. Para esses jovens, praticidade e conforto não eram mais exceções e sim qualidades inseparáveis da vida considerada moderna.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, revistas como Cinelândia, Querida e Capricho estimulavam o gosto por informações sobre a intimidade dos “famosos” e, ao mesmo tempo, valorizavam padrões de comportamento adaptados às necessidades da sociedade de consumo emergente.

As mulheres eram convidadas a conhecer o novo charme da “roupa pronta” – comprada em lojas –, enquanto aos homens eram oferecidos novos “gadgets” para embelezarem seus automóveis e lambretas.

A moda masculina dos cabelos longos ainda não existia, mas os esportes e as roupas de ambos os sexos sugeriam um novo modo de pensar: era preciso respeitar os próprios desejos e não se esquecer de cuidar do corpo. Muitos rapazes daquela época mostravam-se ansiosos pela busca de prazeres pessoais mas, certamente, não pareciam apressados em constituir família. De fato, os contemporâneos de James Dean pouco hesitavam em tornar charmosa uma descontração que, para a geração de Clark Gable, seria sinônimo de desleixo.

As mulheres famosas também começavam a exibir nas telas um sex-appeal antes pouco autorizado, capaz de eclipsar o glamour das conhecidas vamps dos anos 1930 e 1940. As novas roupas esportivas, práticas e confortáveis, sugeriam um charme tão picante quanto ingênuo. Um semblante de “baby” modificaria a publicidade, associando-a a slogans até então pouco usuais: “sinta esse prazer”, “mais liberdade” e muito bem-estar.

No Brasil, em 1957, por exemplo, Celeneh Costa, a “estrela brotinho”, exibia, na revista carioca Cinelândia, seu corpo vestido em jeans e, de cabelos soltos, mostrava estar mais interessada em sua carreira do que em “arrumar um marido”.[*3]

Talvez seja verdade que muitos “brotinhos” daquela época continuassem a esperar um marido; mas não pareciam esperá-lo da mesma maneira que suas mães o haviam feito, pois a conquista da independência financeira começava a ser menos um sonho do que um direito de inúmeras jovens. No entanto, se a proclamada “era dos brotos” correspondia à valorização de atitudes arrojadas e imprevisíveis, por outro lado, também dava lugar a questionamentos, outrora raros, sobre as antigas obrigações familiares e os tradicionais deveres morais que, em grande medida, contrariavam a expansão da descontração corporal doravante difundida pela imprensa como se fosse uma qualidade essencial dos novos tempos.

Não por acaso, a palavra “liberdade” começa a ser utilizada com facilidade: para as mulheres, liberdade de calçar sapatos sem salto, de encurtar as saias e os cabelos; para os homens, outras liberdades deixam de ser sinônimos de perdição e viram assunto da moda.

Além disso, atitudes outrora consideradas suspeitas do ponto de vista moral, para algumas atrizes, tornam-se aliadas na conquista do sucesso. Já na década de 1960, segundo uma reportagem com a atriz Kim Novak, ser livre significava defender a idéia de que a vida de solteira era melhor do que a de casada. Sem a preocupação de esconder sua atração por gestos que indicavam claramente uma nova paixão pela liberdade individual, Novak declarou que: “em certas ocasiões, eu me jogo no mar, mesmo estando de vestido, seguindo uma inspiração repentina”.[*4]

Para além da necessidade crescente de mostrar o corpo seminu, parecer um pouco “biruta” começava a ser considerado menos um defeito do caráter do que uma demonstração de charme e coragem. Escapar das regras ou condutas previsíveis podia, assim, contribuir para a conquista da admiração pública.

Na verdade, o marketing em desenvolvimento naqueles anos apostava numa revalorização da idéia de independência: diversas atrizes norte-americanas e algumas estrelas brasileiras – incluindo as misses – tendiam, cada vez mais, a ser mostradas pela imprensa como mulheres que gostavam de descobrir “o verdadeiro gosto da liberdade” e não temiam “aquilo que os outros pensariam a seu respeito”.

Sabe-se que uma parte desta ousadia era uma espécie de “irrealidade cotidiana”, restrita a poucas jovens residentes nas grandes cidades e, sobretudo, uma maneira de adquirir fama, típica das celebridades daqueles anos. Mas também se sabe o quanto ela era sedutora. Difícil resistir à moda estabelecida pelo cinema e pela publicidade, a partir da qual inúmeras jovens, em sua alegria contagiante e em seu frescor saudável e desconcertante, pareciam não mais temer a autoridade masculina nem a vida distante da influência familiar.

De todo o modo, mesmo se o gosto por atitudes consideradas livres não ocorresse sem o abandono de antigos pudores, ele também dependia do aprendizado, nem sempre imediato, de uma espontaneidade antes intolerável. Terezinha Morango, miss Cinelândia de 1956, foi representada por esta revista como sendo uma moça “espontânea”, alguém que não possuía “esta malícia feminina, tão comum, que leva certas jovens a declarar o contrário do que pensam”.[*5] Por conseguinte, as estratégias e produtos utilizados para mostrar charme e liberdade tendiam a evitar tudo aquilo que pudesse ser considerado sinônimo de artificialidade. Nesses anos em que a imagem do Brasil nas revistas era a de um país em desenvolvimento rápido e de modernização acelerada dos costumes, liberdade rimava com espontaneidade e descontração, exigindo, portanto, uma nova vigilância da mulher em relação a seus gestos e sua postura. Não por acaso, a quantidade de conselhos de beleza, a partir de meados dos anos 1950, tornou-se maior, exigindo de toda mulher o aprendizado de gestos não apenas graciosos mas, também, rápidos, firmes e seguros. Em várias revistas, manter “a linha” deixava de ser um conselho esporádico para se tornar uma norma ilustrada didaticamente, ensinada a partir da recomendação da ginástica, do uso de roupas leves e de cosméticos capazes não apenas de esconder as imperfeições do rosto mas, sobretudo, de tratá-las. Em suma, a aparência descontraída e livre exigia um persistente trabalho.

Nos Estados Unidos, Sandra Dee, de 16 anos, servia como exemplo em diversas reportagens publicadas no Brasil: glamour, segundo a jovem atriz, era “juventude, frescor natural”, e ainda, “estar de bem com a vida”.[*6] Os novos cosméticos acompanharam e estimularam esta tendência: surgiram produtos de beleza para serem utilizados durante o dia e em todas as ocasiões. Sem dúvida, a aparência natural exigia um novo cuidado de si. A liberdade de “cuidar do próprio corpo” vinha acompanhada da necessidade de estar não apenas mais atenta às próprias necessidades, mas também mais responsável diante das decisões tomadas para “soltar-se”.

Novos ritmos musicais, presença crescente da mulher nas escolas e no trabalho fora de casa, explosão do mercado jovem, desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, da urbanização e da indústria da beleza, as razões para tais transformações são numerosas. A imprensa feminina não escapou a essas tendências e contribuiu a seu modo para a banalização dos novos ideais de juventude e liberdade em expansão, principalmente junto aos setores médios das grandes cidades. A publicidade também usou e abusou da imagem de inúmeros produtos para exibir a positividade conquistada pela idéia de liberdade individual. Na mídia de modo geral, a trajetória de cada indivíduo, famoso ou não, deveria, doravante, contar com provas escancaradas de suas ousadias com o corpo e os sentimentos. A liberdade de “fazer o que se deseja” tornava-se um passaporte importante para garantir sucesso e charme. A atriz Joan Collins, por exemplo, foi uma entre as muitas a assumir uma imagem “rebelde”, de “mulher livre”, inclusive para fumar e usar roupas descontraídas. Para esses modelos de beleza, ser diferente ou um pouco excêntrico deixava de parecer um traço negativo do caráter. Várias revistas femininas insistiam, enfim, que a biografia de cada um podia e devia, doravante, ser construída segundo as escolhas individuais, não mais a partir das determinações familiares.

Não demoraria muito, portanto, para que os contos e conselhos publicados na imprensa feminina, autorizassem os namoros e casos de amor independentes do consentimento familiar. Principalmente a partir de meados dos anos 1960, a busca da liberdade aprofundou suas ambições em direção à intimidade comportamental de cada um e passou a se dirigir a todas as idades: “ser livre”, afirmavam várias reportagens da época, significava não apenas usar roupas extravagantes, transgredir parâmetros da moda e regras de etiqueta mas, sobretudo, criar novas normas tanto para a ação social como também para a relação de cada um consigo mesmo. Não por acaso, as revistas que surgiram nessa década abrigaram conselhos dirigidos à mulher bastante favoráveis a “libertá-la” de atitudes desde então consideradas antiquadas e sem charme, valorizando o prazer de se escutar e de se conhecer.

Nos contos e nas novelas impressas, as heroínas também adquiriram um novo perfil, solidário aos significados inusitados atribuídos à idéia de “ser livre”, doravante mais sensível aos próprios anseios. Alguns contos, por exemplo, colocavam as heroínas numa posição favorável a devaneios individuais, disponíveis para conquistarem um “espaço pessoal” de liberdade e prazer, longe da influência ou do poder dos pais, maridos e irmãos mais velhos. Viajar sozinha ou com amigas, garantir para si mesma um tempo longe do marido ou dos pais, tornavam-se expectativas “naturais” de várias heroínas dos contos e novelas das revistas daqueles anos. E, não por acaso, a traição feminina começaria a ser pensada como sendo algo que “vem e volta”, uma experiência que não necessariamente carregasse uma decisão definitiva. Interessante observar que, justamente nessa época, várias reportagens abordando o tema da traição feminina começaram a utilizar o termo “infidelidade”, como se a noção de infidelidade pudesse exprimir um peso menor do que a idéia de traição. Tal mudança de palavras sugere transformações profundas na cultura e na maneira de conceber a sexualidade.

É também com o advento dos anos 1960 que a moda teve a possibilidade de rejuvenescer mais do que nunca as mulheres, criando um estilo “angel face” e colocando na ordem do dia um perfil de feminilidade estreitamente relacionado à adolescência. No passado recente, os mais novos imitavam os mais velhos. Doravante, esta equação seria, em grande medida, invertida. Os mais velhos, para não serem considerados “quadrados” ou “coroas”, passam a ser assiduamente estimulados a aderir à moda não apenas unissex mas, também, juvenil. No entanto, juventude e velhice não permaneceram com os mesmos significados. A partir do final da década de 1960, sobretudo, as “gatinhas” (e não mais os “brotos”, cuja palavra indicava ainda a importância da imagem da “mulher-flor”) ganharam em descontração corporal mas, também, em complicação emocional.

Especialmente depois dos anos 1970, várias dessas novas tendências rapidamente apontadas ganharam força e sentidos diversificados. Os conselhos dirigidos à mulher nas revistas femininas, por exemplo, foram amplamente influenciados por uma dimensão psicanalítica e por sua massificação. Para cuidar da aparência e da essência humana, termos como “traumas”, “repressão”, “frustração”, e toda uma linguagem que, até então, costumava se manter restrita a alguns especialistas fora da imprensa, tornaram-se habituais nas revistas.

Uma espécie de “psicologização” dos discursos dirigidos aos jovens atingiu a imprensa e, não por acaso, surgiram conselheiros de beleza autorizados, segundo eles mesmos, a tratar da psicologia humana. Desde então, ser livre tornou-se o outro lado da moeda da necessidade, cada vez mais imperativa, de ser “autêntico”. Nada de usar laquê, cinturita, soutien de bojo. Surgiram novos cremes para o cabelo e uma verdadeira massificação do ideal da “boa forma”, que substituiu, cada vez mais, o sonho da manutenção da “linha”, com muita ginástica e/ou cirurgia plástica. A manutenção da forma indicaria um aprofundamento do investimento da indústria da beleza no corpo de cada um: no lugar de atingir apenas uma linha externa, supostamente definida por medidas padronizadas, tratava-se, sobretudo, de procurar um “novo corpo”, formado e informado a partir dos progressos industriais em matéria de rejuvenescimento e beleza.

Além disso, novas exigências para emagrecer foram criadas com um rigor e uma variedade de técnicas e produtos que dificilmente teriam padrões comparáveis no passado. Metrecal, por exemplo – assim como muitos outros “remédios-alimentos” para emagrecer divulgados pela imprensa – já não servia apenas para a perda de peso: ele associava esta tarefa àquela de nutrir e fornecer prazer. Na verdade, desde a massificação desses produtos, saídos da indústria que, em seguida, criaria doces e salgados “diet” e “light”, talvez, pela primeira vez na história, o regime passou a se associar ao prazer de comer. A chegada dos adoçantes no mercado brasileiro também confirmou o quanto o regime havia se vinculado a valores de distinção social, sucesso profissional e refinamento. Tratava-se, agora, de buscar um padrão internacional de beleza corporal que colocaria num plano secundário os gostos e padrões regionais, com suas especificidades e razões de viver. As misses brasileiras dos anos 1960, por exemplo, já indicavam esta mudança: tipos “universais”, muito semelhantes com as misses de outros países, todas elas mais longilíneas do que as misses das décadas anteriores e, em geral, devotadas ao uso dos novos cosméticos e regimes em moda. A seguir, as mulheres famosas e consideradas belas, ao aparecerem nas revistas, começaram a expor os “segredos de suas dietas”, assunto que, até um passado recente, ganhava pouquíssimo destaque na imprensa. Segundo uma infinidade de reportagens posteriores aos anos 1970, liberdade começava a ser sinônimo de uma maneira privilegiada de ser leve e, por sua vez, ser leve era um meio seguro de ser moderna. Em plena época de transformação acelerada dos hábitos alimentares e do sucesso de novas lanchonetes e alimentos especializados no emagrecimento, as escolhas de cada um diante da comida começaram, mais do que nunca, a revelar os níveis de liberdade, descontração e modernidade individuais. Ao mesmo tempo, tudo aquilo que era considerado excesso de gordura corporal tornava-se sinônimo de lentidão, atraso e, até mesmo, doença.

A liberdade feminina de usar mini-saia, biquíni e calça comprida foi, então, acompanhada pelas exigências de eliminar “gordurinhas”, ampliar a depilação das pernas, o bronzeamento destas e da barriga, além do combate à flacidez. É justamente nessa época de liberação do corpo feminino nas praias e piscinas que a celulite se transforma num dos maiores problemas estéticos da mulher. Em épocas passadas, as reportagens a seu respeito eram praticamente inexistentes, porém, a partir dos anos 1970, elas se multiplicaram e se especializaram. A palavra celulite se tornou conhecida e passou a ser compreendida como um grande obstáculo à liberdade de expor o corpo e de viver descontraidamente.

Evidentemente, não é a primeira vez na história que a gordura, por exemplo, passa a ser alvo de repressão e de críticas. No entanto, no decorrer dos anos 1970, ela foi insistentemente apontada como sendo uma das principais causas de problemas tanto estéticos quanto psicológicos de toda mulher. Ser considerada gorda deixava, cada vez mais, de sugerir saúde para indicar doença e improdutividade. Gordura tornava-se menos formosura do que promessa de solidão, pobreza e tristeza. A maior parte das evocações à liberdade feminina ilustrada pela publicidade fazia referência a corpos longilíneos, magros, lépidos e jovens. Gordura tendia a ser vista não apenas como excesso mas, também, como sinônimo de paralisia e inutilidade, devendo, portanto, ser rapidamente transmutada em músculos, fibras, “pedaços de corpo” capazes de sugerir muito mais o trabalho do que o ócio, a velocidade do que a lentidão. Desde então, o antigo “it” da “gordinha” e das “roliças” tende a ser esquecido em favor da aerodinamicidade das imagens corporais capazes de sugerir uma produtiva mescla entre corpos humanos e bólidos de corrida.

Mas, mesmo na década de 1970, alguns movimentos de resistência ao impulso dos corpos rumo à aceleração incessante de seus movimentos já havia ocorrido dentro e fora do espaço midiático. A vontade de libertar o corpo foi uma bandeira de luta tanto da indústria da beleza e da moda quanto de setores alternativos, contrários à toda produção industrial, ou ainda, dos movimentos que lutavam em prol dos direitos sociais das minorias. Além disso, vários setores da mídia recodificaram rapidamente os anseios por liberdade de expressão em forma de imagens-clichê, ou de slogans da moda.

Assim, por exemplo, segundo a publicidade de milhares de produtos destinados à beleza e à juventude, a liberdade implicava a inexistência absoluta de doenças, tristezas e indisposições. Nesse caso, liberdade rimava com alegria sem contrários, juventude eterna e uma espécie de saúde inabalável, comparável a um superávit de energia infinita. Nas novas revistas dos anos 1970, tais como a Pop e a Nova, liberdade começava a significar satisfação sexual e, sobretudo, bem-estar individual junto à descoberta da natureza. No caso da Pop, dedicada principalmente aos adolescentes, liberdade e natureza formariam os dois lados da mesma moeda. Sob a influência da contracultura, a liberdade era representada preferencialmente durante o verão, em praias e outros espaços considerados “naturais”. Sensíveis à invenção de uma consciência ecológica outrora rara, as reportagens e anúncios dessa revista enfatizavam a necessidade de conjugar a vida jovem com o usufruto de paisagens liberadas de toda “poluição” e distantes das coações vividas na rotina das grandes cidades. Liberdade era, sobretudo, um sentimento de integridade da natureza e do corpo avesso à poluição de ambos. Contudo, a Pop era, também, uma das pioneiras no processo de transformação desses ideais em mercadorias de fácil acesso, em clichês publicitários de sucesso. Um estilo de vida que exibia descontração, prazer, liberdade e bem-estar (físico e mental) junto à natureza encontrava, nas páginas ilustradas desta revista, um espaço propício para atrair milhares de jovens da classe média e aproximá-los do mercado especializado na venda de novos acessórios e roupas para as atividades esportivas em expansão e para o turismo de massa.

De qualquer modo, dentro e fora da mídia, o meio ambiente deixava de ser considerado uma fonte inesgotável de vida à disposição do homem. Ficava a impressão de que, agora, mais do que nunca, a Terra “apresentava as contas”,[*7] e o pagamento não era algo simples de ser resolvido. A intensificação da consciência ecológica durante esses anos provocou a descoberta de novos artifícios presentes em praias, rios, florestas e, em particular, dentro dos corpos. Por conseguinte, conquistar a liberdade, torna-se, para diversos setores sociais, algo próximo à aquisição de um modo de vida natural, contrário a diversos hábitos e consumos considerados, doravante, sinônimos de artificialismos. Um novo mercado de produtos naturais seria portanto incrementado, incluindo cosméticos, roupas e produtos alimentares. Se há séculos a natureza havia deixado de determinar completamente o homem, agora seria o homem que, cada vez mais rapidamente, designaria a natureza, reinventando-a em favor da criação de um corpo rejuvenescido e saudável. A liberdade para fazê-lo seria, doravante, medida principalmente pelo poderio econômico de cada um, e não tanto por sua capacidade de romper barreiras de cunho moral e religioso.

Entretanto, a partir dos anos 1980, a idéia de “liberdade” associou-se ao sucesso midiático de imagens fortemente expressivas acerca da possibilidade de obter prazer pessoal em todos os momentos da vida. Prazer este influenciado pela expansão da industrialização da voga do natural. Tão sedutor quanto exasperador, exigia, em geral, a conquista de um controle sobre si cada vez mais profundo e assíduo. Ou seja, em plena década de estímulo à democratização do direito de intervir no próprio corpo e de conduzir, livremente, a própria sexualidade, assistiu-se à aceleração da privatização da vida pública e à construção de uma subjetividade mergulhada nos dilemas da indeterminação e de uma espécie de “estresse” de decidir individualmente sobre assuntos que, no passado, eram administrados de modo coletivo. Ao mesmo tempo, quanto mais se vendia e se consumia a idéia de que cada um era totalmente livre para ser proprietário de si mesmo, maior se tornava a incerteza sobre o controle do corpo. O fundamental, desde então, afirmavam vários anúncios publicitários, era conjugar liberdade com eficácia: ser eficaz no controle de si, ser eficaz no governo das próprias coisas. A “gestão de si mesmo”, tal como a gestão de uma empresa, se torna uma prova e um testemunho da capacidade individual de vencer sempre a concorrência e todas as contrariedades em qualquer esfera da vida cotidiana. Não por acaso, as revistas femininas começaram a estimular, de modo imperativo, a aquisição de saberes propícios a fazer de toda mulher uma “vencedora”, seja no esporte, seja no amor ou no trabalho. Vencer sempre implicava, contudo, a necessidade de fabricar um corpo capaz de ser ao mesmo tempo livre e seguro. Liberdade traria, como coação maior, a necessidade dupla de uma segurança autoprotetora constante e de uma satisfação absoluta de todas as necessidades.

Esta espécie de tendência à individualização extrema, acompanhada por várias transformações da idéia de liberdade, não poderia deixar de aguçar o medo de viver livremente: medo do descarte, da obsolescência, medo de sucumbir completamente e a todo momento, pois a busca por satisfação e segurança completas colocava em risco as incertezas mais comuns, transformando obstáculos rotineiros em inimigos que pareciam não ter nada mais a ensinar e que, portanto, deviam ser rapidamente abatidos. Nessa época, conforme afirmou Illich, “o fenômeno humano não se defini mais por aquilo que somos, pelo que fazemos”, nem mesmo pelo que sonhamos, pois ele se tornou sinônimo daquilo que “nos falta e, portanto, do que temos necessidade”. Para Illich, a humanidade se transformou num “pacote de necessidades”,[*8] dentro do qual cada um é tão livre quanto incerto para produzir a sua própria imagem de marca.

Mesmo se considerarmos que a busca da liberdade física esteja dentro de tal pacote, sua historicidade, aqui rapidamente tratada, indica a permanência de um curioso paradoxo: a recorrente valorização de uma aparência considerada livre, desde o pós-guerra, é paralela à emergência, em cada momento, de novas coações, receios e intolerâncias outrora impensáveis. Ganha-se tanto em liberdade quanto em novos riscos e preocupações. A conquista de maior espaço para a expressão corporal inclui o direito ao prazer físico e, ao mesmo tempo, uma intolerância aguda em relação a qualquer ameaça de desprazer e de perturbação corporal. A publicidade de inúmeros produtos não cessa de fornecer exemplos lapidares a este respeito: por seu intermédio, proliferam os estímulos para a aquisição de mais e mais liberdade para escolher qual tratamento de saúde seguir, em que religião acreditar, qual roupa usar em determinada circunstância, como agir no trabalho e no lazer, qual imagem produzir para si a cada momento, etc. No entanto, tais demandas estão atreladas à necessidade de cada um se informar cada vez mais rápido e melhor sobre a própria escolha feita.

Por conseguinte, como não é surpresa para ninguém, a busca da livre escolha na atual sociedade de consumo implica o aumento crescente de responsabilidades individuais, o que, de certa forma, indica o quanto este tema, aparentemente banal e natural nas últimas décadas, possui uma rica história, cuja duração e a intensidade revelam a infinitude dos horizontes de pesquisa sempre que a historicidade do corpo e de suas liberdades torna-se o foco principal dos interesses de cada pesquisador.

Bibliografia

AMIEL, Vincent. Des images des mondes superposés. In: Esprit, n.° 10, Paris, Seuil, outubro de 1991.
BECK, Ulrich. La société du risque. Paris: Aubier, 2001.
DELEAGE, Jean-Paul. Histoire de l'écologie. Une science de l'homme et de la nature. Paris: La Découverte, 1991.
FARGE, Arlette; DAUPHIN, Cécile. Séduction et sociétés. Paris: Seuil, 2001.
ILLICH, Ivan. La perte des sens. Paris: Fayard, 2004.
MONGIN, Olivier. La peur du vide. Paris: Seuil, 1991.
PARRY, Jonathan. The end of the body. In: FEHER, M. (ed). Fragments for a history of the human body. New York: Zone, 1989.
ROWE, William; SCHELLING, Vivian. Memory and Modernity: popular culture in Latin America. Londres: Verso, 1991.
SANT´ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpos de Passagem. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
_____. La recherche de la beauté. Université Paris VII: 1994, 658 p.
VIGARELLO, Georges. Le sain et le malsain. Paris: Seuil, 1993.
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Professora de História da PUC-SP
Parte deste trabalho baseia-se no doutorado defendido em 1994, sobre a história do embelezamento da mulher brasileira no decorrer do século XX. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté. Université Paris VII: 1994, 658 p.
Sobre esta declaração de James Dean, ver, Cinelândia, n.° 72, novembro de 1955, p. 54.
Cinelândia, n.° 104, março de 1957, p. 72.
Querida, n.° 215, maio de 1963, pp. 84-85.
Cinelândia, n.° 100, janeiro de 1957.
Cinelândia, n.° 131, março de 1959, p. 52.
A respeito dessa consciência ecológica, ver DELEAGE, Jean-Paul. Histoire de l'écologie. Une science de l'homme et de la nature. Paris: La Découverte, 1991, p. 246.
ILLICH, Ivan. La perte des sens. Paris: Fayard, 2004.