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Artigo publicado na edição nº 6 de Outubro de 2005.
Os Refugiados e a Posição do Brasil

Julia Bertino Moreira

A problemática dos refugiados está intrinsecamente relacionada com a ocorrência de guerras civis no plano internacional, que assumem motivos variados, como religioso, étnico, político ou econômico. Isso porque esses conflitos causam graves violações aos direitos humanos da população civil atingida, à medida que atentam contra a sua vida (incluindo a integridade física), liberdade e segurança. Além disso, as situações de conflito colocam em risco grupos ou indivíduos que apresentem etnias ou religiões minoritárias no país ou opiniões políticas diversas das do governo, estando sujeitos, assim, a sofrer ameaças ou efetivas perseguições. Em razão disso, são impulsionados a deixar forçosamente seus países de origem para procurar refúgio em outros Estados.

O reflexo desse movimento de deslocamento forçado é uma população mundial atual de, aproximadamente, 9,7 milhões de refugiados.[*1] Os maiores grupos de refugiados no mundo são de origem do Afeganistão (2.136.000), Sudão (606.200), Burundi (531.600), República Democrática do Congo (453.400), Palestinos (427.900), Somália (402.200), Iraque (368.500), Vietnã (363.200), Libéria (353.300) e Angola (329.600). Por outro lado, os países que mais acolhem refugiados são: Paquistão (1.100.000), Irã (985.000), Alemanha (960.000), Tanzânia (650.000) e Estados Unidos (452.500) (Ibidem, p. 14). É de se ressaltar que o crescente contingente de refugiados espalhados pelo globo terrestre representa uma problemática que desafia a comunidade internacional há mais de cinqüenta anos.

Esta problemática se desenvolveu acentuadamente a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando foram gerados os maiores deslocamentos humanos observados na História moderna, perfazendo mais de 40 milhões de pessoas desenraizadas provenientes da Europa.[*2] A situação que se constatava nesse continente causou grande preocupação à comunidade internacional, principalmente aos países aliados – Reino Unido, França, URSS e EUA.[*3]

Diante disso, em dezembro de 1949, a ONU – Organização das Nações Unidas – decidiu criar um órgão específico para tratar da questão dos refugiados: o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados –, que iniciaria seus trabalhos em 1º de janeiro de 1951.[*4] Em 28 de julho do mesmo ano, esta organização elaborou o primeiro instrumento de proteção internacional aos refugiados: a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, que entrou em vigor no dia 21 de abril de 1954.[*5]

A Convenção definiu como refugiado toda pessoa “que, em conseqüência de acontecimentos ocorridos antes de 1º de Janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar”.[*6]

Esta definição de refugiado, conhecida como “clássica”, continha duas limitações, uma de cunho temporal, o que se nota pela expressão “acontecimentos ocorridos antes de 1º de Janeiro de 1951”, e outra de cunho geográfico, posto que, nos termos da Convenção, tais acontecimentos poderiam ser entendidos como aqueles que ocorreram somente na Europa.[*7]

Considerando que a reserva temporal poderia tornar a definição de refugiado inaplicável aos eventos posteriores à elaboração da Convenção, foi celebrado outro instrumento internacional, o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967, com o objetivo de excluir esta limitação.[*8]

Ademais, no âmbito latino-americano, após quase duas décadas sob a repressão decorrente de regimes ditatoriais e conflitos armados, elaborou-se um instrumento regional, a Declaração de Cartagena, de 1984, que trouxe uma nova definição de refugiado. Esta, que ficou conhecida como “ampliada”, abarcava pessoas que deixaram seus países porque sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas em decorrência da violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação massiva dos direitos humanos ou outras circunstâncias que perturbaram gravemente a ordem pública.[*9]

O Brasil foi o pioneiro, na América do Sul, a regulamentar a proteção aos refugiados.[*10] Isso porque foi o primeiro país da região a aprovar a Convenção de 1951, o que se deu em 1960; aderiu ao Protocolo de 1967 em 1972;[*11] e também foi o primeiro a elaborar uma lei nacional específica sobre refugiados, em 1997 (a Lei Federal n.º 9.474/97). E, embora não tenha assinado a Declaração de Cartagena de 1984, passou a aplicar a definição ampliada de refugiado contida nesse instrumento desde 1989.[*12]

Com relação ao posicionamento brasileiro frente às pessoas que chegavam ao território nacional em busca de refúgio, vale registrar que o país, quando aderiu à Convenção, estabeleceu a “reserva geográfica”, pela qual só reconhecia como refugiados pessoas de origem européia. Em razão disso, no decorrer das décadas de 1970 e 1980 – em que se verificou grande fluxo de refugiados provenientes da América Latina –, como o Brasil mantinha a reserva, não podia acolher latino-americanos em seu território, concedendo-lhes apenas o “visto de turista”, que permitia a estadia provisória de noventa dias no país.[*13] Durante esse período, essas pessoas aguardavam para serem reassentadas em um terceiro país.[*14]

A decisão de manter a referida reserva e de conceder estadia provisória aos não-europeus foi fruto de um acordo entre o governo brasileiro e o ACNUR, que iniciou sua missão no Brasil em 1977.[*15] No final dos anos de 1970 e início de 1980, foi instalado um Escritório do ACNUR no Rio de Janeiro, que teve como função reassentar cerca de 20 mil sul-americanos (dentre eles, argentinos, uruguaios, chilenos e paraguaios)[*16] em outros países,[*17] principalmente da Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.[*18]

Com o início da década de 1980, ocorreram algumas mudanças significativas no posicionamento brasileiro em relação à acolhida de refugiados não-europeus. Em 1979, 150 vietnamitas foram abrigados em nosso território e, embora o governo não lhes tenha reconhecido a condição de refugiados, concedeu-lhes visto temporário de estadia, o que legalizava sua situação jurídica e permitia que trabalhassem legalmente no país. Além disso, dezenas de cubanos foram recebidas pelo país, sendo assistidos pela Comissão de Justiça e Paz, em São Paulo.[*19] A partir de 1984, permitiu-se a estadia de refugiados no território nacional por período não limitado, enquanto se aguardava o reassentamento em outros países.[*20]

No entanto, foi a partir de meados da década de 1980, quando se desenrolou o processo de democratização do Brasil, que pôde ser verificado um avanço quanto ao tratamento da problemática dos refugiados pelo governo brasileiro. Diante desse contexto, em 1986, com o auxílio do ACNUR, 50 famílias de fé Bahá’i, provenientes do Irã, foram acolhidas pelo Brasil, pela aplicação do estatuto de asilados, haja vista que, em razão da “reserva geográfica” sustentada pelo país, não lhes poderia ser reconhecida a condição jurídica de refugiados.[*21] Vale salientar que essa decisão do governo brasileiro representou uma inovação jurídica, revelando o comprometimento do país com a questão dos refugiados. Em 19 de dezembro de 1989,[*22] o Brasil finalmente veio a revogar a “reserva geográfica”, por meio do Decreto n.º 98.602/89.[*23]

Em face disso, embora o governo não tenha assinado a Declaração de Cartagena, passou a aplicar a definição ampliada de refugiado contida nesse instrumento desde 1989,[*24] quando decidiu acolher refugiados de todos os continentes do mundo.

Um exemplo fático foi verificado entre os anos de 1992 e 1994, quando, aproximadamente 1.200 angolanos chegaram no Brasil em busca de refúgio, em razão do período conturbado das eleições na Angola. Nesse momento, as autoridades nacionais decidiram aplicar a definição ampliada de refugiado,[*25] contida na Declaração de Cartagena, [*26] já que os angolanos não se enquadravam na definição clássica, dada pela Convenção de 1951.[*27]

O Brasil também se destaca no quadro geral de refugiados e solicitantes de refúgio da América do Sul, visto que abriga 3.193 refugiados em seu território. Trata-se da segunda maior população refugiada da região, perdendo somente para o Equador, que acolhe 6.381 refugiados.[*28]

É interessante notar que, dos 1.130 refugiados acolhidos apenas em São Paulo, no ano de 2003, 73 eram cubanos; 36, peruanos; 30, colombianos; 7, argentinos; 3, paraguaios; 2 salvadorenhos; e 1 haitiano.[*29] Portanto, observa-se que 13% dos refugiados que se encontram em São Paulo apresentam origem latino-americana.

Em seguida, dentre os países da América do Sul, aparece a Argentina, com 2.642 refugiados, ao passo que Bolívia, Chile, Colômbia e Peru apresentam algumas centenas de refugiados em seus territórios e, por último, Paraguai e Venezuela, com apenas algumas dezenas deles abrigados em seus países.[*30]

Por fim, pode-se concluir que o Brasil se inseriu no contexto de preocupação internacional com a problemática dos refugiados ao aderir aos seus principais instrumentos de proteção, e vem atuando no sentido de solucioná-la, o que se constata pela legislação nacional elaborada e pelo acolhimento de um contingente expressivo de refugiados.

Bibliografia

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Advogada, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP).
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