:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 8 de março de 2006.
A Influência da medicina legal em processos crimes de defloramento na cidade de Piracicaba e região
(1900-1930)

João Valério Scremin

No processo envolvendo Guilherme Spera, acusado de defloramento pela mãe da ofendida, cujo nome permaneceu anônimo, nota-se dentre outras coisas que não havia provas concretas sobre a idade e miserabilidade da ofendida, além de algumas contradições entre o depoimento da mãe, da jovem e das testemunhas. Mas houve uma prova que se tornou contundente para a inocência do acusado : “os médicos atestaram que na ocasião ele se achava atacado de moléstia venérea e essa moléstia transmitir-se-ia infalivelmente a qualquer mulher (...); ora, a ofendida não se achava contaminada de moléstia alguma”[*1]. Observa-se que o laudo médico-legal extraído do exame de corpo-delito, foi de suma importância para a absolvição do réu Guilherme Spera.

Desta forma, tendo como base os processos envolvendo crimes de defloramento ocorridos na cidade de Piracicaba e região, em especial nas três primeiras décadas do século XX, o objetivo deste trabalho é analisar o modo como os laudos médicos presentes nestes processos interferiram no julgamento dos acusados, bem como foram utilizados pelos juristas na defesa e acusação das partes envolvidas. Para isto, torna-se necessário abordar de que forma ocorriam os debates médicos e jurídicos no fim do século XIX e início do XX, que tinham como focos principais a honra da família e da mulher, a virgindade feminina e a questão dos crimes sexuais contra as mulheres.

O EMBATE: Juristas, virgindade e hímen

Ao priorizar as principais diferenças teóricas entre os juristas, Sueann Caulfield[*2] procura aclarar as mudanças na lei como um processo complexo de negociação e discordância entre os próprios especialistas e outros grupos sociais. Esclarece que, em fins do século XIX, há uma extensa produção literária sobre o estudo do hímen, realizada por especialistas brasileiros em medicina-legal, que passaram a figurar entre as principais autoridades mundiais sobre sua morfologia.

As discussões sobre a virgindade eram freqüentes no Brasil, ficando evidentes nos casos de defloramento que, indiscutivelmente, eram os que mais iam a julgamento no período supracitado. Nota-se que a mulher era considerada virgem quando não praticara o coito e quando os seus órgãos sexuais estivessem intactos, pois o melhor indício de virgindade era a presença da membrana himenal. Neste sentido, como pode-se observar, nos processos crimes de Piracicaba e região, a gravidez era a maior evidência de defloramento, opinião vigente na jurisprudência do período tratado. Nos 16 processos analisados,[*3] pôde-se observar que em 7 se contata que a ofendida encontrava-se em período de gestação e uma já havia realizado o parto dias antes de ter se submetido ao exame de corpo-delito.

Segundo Caulfield, quando Sexologia forense foi publicado em 1934, por Afrânio Peixoto, preconizador do IML (Instituto Médico Legal – antigo Serviço de Medicina Legal do Rio de Janeiro), havia diversas concepções errôneas sobre a relação entre virgindade e morfologia do hímen. Em 1928, Miguel Sales ressaltou que a realização da perícia de defloramento era uma das funções mais importantes da medicina legal carioca.

Caulfield salienta que nem Peixoto nem Sales apresentam evidências que convençam e expliquem porque tantas mulheres de classe baixa procuravam o IML nos casos de perda de virgindade, mas ambos ressaltam que a preocupação jurídica com a virgindade e a honra sexual evidenciava o atraso do país.

Observa-se que a principal preocupação dos juristas e legisladores do começo da República em relação à virgindade e honra sexual era baseada em disputas amplas pelo poder de definição cultural e política futura da nação. Não é por acaso que juristas reformadores pretendiam mudar os princípios jurídicos herdados no auge do liberalismo, no início do século XIX.

Para a nova geração de juristas do século XIX, a influência da Escola Clássica, termo que englobava os princípios básicos do pensamento jurídico iluminista, como a igualdade dos indivíduos perante a lei, o livre-arbítrio, a responsabilidade moral e a punição fixa e proporcional ao crime, seria a fase que daria início ao progresso nacional.

Em contraponto a essas influências estavam os juristas que se identificavam com a Escola Positiva ou a Nova Escola do Direito Penal. Todos trabalhavam para a aplicação dos novos conhecimentos das ciências biológicas e humanas ao direito, ressaltando as diferenças entre os indivíduos, produzindo uma gama de critérios psicológicos, sociológicos e fisiológicos na classificação e individualização do criminoso e da pena, conforme as suas características próprias, rejeitando, desta maneira, os princípios clássicos do livre-arbítrio e da responsabilidade penal.

As questões de gênero, o embate entre família patriarcal e família burguesa, provocavam, segundo Caulfield, diversos debates entre os juristas. Questionava-se os crimes de defloramento, termo que provocou debates profundos sobre a importância da fisiologia, das tradições populares e das evidências médicas no direito penal e, não obstante, a relação entre o princípio abstrato da virtude moral e a história da valorização da virgindade física.

Defloramento material; defloramento moral

Segundo Boris Fausto,[*4] o crime de defloramento definia a preocupação central de uma sociedade que materializava a honra em uma peça anatômica, o hímen, além da proteção da vagina. O hímen representava, desta maneira, um acidente biológico facilitador de um controle da sexualidade feminina, pois através dele podia-se distinguir as mulheres puras e impuras. Destaca-se, ainda, que era dever da mulher manter o “selo” intacto. O homem temia pela ruptura da membrana fora do leito conjugal ou expor-se ao ridículo ao casar-se com uma moça, empregando o termo popular, “furada”.

Observa-se que esta justificativa era usada na defesa do réu, como em 1911 em Piracicaba, quando Antônio Soares, apesar de amar Anna Lázara de Almeida, “com a qual pretendia casar-se (...); que esse propósito deixou de existir porque nesse dia às[sic] oito da noite, mais ou menos na casa de sua pretendida (...), teve relações carnais ficando evidente que ela já estava deflorada”. Desta maneira, ele não se sentia obrigado a “reparar o mal praticado por outro”, mas o fez, após a confirmação da honestidade da ofendida por 7 das 11 testemunhas que depuseram no caso.[*5]

Nos processos crimes analisados, observa-se que em 12 dos 16 casos, o exame de corpo-delito apresenta, em destaque, a membrana hímen como estando “dilacerada”, “rota”, “pronunciadas lateralmente”, com “escoriações laterais”, “despedaçado lateralmente”, dentre outros adjetivos para a situação da peça anatômica após o defloramento. Somente quatro processos não fazem menção aos órgãos genitais femininos, sendo que, destas moças, três estavam grávidas.

Assim, pode-se notar, nos processos de crime sexual, uma estampa comum, masculina, a toda a sociedade. Visão que não se limita ao fato de que o aparelho repressivo, bem como o corpo de jurados era composto em sua maioria por homens, que investigavam e julgavam os delitos praticados por pessoas do sexo masculino, cujas vítimas eram em sua maioria mulheres.

Para Caulfield, uma das inovações do Código Penal de 1830 foi o emprego do verbo deflorar, o direito romano utilizava o termo disvirginatio e disvirginare. As Ordenações Filipinas, menos precisas, condenavam os homens que dormissem ou corrompessem mulheres virgens ou viúvas honestas. Portugal e algumas nações latino-americanas tinham leis específicas sobre estupro ou sedução de moças virgens, mas somente no Brasil utilizou-se o termo defloramento, salientando, desta maneira, o elemento material do crime.

Caulfield destaca que, em 1924, para o jurista Galdino Siqueira, a escolha do termo defloramento foi feita pela intuição popular e não por princípios jurídicos. Para ele, a virgindade significava a integridade do hímen, assim a evidência médica da membrana seria mais uma prova indispensável nos processos de defloramento. Como fica claro no Recurso Criminal Nº 3834 de Tietê, no qual o recorrente João Baptista de Arruda é acusado de defloramento, pelo pai de uma “rapariga de 20 anos”, o advogado defende que o defloramento não poderia ser atribuído ao réu, pois os peritos constataram que os “retalhos do hímen já estavam cicatrizados e não obstante a isso afirmavam que o defloramento devia ter ocorrido oito dias antes”. Para os advogados, os tratadistas ensinavam que, após a cicatrização do hímen, não seria possível precisar a data do defloramento. Muitos colegas de Siqueira se opunham a esta idéia, por acharem que a moderna ciência da medicina legal estaria sendo ignorada, bem como os ensinos dos maiores especialistas da República.

Em fins do século XIX, médicos legistas, como Nina Rodrigues e Agostinho de Souza Lima, defendiam que a evidência médica do defloramento era imperfeita, pois havia a existência do hímen complacente, além da possibilidade do rompimento da membrana por outros meios que não por relação sexual, como por exemplo “ a prática da masturbação ou qualquer outra”, como evidenciou-se no relatório do Juiz de Direito da Comarca de Piracicaba, sobre o caso de Rafael Bocchetti X Pierrina Guiari,[*7] em 1916-7. Neste contexto, muitos juristas defendiam a posição de Souza Lima em substituir o termo defloramento por sedução, com o objetivo de suprimir a ambigüidade na prática da medicina-legal.

É importante destacar que o hímen complacente era conhecido somente por especialistas e que os ensinamentos da medicina-legal, em fins do século XIX e início do XX, segundo Caulfield, eram rudimentares. Até a década de 1920, a virgindade era avaliada por critérios para além do estado do hímen, incluindo outras evidências rejeitadas pela medicina-legal, como a flacidez dos seios e dos grandes e pequenos lábios.

Para os advogados de defesa, que ignoravam os ensinos especializados, esse tipo de evidência tornava-se uma ferramenta útil e muitas vezes eficaz, principalmente quando o julgamento era feito com a presença do júri. Segundo Caulfield, os crimes sexuais passaram a ser julgados por juizes de direito após 1922.

Para o historiador José Leopoldo Ferreira Antunes,[*8] o hímen era desprezado pela fisiologia, mas valorizado pela medicina-legal, sendo um de seus principais objetos de estudo. Ao médico legista caberia a missão de verificar a existência da membrana, sua forma e consistência, a constatação ou negação de sua integridade, além da descrição de suas lesões. Esses estudos demonstram os indícios de estupro, sedução ou defloramento.

No Código Penal de 1890, Artigo 267,[*9] estava explícito que para haver um crime de defloramento deveria haver cópula, a mulher deveria ser menor de idade, porém maior que 16 anos e menor que 21 e o deflorador teria que empregar a sedução, o engano ou a fraude.[*10] A pena neste caso teria uma variação entre um a quatro anos de prisão celular.

Em uma peça escrita pelo Juiz substituto Getulio Evaristo dos Santos, de Espirito Santo do Pinhal em 23 de março de 1924, no qual ele afirma que os peritos médicos “não afirmavam que tivesse havido cópula”, pois o defloramento só é considerado com a introdução do pênis, mas o hímen pode ser dilacerado por outros objetos, além de que, segundo os peritos, “ o defloramento é ‘antigo’ e, entretanto, o exame foi feito a apenas oito dias após o que se alega a consumação do fato (fls. 2 e 12).”[*11] Neste contexto, o Juiz julgou improcedente a acusação, absolvendo o réu J.P. da instância. Observa-se que, para a jurisprudência do Artigo do Código supracitado, a cópula poderia ser completa ou incompleta, ou seja, a emissão de sêmen era irrelevante. Para evidenciar o crime, bastava o membro viril penetrar a vagina e romper a membrana hímen. Assim, pode-se notar que o momento consumativo do crime era a cópula ou a conjunção carnal.

Nos processos envolvendo crimes de defloramento na cidade de Piracicaba, pode-se observar que dos 16 analisados, 15 defloramentos são considerados antigos e apenas um foi determinado como recente. Destes, 13 foram confirmados como tendo completa a cópula carnal, nos três processos restantes a precisão do acontecimento tornou-se “prejudicada”, não especificando os motivos que dificultaram tal afirmação.

Para Gusmão, tornar-se-ia comum confundir “o momento consumativo do delito com a integralização jurídica em seus diversos graus”,[*12] ou seja, se a cópula foi incompleta ou a membrana levemente lacerada, como justificavam Souza Lima com o aval de Viveiros de Castro, não haveria crime de defloramento e sim atentado ao pudor, mudando com isso o rumo do processo.

Segundo Antunes, o Artigo 269 do Código Penal de 1890 tinha por definição o crime de estupro, como sendo o abuso do homem com violência contra uma mulher virgem ou não. Para os juristas, o termo violência não indicava apenas a força física, mas a utilização de outros recursos que viessem a impedir a mulher de recusar o ato ou consenti-lo.

Dentre estes recursos estavam os anestésicos, os narcóticos e o hipnotismo, como consta em um dos processos crimes analisados envolvendo Maria Custódia e Silvério de Paula Moraes, no qual Maria acusa Silvério de tê-la deflorado “depois de beber um pouco de vinho (...), que pouco depois ela, declarante perdeu os sentidos, e Silvério fez o que bem entendesse nela declarante (...), e desde esse dia sentia-se como governada pelo mesmo” e todas as vezes que se encontrava com o acusado, ele a deixava embriagada e mantinha relações freqüentes com ela. O exame médico confirmou o “defloramento estando a presente grávida de cinco ou seis meses”, mas sobre o uso do vinho ou violência não “podem pronunciar”.[*13] Neste contexto, o processo foi arquivado, pois o réu era considerado um homem honesto, segundo as testemunhas, incapaz de cometer tal ato. Em contrapartida, Maria Custódia era considerada “mocinha” e tinha um modo “livre de viver”.[*14] Assim, esse processo mostra-nos que os juristas tinham um conhecimento prévio e claro destes recursos.

Além disto, considerava-se o uso de violência na conjunção carnal se a vítima tivesse menos de 16 anos ou fosse mentalmente alienada. Havia uma atenuação da pena previsto no Artigo 263, caso a estuprada fosse considerada mulher pública ou prostituta e um agravante na pena caso o ato fosse praticado por duas ou mais pessoas.

Para Antunes, do ponto de vista formal, o termo defloramento era inadequado, pois a acepção original deriva da ruptura do hímen, não sendo esta a compreensão jurídica que prevaleceu para defini-la, ou seja, a lei respaldava a integridade sexual da mulher e não sua membrana.

Defloramento e sedução

Em 1940, o novo Código substituiu o termo defloramento por sedução. O Artigo 217 destacava como sedução o “ crime disposto com a conjunção carnal com mulher virgem de 14 a 18 anos, em que o sedutor se aproveita da ‘inexperiência’ ou ‘justificável confiança da vítima’, com ou sem ruptura himenal.”[*15] Assim, o crime de estupro, sedução e defloramento não tinha a ruptura do hímen como fator preponderante, não suprimindo a importância da perícia médico-legal da membrana, pois esta era fornecedora de indícios de sua existência ou não.

Em Piracicaba, também pode-se notar que a presença da membrana hímen não era considerada uma característica decisiva para o esclarecimento do crime de defloramento, idéia que fica evidente na exposição dos juristas como o Juiz de Direito da Comarca da cidade, Rafael Marques Candinho, na qual afirma ser comum “em medicina-legal, que a simples ruptura da membrana hímen, não caracteriza o defloramento”,[*16] idéia que já era corrente na cidade do Rio de Janeiro.

Observa-se ainda, segundo Caulfield, que entre os juristas havia várias divergências no tratamento dado à questão da honestidade e suas interpretações na relação com a questão do gênero, no qual um homem honesto seria um bom trabalhador, respeitável e leal; contrastando com isso, a mulher honesta seria aquela que demonstrasse uma virtude moral no sentido sexual.

Diversos conflitos políticos se revelaram nos debates sobre honra, intensificando-o, elevando as discussões sobre a definição de honra sexual e o papel dos juristas em sua defesa. Impulsionados pelos ideais de justiça social ou corporativismo autoritário no período entre 1920-1930, uma nova geração de juristas iria levar a preocupação social de seus predecessores a extremos mais radicais.

Pode-se concluir que os juristas do final do século XIX e início do século XX estavam em desacordo sobre as distinções entre tradições culturais brasileiras, a evolução natural das normas morais e a degeneração, mas estavam seguros de que, defender a honra no direito, representava a continuação da marcha para a elevação da civilização, iniciada pelos esforços da Igreja Católica. Porém, não foram bem sucedidos na tentativa de modernizar o conceito da honra e os padrões que objetivassem sua defesa.

Em Piracicaba...

Das três primeiras décadas do século XX, fica evidente que os juristas locais estavam em sintonia com os juristas da então capital do país, Rio de Janeiro, pois em grande parte dos processos, onde constam as peças de defesa dos advogados e relatórios dos juizes, nota-se que estes estavam cônscios tanto no modo de usar o Código, na defesa, acusação ou relato, quanto na jurisprudência corrente do período.

Dos 16 processos analisados das três primeiras décadas do século XX, 40% aproximadamente, apresentam peças de advogados ou relatos de juizes que atestam as afirmações supracitadas sobre o uso e conhecimento do Código Penal, bem como da jurisprudência. Assim, o Código Penal de 1940, ao substituir o termo defloramento por sedução, como citado acima,[*17] transformou em lei aquilo que já era aplicado pela jurisprudência do período analisado.

Além dos laudos médico-legais, observa-se em um dos processos analisados sobre crimes de defloramento, o depoimento de um médico-legista da cidade de Piracicaba, Dr. Alfredo José Cardoso, que “tendo que proceder ao exame médico na menor Amélia, em qualidade de perito nomeado, antes de leva-la para a mesa interrogou-a em presença do pai que a acompanhava, e dela ouviu que o defloramento tinha sido cometido com violência fazia oito dias, pelo justificante.”[*18] Ora, o advogado apropriou-se deste testemunho para argumentar que o depoimento da ofendida dizendo que José Pedro Albino a deflorou, contradiz sua confissão perante o perito e, desta maneira, o advogado teve êxito em sua peça de defesa, conseguindo, assim, a impronúncia do réu. Observa-se com isso o peso que possuía a palavra do perito quando este se pronunciava a favor ou contra no andamento do processo.

... Comportamento

(...) Fácil é vencer um coração de mulher; facilmente a paixão lhe ofusca a mente (...)
Safo[*19]

A frase acima em epígrafe pertence a uma poetisa da época clássica da cultura grega, mas é sugestiva, quando por meio dos autores analisados e dos processos, notamos os diversos discursos contidos nas falas dos juristas, defendendo que, a mulher não possuía desejos sexuais, ou seja, o amor pelo “macho”, fosse ele seu noivo ou não, a impedia de reagir ao defloramento. Dos 16 processos crimes analisados, em 7 consta que a vitima se casou no decorrer do julgamento, mas nem sempre com o acusado, tornando plausível afirmarmos que alguns casamentos eram “arranjados” em nome da honra da família.

Os exames de corpo-delito nos processos envolvendo crime de defloramento estão presentes em todos os processos analisados. Merece destaque o caso do Inquérito Policial denunciando Elias Miguel por defloramento da menor Eliza de Almeida Leme. Com a intenção de verificar se a menor estava com doença venérea, anulando desta forma a denúncia, pois o réu encontrava-se acometido pela doença, o médico não se pronuncia a respeito da vítima estar ou não infectada, mas constata “que Eliza de Almeida, sofre de Histeria e como tal está sujeita a grandes crises”.[*20] Com este laudo, o advogado de defesa poderia justificar o mau comportamento da menor, que freqüentava lugares considerados impróprios para o período.[*21] Mas neste “inquérito policial consta a confissão indireta do réu Elias Miguel, de haver (fls. 29) deflorado a menor (...) confissão corroborada pelo fato dele ter sido visto com a menor nas proximidades do local do crime e no dia em que o mesmo aconteceu (testem. Fls. 9 e 21)”. No decorrer do processo, o réu teve a prisão preventiva decretada, fato que provavelmente agilizou o seu matrimonio com a menor “em tempo”, arquivando, assim, o processo.

Nos 16 processos analisados, destaca-se que a vítima permitiu ser deflorada ou deixou-se seduzir, além de que, como afirma um dos juristas dos processos analisados, “seduziram”.[*22] Isto demonstra que as mulheres tinham desejos mas não era corrente a afirmação, pois “as mulheres defloradas (...) descreviam o defloramento como alguma coisa feita a elas; se não exatamente contra a vontade delas, pelo menos sem sua participação”.[*23] Com esse argumento elas buscavam a reparação do mal através do casamento, mas em mais da metade dos 16 processos na cidade de Piracicaba, não era isso o que acontecia.

Pode-se observar ainda, nos processos crimes de defloramento, que o mal comportamento não era um “privilégio” das mulheres, pois os homens também poderiam ser considerados mal comportados moralmente. Em um despacho da cidade do Rio de Janeiro datado em 08 de abril de 1907,[*24] fica evidente que o acusado “era noivo da ofendida desde abril” e que tinha ouvido murmúrios que colocavam em dúvida a honestidade de sua noiva, “mas em vez de sindicar da veracidade e procedência dos murmúrios como faria um homem sério e honesto”, ele achou mais fácil “arriscar-se a uma verificação experimental, (...) e o mais curioso é que depois da experiência, que confirmou os rumores, continuou as delícias do noivado.”

Nota-se no caso supracitado que o exame de corpo delito, realizado quinze dias após o ocorrido, não constatou sinais recentes de defloramento, assim o jurista recorreu a uma explicação de “Briand et Chaudé (medicine Legale, p. 93) – “a defloração de uma moça bem conformada efetuada recentemente deixa ordinários sinais evidentes (...). Todos os sinais desaparecem no fim de cinco dias”. Desta maneira, foi pedida a prisão preventiva do acusado, pois o Juiz decidiu que havia “prova legal para a prisão”. Assim, pode-se observar que apesar do exame de corpo-delito ter se colocado como um obstáculo para o advogado de defesa, a medicina legal sustentava o argumento de defloramento permitindo sua veracidade, demonstrando sua influência no julgamento dos processos envolvendo crime de defloramento.

Medicina Legal

Em um dos processos crimes de defloramento na cidade de Piracicaba envolvendo Francisco Pianelli e Maria José de Oliveira, pode-se observar que “o auto corpo delito da fls. 7 torna certo o fato atribuído ao réu de ser ele o autor do defloramento de Maria José de Oliveira. Embora ele negue ter sido ele quem deflorara a dita”. Nesse processo, o réu foi absolvido, pois a defesa argumentou que “para que o ato seja considerado crime, é preciso que seja resultado de sedução, engano ou fraude (artigo 267) (...). Um dos meios mais comum de sedução é a promessa de casamento”, mas a própria vitima declara que o réu não se casaria com ela. Com esta explanação, o Juiz determinou a improcedência da denúncia contra Pianelli.[*25]

Este processo de 1917 deixa claro, mais uma vez, que a jurisprudência determinava como crime não o elemento material, mas sim o moral, pois mesmo sendo considerado pelo exame de corpo delito como autor do defloramento, o que importou no julgamento de Pianelli foi a falta de evidências do crime de sedução engano ou fraude. Como ele não prometera casamento a Maria José e esta consentiu o defloramento, o réu ficou isento de qualquer responsabilidade sobre o ato praticado.

Destaca-se que a lei, nas três primeiras décadas do século XX, exigia no início da denúncia dos processos crimes de defloramento uma perícia feita pelos médicos legistas, na qual constava um pequeno levantamento feito pelo jurista que fazia parte do processo. Para isto, alguns “quesitos oficiais”[*26] faziam-se necessários e aparecem em todos os processos crimes da cidade de Piracicaba, cujo objetivo era esclarecer a veracidade da denúncia, sendo eles:

1º Se houve defloramento;
2º Qual o meio empregado;
3º Se houve cópula carnal;
4º Se houve violência para fim libidinoso;
5º Qual o meio empregado, se força física, se outros meios que privassem a mulher de suas faculdades e assim da possibilidade de resistir e defender-se;
6º Se podem determinar qual a época do defloramento.

Dos 16 processos analisados, no 1º quesito aparece a resposta afirmativa; no segundo, em sua maioria, os meios empregados foram “pênis ereto”, “membro viril”, ou “objeto de tamanho e/ou volume semelhantes”. A cópula carnal aparece, como já observamos, em 13 processos e no 4º e 5º quesitos os médicos não precisavam ou diziam estar “prejudicado” à época do defloramento. No último quesito, dos 15 processos apenas um considerou recente o defloramento.

O que se pode observar é que, por meio do exame de corpo delito, o médico legista poderia identificar e confirmar ou não a veracidade da denúncia, à qual seria incorporada ao corpo do processo, bem como indicaria a direção que o mesmo tomaria, se defloramento, estupro ou falso testemunho. Salienta-se que todos os processos crimes analisados diziam respeito a crimes de defloramento. Assim, o papel da medicina legal, no ambiente do direito, corroborava a acusação ou defesa do réu, além de que, na cidade de Piracicaba, sua influência nos julgamentos dos processos de defloramento era concomitante à que ocorria no Rio de Janeiro do mesmo período, ou seja, as três primeiras décadas do século XX.

Fontes e Arquivos

Arquivo do Fórum da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano (AFCP/AHIEP), Juízo de Direito, caixa 14-A.
Barreto, Plínio e Azevedo, Noé. Revista dos Tribunais. Publicação Oficial dos Trabalhos do Tribunal de Justiça de S.P., v. XI, 1914, Pp. 1.
Barreto, Plínio; Azevedo, Noé e Lima, Mário de Souza. Op. Cit. v. LVII, 1926, p. 605.
Revista do Direito. Defloramento – ausência de sinais recentes, valor de tal circunstâncias. Fascículo I, v. IV, abril de 1907, p. 434.

Bibliografia

Antunes, José Leopoldo Ferreira.“Sexo”, in : Medicina, leis e moral : Pensamento Médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1999, pp. 161-232.
Caulfield, Sueann. Em defesa da honra. Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
Fausto, Bóris. Crimes e Cotidiano. A Criminalidade em São Paulo (1880 – 1924). São Paulo: Brasiliense, 1984.
Gusmão, Chysolito De. “Sedução (Defloramento)”, in : Dos Crimes Sexuais; estupro, atentado violento ao pudor, sedução e corrupção de menores. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1981, pp. 184-231.
Pataro, Oswaldo. “A sedução em Medicina Legal”, in : Medicina Legal e Prática Forense. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 231.
Snell, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. São Paulo: Perspectiva,2001, p.59.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Clique nas imagens para visualizá-las em tamanho maior.
Topo
Graduado em História pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP em 2004. Professor de História na Rede Pública Estadual de Ensino do Estado de São Paulo e, atualmente, pesquisador junto ao Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, em estudos sobre “Educação Feminina na Primeira Republica (1889-1900)”.
Barreto, Plínio e Azevedo, Noé. Revista dos Tribunais. Publicação Oficial dos Trabalhos do Tribunal de Justiça de S.P., v. XI, 1914, pp. 104-5.
Caulfield, Sueann. Em defesa da honra. Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
Arquivo do Fórum da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano (AFCP/AHIEP). Juízo de Direito, caixa 14-A.
Fausto, Bóris. Crimes e Cotidiano. A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984.
AFCP/AHIEP. Idem,processo-crime contra Antônio Soares dos Santos, caixa 14–A, 1911.
Barreto, Plínio e Azevedo, Noé. Op. Cit. , v. XXVI, 1918, pp. 466-7.
AFCP/AHIEP. Idem, processo-crime contra Rafael Bocchetti, caixa 14-A, 1916-7.
Antunes, José Leopoldo Ferreira.“Sexo”, in : Medicina, leis e moral: Pensamento Médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1999, pp. 161-232.
Gusmão, Chysolito De. “Sedução (Defloramento)”, in : Dos Crimes Sexuais; estupro, atentado violento ao pudor, sedução e corrupção de menores. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1981, pp. 184-231.
Ibid., p. 189.
Barreto, Plínio; Azevedo, Noé e Lima, Mário de Souza. Op. Cit. , v. LVII, 1926, p. 605.
Chysolito De. Op. Cit., p. 190.
AFCP/AHIEP. Idem, processo-crime contra Silvério de Paula Moraes, caixa 14-A, 1915.
AFCP/AHIEP. Idem, processo-crime contra Silvério de Paula Moraes, idem. Ver depoimento da 5ª e 6ª testemunhas, p. 211.
Antunes. Op. Cit. , p. 211.
AFCP/AHIEP. Idem, processo-crime contra Rafael Bocchetti, caixa 14-A, 1911-7.
Antunes. Op. Cit. , p. 211
AFCP/AHIEP. Idem, processo-crime contra José Pedro Albino, caixa 14-A, 1908.
Snell, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 59.
AFCP/AHIEP. Idem, processo-crime contra Elias Miguel, caixa 14-A, 1908.
Ver depoimentos das testemunhas. Ibid., Idem, Elias Miguel, 14-A, 1908.
AFCP/AHIEP. Idem, processo-crime contra João Ferraz de Toledo, caixa 14-A, 1925.
Caulfield. Op. Cit. , p. 230.
Revista do Direito. Defloramento – ausência de sinais recentes, valor de tal circunstâncias. Fascículo I, v IV, abril de 1907, p. 434.
AFCP/AHIEP. Idem, processo-crime contra Francisco Pianelli, caixa 14-A, 1917.
Pataro, Oswaldo. “A sedução em Medicina Legal”, in : Medicina Legal e Prática Forense. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 231.