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Artigo publicado na edição nº 9 de abril de 2006.
A Procissão do Senhor Morto e as atividades da Semana Santa: representações culturais, poder e cidadania[*1]

Bárbara Caldeira

No século XIX, por conta do número de festas e solenidades religiosas realizadas na Bahia, já era possível identificar e organizar os eventos em um calendário que seguia o caminho dividido entre ciclos temáticos. Inseridas nesse conjunto de práticas cristãs, as procissões durante o período colonial e imperial exerceram um papel de destaque como representantes do referencial social das pessoas que buscava por meio de elementos culturais ocidentais, adaptá-los ao seu modo de pensar e viver, além de servirem aos propósitos do processo educativo e evangelizador da Igreja em todo cenário nacional.[*2]

O objetivo desse texto é descrever e analisar as relações de poder desenvolvidas entre a liturgia e as comemorações populares como pontos que circunscrevem à figura política dos governantes e povoam o imaginário político e religioso da Procissão do Senhor Morto na construção de um novo modelo de cidadão.

De fato, na Bahia, a Procissão do Senhor Morto ou do Enterro, tem uma história marcada por aspectos diferentes, que vão desde o aspecto religioso, envolvendo disputas entre as irmandades com suas particularidades até o olhar de cada indivíduo que acompanha ou já participou da procissão. Dentro do contexto da festa, há a presença de elementos que contribuem para a continuidade de uma tradição religiosa e social, a exemplo da experiência de vida dos espectadores que, aos olhos da religião, permitem consentir à Sexta-Feira Santa o “verdadeiro” caráter de fé, que ao longo dos anos serviu como condutor do imaginário baiano e integra seu patrimônio histórico-cultural.

Realmente, conforme o historiador João da Silva Campos, essa festa já era realizada em Portugal e a população de Lisboa comparecia numerosamente para festejar e depositar na “sala dos milagres”, os ricos donativos “por muitos de milhares de pessoas de todas as províncias do país devido aos milagres que lhes são atribuídos (...)”.[*3]

As celebrações da Semana Santa eram, nesse período, por conseguinte uma oportunidade para aqueles cristãos que precisavam acalmar sua consciência e se entregarem à redenção religiosa, de forma que deixassem suas almas e corpos no caminho da salvação, mais próximas da Igreja e de suas aspirações voltadas para a sociedade baiana.

Para além do caráter religioso, as celebrações da Semana Santa e, principalmente, a Procissão do Senhor Morto atuavam como personagens que tinham como cenário um espaço sócioeconômico ambientalizado pelo confronto sempre presente entre “poderosos” e “pobres”, onde, no campo dos vencidos, estavam as permanentes vitórias dos ricos e da elite baiana. Valter Fraga Filho nos oferece uma visão sobre as atitudes de parte da sociedade baiana frente aos mendigos no século XIX:

Desde a Idade Média, a imagem dos pobres pedintes estava impregnada de simbologia sagrada. A mão da caridade para eles estendida extinguia os pecados e assegurava a salvação da alma após a morte. Era como se eles tivessem de existir para proporcionar a salvação dos mais afortunados.(...) Por isso mesmo, dar esmolas aos mendigos era ato que as pessoas buscavam cultivar no seu cotidiano e de forma especial nos momentos mais importantes da vida.[*4]

Este trecho nos remete a fazer algumas inferências no campo da identidade que se buscava ter por parte das diversas classes sociais que ali se reuniam, cada uma com uma finalidade e uma percepção para com a festa e seus significados; o domínio do imaginário, portanto, denunciava uma mistura dos diferentes grupos no cenário da festa: beatas, mendigos, vadios e governantes.

Dessa forma, dois espaços dividem fundamentalmente a festa: a igreja e as ruas. As ruas que ambientam os rituais das procissões, em geral, ficavam perdidas no contexto absorvido pela divisão lógica das práticas eclesiásticas e laicas. Esse espaço termina por se enveredar entre caminhos que encerram contradições e ambigüidades pertinentes às ações religiosas: um lugar profano servia de palco para as celebrações sagradas da vida cristã. Estas, por sua vez, permeiam o cotidiano da festa; entenda-se nesse caso, que a liturgia se define como um culto público e oficial instituído pela Igreja apresentando-se com variações presentes nas saudações, atos penitenciais, leitura de evangelhos, entre outros.

No contexto do espetáculo, cada devoto tinha seu papel e lugar definido, com controle temporal dos rituais, que ora ditava o tempo para rezar, ora ditava o momento de choros e cânticos. A própria escolha das pessoas para cada papel estava vinculada à categoria social que se enquadrava ao novo ideal de cidadão. A prostituta Madalena sempre era representada por negras ou mestiças devido à “realidade” que se desejava alcançar durante a encenação. Em contrapartida, o viajante inglês Henry Koster que, por recomendações médicas veio ao Nordeste Brasileiro curar-se de tuberculose, parece admirado por não haver “diferenças” entre a classe feminina em Recife. “As mulheres ao entrar, sejam brancas ou de côr, ficam junto a essa grade, sentando-se no chão, no grande espaço aberto no centro.”[*5]

A vigilância hierárquica, por sua vez, demonstrava a necessidade de centralizar a figura do imperador na imagem de Cristo. Sempre presente nas comemorações, Dom Pedro I e família impunham suas participações com o objetivo de vigiar e analisar a disciplinas que exigia a ocasião e o dever do bom cristão e cidadão, tendo o exame como última etapa organizadora do dia, pois, era “o culto religioso, considerado no Brasil, pretexto de reuniões públicas nas quais o amor próprio rivaliza com a devoção (...)”.[*6]

Essas normatizações atendiam, de certa forma, às aspirações civilizatórias defendidas pelos liberais durante o período imperial. Uma boa “educação social” era pleiteada por aqueles que compravam e seguiam os manuais de boas maneiras que incluíam novos cuidados com a higiene pública e privada, para não falar da reforma que os costumes praticados nas festas e procissões sofreram com a ação das idéias francesas trazidas pela Corte e brasileiros letrados que haviam aprendido os “hábitos corretos” e ideais de convivência social.[*7]

No campo político, as constantes discussões travadas entre liberais e monarquistas mostram que os princípios de controle e disciplina aparecem nos festejos da Semana Santa. Já que os acontecimentos pertinentes à morte podem nos dizer muito sobre a realidade que contextualiza os sistemas simbólicos ao qual se refere Pierre Bourdieu[*8] às práticas políticas e litúrgicas da festa que afinal, nos dizem qual a “imagem que uma sociedade tem de si mesma”.[*9]

Segundo a historiadora Martha Abreu, os liberais viam as festas religiosas como atraso frente ao desenvolvimento do país graças a um intenso grau de superstição da população. Do outro lado, os radicais bradavam a separação entre Estado e Igreja, ao passo que os moderados temiam o perigo que essa separação poderia trazer ao permitir que a igreja ganhasse uma certa liberdade.[*10]

A Bahia seguiria os mesmos caminhos que as províncias brasileiras adotaram com a vinda e morte de Dom João VI: uma maior intensidade nos festejos no império. Esse aumento foi expressivo em todo o território nacional e caracterizado em ambas as ocasiões por objetos principais das festas: o rei e a morte. Não seria exagero afirmar que entre as relações de poder neste cenário, estabelecido os limites entre público e privado, e até onde essas duas instituições se misturam, há uma forte tendência de exclusão social em ambos os grupos envolvidos, cada um a seu modo. Essa exclusão busca uma explicação nos atos espontâneos diante da imagem, ou melhor dizendo, do corpo.

O beijar os pés, o toque no corpo redime os pecados cometidos ou pensados, garantido a absolvição temporária. Se pensarmos sobre todos os aspectos e ritos praticados durante a festa, é fácil realizar analogias ou referências sem meio termo às práticas litúrgicas, sejam administrativas, políticas ou financeiras.

O que nos interessa, no entanto, se refere ao jejum obrigatório e a abstinência da carne ordenada pela Igreja aos fiéis durante a Quaresma com término somente ao meio-dia do Sábado de Aleluia com o toque dos sinos.

Com efeito, em carta a D. Fernando José de Portugal, D. Rodrigo de Souza Coutinho relata um acontecimento durante a Semana Santa no ano de 1798. O documento denuncia as supostas idéias liberais do Padre Francisco Agostinho Gomes e os primeiros indícios dessa “loucura incomprehensivel (sic) e por não entenderem seus interesses se achão infectos dos abominavis principios”.

Esse comentário feito pelo próprio D. Fernando foi transmitido por D. Rodrigo acerca de um banquete oferecido a vários personagens partidários da mesma ideologia, em plena Sexta-Feira Santa, com farta carne vermelha à mesa.

Sua majestade ordena que VS. examine logo este ultimo facto e achando-o verdadeiro, faca prender tanto a elle como aos seus Amigos sectarios dos mesmos principios e os faca logo julgar com toda severidade das Leis para que o castigo de taes Reos seja verdadeiramente exemplar e contenha semelhantes criminosos. Ripito (sic) novamente a VS., de ordem de S. Majestade que premio e castigo são dois Polos sobre que se estriba toda a Machina Politica e que no momento presente toda a vigilancia contra os máos he indispensavel(...).[*11]

Dois pontos a serem analisados: o próprio fato do desrespeito às leis eclesiásticas e a afronta de uma figura da Igreja à soberania do monarca e à sua imagem. O que está em jogo nesse caso, compromete mais do que uma desobediência ao jejum quaresmático, mas o confronto entre a nova ordem política em crescimento e a resistência do poder que a continuidade monárquica manteria para os seus seguidores, demonstrando a forte relação estabelecida entre Igreja e Estado.

Contradições à parte, o fato é que, o árduo trabalho realizado pelos propagandistas do Império encontrava um forte entrave na campanha elaborada pelo grupo liberal que clamava pelo fim das superstições no imaginário popular e o início do desenvolvimento urbano no país. Os relatos dos viajantes estrangeiros ao Brasil durante o século XIX deixam claro que a aversão e admiração deles ao constatar que nas terras de Dom João e depois Dom Pedro I, as pessoas continuavam a cometer atos revolucionários e crendices bárbaras. Na descrição do pintor francês Jean Baptiste Debret, a Procissão do Senhor Morto,

examinando de sangue frio, todos esses detalhes não se pode deixar de verificar o estilo barbaro e já agora grotesco do século que os criou. Como não sorrir ante estas incoerencias ridiculas tão religiosamente conservadas, se esquece-mos que os inventores dessas cerimonias foram forçado a tais exageros para impressionar os povos ignorantes, que julgavam apenas com os olhos?[*12]

Enquanto Debret encarregou-se de “civilizar” os festejos culturais locais, Koster entre 1810 e 1813, em sua viagem traz anotações primordiais do cotidiano comemorativo nos domínios de D. João VI.

No dia seguinte, Sexta-Feira Santa, a decoracao das igrejas, o traje das mulheres e mesmo a maneira dos dois sexos mudaram. Tudo sombrío. (...) a cortina caiu imediatamente, deixando ver uma cruz enorme.(...) Um homem, de cabeleira curta e tunica verde, era S. Joao, e uma mulher, de joelhos a pe da cruz era Madalena. Informaram-me que, para manter o carater, os costumes da mulher não eram muitos puros.(...) Ficara completamente assombrado. Pensei que haveria de ser algo surpreendente, mas nunca a ideia de que levariam tao longe a representação.[*13]

Para além da atmosfera religiosa, as festas refletem em grande parte a situação política imperial. Em 1831, o imperador decreta uma lei que modifica o horário da procissão, antes realizada entre oito e nove horas da noite, e a partir de então sai durante à tarde por volta das quatro horas. Isso se deu graças às revoltas populares e de escravos quilombolas constantemente presentes nas principais províncias desde a época da independência e que seriam estratégias de controle da possível disseminação de idéias liberais que acometiam a população fiel e cristã dos princípios monárquicos e decentes. Em Salvador, o Diário da Bahia publica uma carta do administrador do teatro público ao governador alertando o prejuízo que as finanças sofreriam com a suspensão das peças durante os dias comuns, só sendo realizadas em datas cívicas e santificadas.

Na mesma semana, o jornal noticia a fuga e captura de um grupo de Galés do Arsenal da Marinha, evidenciando que a decisão anterior do governo, relativas às manifestações culturais na cidade se tratava de uma medida coercitiva a qualquer motim ou rebelião e uma facilitação do trabalho policial nas ruas baianas.[*14]

Realmente, ao que parece, seria muito mais cômodo e seguro às forças governamentais esse tipo de calendário, já que só precisariam reunir e reforçar a Guarda Nacional nesses dias, coisa que comumente acontecia já há um bom tempo. Por outro lado, além do elemento segurança pública, a figura do imperador também necessitava de cuidados. A disputa entre a identidade social e jurídica dos governantes caminhava pelo âmbito da sujeição de um pacto entre o discurso e a prática. Por fim, os aspectos aqui discutidos, nos apresentam a pessoa mista do imperador.

Assim, era preciso manter a fé popular em sua pessoa, garantindo a campanha que a morte e Deus faziam durante as procissões e cortejos. Segundo Iara Souza, esse era o momento que o poder monárquico tinha para se comunicar com o povo através de “mecanismos sociais”.[*15]

O que nos mostra a Procissão do Senhor Morto, com suas lamentações e encenações, se encontra no jogo dos limites da festa, sobre a contradição que ele instaura entre a ordem e a espontaneidade, sobre as resistências do imaginário à implantação dos novos hábitos cerimoniais e na conduta do novo cidadão brasileiro.

Dessa forma, Salvador reflete, entre tantos aspectos comuns e contraditórios às províncias imperiais, o controle político e social que os órgãos administrativos e clericais exerciam no século XIX, apoiados nos hábitos do dia-a-dia coletivo, no trabalho de plantar nas mentalidades e coração do povo um modelo de cidadania ideal calcada no combate à vadiagem, na defesa da moral, da civilização e em nome de Deus e do imperador.

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Graduada em História pelas Faculdades Jorge Amado e atualmente integrante do Projeto de Pesquisa “Família, Migração e Educação: estudo comparativo de movimentos sociais pela terra (Alagoas, Bahia e Pará)” financiado pela FAPESB e desenvolvido no Curso de Pós-graduação do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador sob coordenação da Dra. Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti.
Este artigo é fruto da Pesquisa intitulada “Verso e Reverso da Liturgia: cotidiano das práticas e representações culturais na Procissão do Senhor Morto na Salvador Contemporânea” financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e desenvolvida durante a graduação na categoria de Iniciação Cientifica em 2005, já concluída, sob orientação da Professora Dra. Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti. A primeira versão desse trabalho foi apresentada no XXIII Simpósio Nacional de História - História: Guerra e Paz, 2005, Londrina.
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