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Artigo publicado na edição nº 14 de setembro de 2006.
A imprensa negra em São Paulo no início do século XX

Pedro de Souza Santos

Tendo como ponto de partida os jornais da imprensa negra,[*1] produzidos em São Paulo no período de 1915 a 1937, pretende-se, neste artigo, refletir sobre algumas questões decorrentes da sua interpretação enquanto fonte histórica na configuração do campo da história da educação, particularmente da população negra.

A imprensa negra, embora criada e produzida para um público segmentado, propagou-se para leitores diversos e, no período posterior à abolição, destacou-se tanto no sentido de combater o preconceito racial em suas múltiplas manifestações quanto para tentar afirmar socialmente os negros, seja pela instrução, seja pela luta contra o que, para alguns, era tido como apatia. Neste sentido, os periódicos da imprensa negra foram um instrumento para a maior integração deste grupo na sociedade republicana das primeiras décadas do século XX.

Alguns desses jornais refletiam as inquietações de parte da população negra e, num sentido mais amplo, tinham um caráter pedagógico e instrutivo, pois, além do forte apelo político para a tomada de uma certa consciência considerada adequada por seus editores, apresentavam em suas páginas matérias relacionadas ao cotidiano de parte dessa população, o que pode ter contribuído para o processo de formação de sua subjetividade. Além disso, a divulgação de eventos do cotidiano – tais como festas, bailes, concursos de poesia e beleza, que raramente apareciam nos periódicos da grande imprensa - pode também ter contribuído para um processo de auto-reconhecimento e construção da identidade por meio da observação e identificação do seu patrimônio cultural.

A preocupação com a educação é constante nesses jornais, assim como a missão de combate ao analfabetismo:

Aos leitores

[...] o combate ao analphabetismo, essa praga que nos fazem mais escravos do que quando o Brazil era uma feitoria; [...]. Vamos, meus amigos um pouco de boa vontade, porque combater o analphabetismo é dever de honra de todo brazileiro.
Nós, homens de côr, conscientes dos nossos deveres, para com a nossa muito amada patria, desejamos que os homens, mulheres e crianças da nossa raça aprendam a ler para obterem um lugar digno no seio da sociedade brazileira. (O Alfinete, 1919, p. 1)

Ao lado da preocupação com o combate ao analfabetismo estava a necessidade de lutar contra tudo aquilo que era considerado imoral para o negro. Nessa perspectiva, inúmeras matérias de diversos jornais criaram um código moral e divulgaram uma série de comportamentos que consideravam modelares para o negro, e, ao mesmo tempo, condenavam aqueles outros tidos como potencialmente perniciosos:

A preguiça

Segundo uma antiga máxima em que está contida uma verdade profunda, é a preguiça a mãe de todos os vicios. [...].
O homem que trabalha, é uma verdade corriqueira não tem tempo disponível para engendrar cousas que prejudiquem a outrem. [...].
Onde se encontram os preguiçosos?
Nos botequins, nas esquinas, pelas ruas, a esmo ou junto nas mesas de jogo, completamente esquecido de tudo. (FREITAS, O Progresso, 1932, p. 2).

A crítica à preguiça e a outros comportamentos considerados inadequados não deve ser entendida como sinônimo de uma visão negativa dos próprios periódicos em relação à população negra. Tampouco deve ser dela deduzida uma suposta vida desregrada por parte dos negros. Considerando que esta população estava inserida em uma sociedade preconceituosa que, a todo momento associava ao negro características negativas, é possível pensar que tais mensagens se constituíam, antes, numa forma de combate ao preconceito e de integração social, tomando para si valores socialmente valorizados também por outros grupos sociais. Cabe aqui retomar as palavras de Robert Slenes: “A afirmação de que os escravos viviam em geral na licenciosidade, na promiscuidade ou na prostituição conduz facilmente ao argumento de que eles foram profundamente marcados por essa experiência” (1989, p. 190).

Nesse sentido pode-se entender que a valorização de certos padrões morais vinculada nesses jornais funcionou naquele contexto como uma estratégia de afirmação do negro enquanto sujeito que lutava por espaços na sociedade.

As matérias, em geral, não estavam ordenadas em uma seqüência; encontravam-se dispostas arbitrariamente pelas páginas e, ao que parece, a preocupação dos redatores era a de ocupar todos os espaços do jornal. Os anúncios eram colocados geralmente na última página e, pela leitura dos mesmos, pode-se perceber que muitos deles eram de comerciantes brancos, embora os jornais não façam nenhuma menção ou diferenciação sobre isso. A respeito dos anúncios, Miriam Nicolau Ferrara observou que: “Os anúncios publicados eram pagos, contribuindo para manutenção do jornal” (1981, p. 55).

O fator econômico dificultava o acesso e a circulação destes jornais entre grande parte da população negra, embora não os impedisse de modo definitivo. Correia Leite, fundador e colaborador do jornal O Clarim da Alvorada, esclarece que “ninguém comprava e nós dávamos os jornais gratuitamente. Pagávamos o papel com nosso dinheiro e sempre tínhamos prejuízo”. (apud FERRARA, 1981, p. 50).

Uma característica comum em grande parte desses jornais era a prescrição de condutas e o incentivo a determinadas ações:

Carta sem cor

Devemos nos preocupar menos com o passado da raça, tratando agora de educal-a, preparando-a para as formidaveis lutas de amanhã.
O passado foi horrivel e o presente pessimo; que devemos esperar do futuro?
Tudo, se tivermos o livro por escopo; nada se continuarmos o culto das tabernas! (FLORENCIO, O Alfinete, 1921, p. 2-3).

Outros artigos procuravam lembrar da contribuição dos negros na formação do Brasil. Assim, pretendiam (re)afirmar a sua brasilidade e o seu nacionalismo, o reconhecimento do seu trabalho para o desenvolvimento do país e do seu exemplo de luta:

O negro no Brasil não só devastou florestas; andou a cata do ouro e de outros mineraes, plantou os primeiros pés da rubeacea que nos deu toda riqueza, tudo quanto temos, elle, além de ser um factor da formação da grandeza primitiva, - é o brasileiro que se não cança de luctar com devotado amor, em todas as actividades humanas é o hercules das forças que se enquadram a engrandecer os incontaveis factores da nossa nacionalidade porque, é um brasileiro luctador e forte. (AGUIAR, O Clarim da Alvorada, 1928, p. 1)

Este artigo foi publicado como parte das comemorações do 13 de maio que, há pouco havia se passado. Pode-se interpretar que Jayme de Aguiar, ao lembrar da importância do trabalho escravo para o crescimento da economia brasileira e da participação do negro no engrandecimento da nação, pretendeu dentre outras coisas, reforçar no leitor uma idéia de nacionalidade que estava atrelada a sua luta cotidiana. De outra maneira, ser brasileiro estava relacionado a sua luta por espaços naquela sociedade.

Algumas matérias apresentavam histórias de vida de negros que traziam em suas trajetórias, embora distintas, aspectos comuns como a origem, a determinação e o lugar social alcançado. Essas matérias procuravam, através dos exemplos, mostrar aos leitores negros a possibilidade de ascensão social. Em outros termos, apresentavam biografias de negros que, mesmo diante de todas as dificuldades advindas do passado escravista, conseguiram superar a sentença de submissão social a qual estavam condenados.

ENGº ANTONIO MARTINS DOS SANTOS

Em 2 de setembro de 1911 em Bom Sucesso, estado de Minas, nasceu Antonio Martins dos Santos. De condição humilde, sempre sentiu necessidade de trabalhar para vencer. [...] Antonio conseguiu formar uma base sólida para seus estudos vindo, em 3 de fevereiro de 1928, continuar sua instrução no meio mackenzista. [...]. Como estudante, soube também vencer. Abraçou por ideal, o estudo da engenharia; especializou-se em eletricidade, terminando o curso e defendendo tese em 19 de março de 1936. [...] Antonio adormeceu aqui, na madrugada do dia 24 de abril de 1937, para acordar na região da vida eterna, onde recebeu a corôa de gloria do Senhor, justo juiz. [...] lembramo-nos também do belo exemplo de mansuetude e luta, de humildade e renuncia, que Antonio Martins dos Santos nos deixou. (ANDERS, A Voz da Raça, 1937, p. 4).

Segundo este jornal, Antonio Martins alistou-se na Frente Negra em 1932. “Em 1935, juntamente com outros elementos, fundou o curso de formação social, e aí foi um dos mais brilhantes professores” (SOUZA, A Voz da Raça, 1937, p. 4). Foi membro do conselho da Frente Negra e redator chefe deste jornal.

Antonio Martins provavelmente não era conhecido de grande parte dos leitores. No entanto, ao descreverem nesta matéria a sua trajetória de vida e sua lição de luta, os editores deste jornal possivelmente contribuíram para a formação de um espírito mais combativo e de busca por espaços naquela sociedade.

O jornal A Liberdade, em suas duas primeiras edições no ano de 1919, traz uma matéria relatando a história de vida de Luiz Gama:

Este era natural da Bahia, foi vendido com outros escravos para o Rio de Janeiro, ahi foi elle comprado pelo mercador de escravos da cidade de Lorena, Antonio P. Cardoso. Remettido a cidade de Campinas, onde não encontrou quem o comprasse por ser bahiano, e tendo aprendido a ler escrever e contar, dotado de rara intelligencia, em breve tempo poude adquirir sua liberdade. (DOMINGUES, A liberdade, 1919, p. 1)

Compreender esta história implica lembrar a fama de parte dos escravos baianos, tidos como revoltosos e “fujões”, o que se deve principalmente aos desdobramentos e repercussão da Revolta dos Malês, ocorrida no ano de 1835 em Salvador.

O jornal A Liberdade teve o seu primeiro número publicado no dia 14 de julho de 1919, numa clara alusão à Revolução Francesa, especificamente ao 14 de julho de 1789, com a Queda da Bastilha. Assim, o seu título é uma menção a um dos preceitos desse movimento: a liberdade. Neste sentido, os redatores deste jornal procuraram publicar nos seus primeiros números matérias que pudessem contribuir para o esclarecimento e alargamento do conceito de liberdade.

O texto configura-se como tal na relação com o leitor. Neste sentido o leitor não é passivo e a atividade de leitura não significa a transposição literal de conteúdos. “Supõe-se que assimilar significa necessariamente tornar-se semelhante àquilo que se absorve, e não torná-lo semelhante ao que se é, fazê-lo próprio, apropriar-se ou reapropriar-se dele”.(DE CERTEAU, 1994, p. 261).

Partindo da premissa de que o ato de ler não é um processo de passividade, e sim de interação, provavelmente a leitura dos diversos artigos publicados nesses jornais para além da idéia de moldar segundo os modelos e idéias que eram apresentados e/ou incentivados, sinalizam para a possibilidade do reconhecimento de que era possível ao negro almejar outros espaços naquela sociedade do que os comumente.

Alguns autores, como Clovis Moura e Roger Bastide, dentre outros, que estudaram a imprensa negra, evidenciaram e afirmaram que esses jornais tinham uma circulação restrita e que eram dirigidos a uma elite negra letrada. Desta maneira ignoraram em suas análises outras possibilidades de acesso e leitura desses jornais. Antunes Cunha, militante negro que escreveu diversas matérias no jornal O Clarim da Alvorada, explica que, a princípio, a circulação era restrita a um público letrado, fato depois superado, pois “junto a muitos desses reunia-se gente sem estudo para ouvir as notícias. Avó, pai sem leitura, comprava o jornal, para que os netos, os filhos lessem para eles” (CUNHA apud GONÇALVES & SILVA, 2000). Assim, a leitura poderia ser ampliada para além dos segmentos alfabetizados.

Bibliografia

BASTIDE, Roger. “A imprensa negra do Estado de São Paulo”. In: Estudos Afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973.
DAVIS, Natalie Zemon. “O povo e a palavra impressa”. In. __________. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França Moderna. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista 1915-1963. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1981.
GARCIA, Marinalda. Os arcanos da cidadania: A Imprensa Negra paulistana nos primórdios do século XX. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1997.
GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. “Movimento negro e educação”. In: Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n. 15, set/out/dez. 2000.
MOURA, Clóvis. “A Imprensa negra em São Paulo”. In: Imprensa Negra. Estudo crítico de Clóvis Moura. Legendas Miriam Nicolau Ferrara. São Paulo: Imprensa Oficial, Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo, 2002, Edição fac-similar.
SLENES, Robert W. “Lares negros, olhares brancos: histórias da família escrava no século XIX”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 8, n. 16, mar/ago. 1988.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: Escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998.

Fontes

AGUIAR, Jayme de. “O negro no Brasil”. In: O Clarim da Alvorada, São Paulo, n. 5, 3 jun. 1928, p. 1.
ANDERS, Lindolfo K. “Engenheiro Antonio Martins dos Santos”. In: A Voz da Raça, São Paulo, n. 67, jul. 1937, p. 4.
“Aos leitores”. In: O Alfinete. São Paulo, n. 74, 28 set. 19121, p. 1.
DOMINGUES, J. A Liberdade. São Paulo, n. 1, 14 jul. de 1919, p. 1.
FLORENCIO, Benedicto. “Carta sem cor”. In: O Alfinete, São Paulo, n. 77, 11 de nov. 1921, p. 2-3.
FREITAS, Adalberto Pires de. “A preguiça”. In: O Progresso, São Paulo, n. 5, jul. 1932, p. 2.
SOUZA, João de. “Homenageando um herói”. In: A Voz da Raça, São Paulo, n. 67, jul. 1937, p. 4.
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Mestrando em Educação pela Universidade São Francisco Itatiba/SP e professor da rede pública estadual. Em sua pesquisa, investiga o processo de educação dos negros em São Paulo, tendo como fonte principal os jornais da imprensa negra. Contato: tocadopedro@hotmail.com
Segundo Marinalda Garcia, a imprensa negra paulistana foi a continuidade dos antigos jornais e publicações de entidades que funcionaram na época do processo abolicionista.