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Artigo publicado na edição nº 16 de novembro de 2006.
Quando o homem domina o tempo: a geração beatnik e a gênese de mitos modernos

Emilio Cordeiro

“Oh cara! cara! cara!” balbuciou Dean. “E isso não é nem o começo – e agora finalmente estamos juntos indo para o Leste, nunca tínhamos ido pro Leste juntos, Sal, pensa nisso, vamos curtir Denver juntos e ver o que todos estão fazendo, mesmo que isso não nos interesse muito, a questão é que nós sabemos o que aquilo significa e sacamos a vida e sabemos que tudo está ótimo.” Depois, me puxando pela manga, e suando horrores, ele me segredou: “Agora saca só esse pessoal aí na frente. Estão preocupados contando os quilômetros, pensando em onde irão dormir essa noite, quanto dinheiro vão gastar em gasolina, se o tempo estará bom, de que maneira chegarão onde pretendem – e quando terminarem de pensar já terão chegado onde queriam, percebe? Mas parece que eles têm que se preocupar e trair suas horas, cada minuto e cada segundo, entregando-se a tarefas aparentemente urgentes, todas falsas; ou então a desejos caprichosos puramente angustiados e angustiantes, suas almas realmente não terão a paz a não ser que se agarrem a uma preocupação explícita e comprovada, e tendo encontrado uma, assumem expressões faciais adequadas, graves e circunspectas, e seguem em frente, e tudo isso não passa, você sabe, de pura infelicidade, e durante todo esse tempo a vida passa voando por eles e eles sabem disso, e isso também os preocupa num círculo vicioso que não tem fim.”

De carona com um casal de turistas chatos, Sal Paradise ouviu essas palavras vindas de Dean Moriarty: um xamã, um louco frenético, um amante da vida, um beat. Conforme Kerouac já ressaltou nas inúmeras entrevistas e conferências que foi obrigado a dar após o explosivo sucesso editorial de seu livro mais lido, beat pode significar muitas coisas: exaustão, andamento rítmico (do jazz especialmente), pulsação, batimento cardíaco, batida, porrada, enfrentamento, choque, malandro, safado, etc. Um beat é um peregrino esfarrapado e sem dinheiro, perseguindo a “beatitude”, um estado de perfeita satisfação e plenitude, a epifania, a compreensão de que tudo é Um: a abolição do tempo devorador e a imersão sincrônica e mística no presente. Dean e Sal, personagens do autobiográfico On the Road, são, respectivamente, Neal Cassady e Jack Kerouac na vida real. O romance se passa no fim da tumultuada década de 40, na qual o mundo, o cotidiano e as pessoas mudaram. É a época do início da Guerra Fria, quando os Estados Unidos eram vistos pelo Ocidente como heróis infatigáveis e libertadores que trazem as últimas novidades do “paraíso da democracia”. Esses são os anos que antecederam o boom do capitalismo ocorrido no triênio 1950-1980.

Nem todos se orgulham da América

No pós-guerra era indiscutível a invejada supremacia econômica dos EUA. Enquanto a Europa foi palco de um dos conflitos mais sangrentos do século XX, os Estados Unidos passaram praticamente intocados pela guerra. Entre 1941 e 1945, o PNB (Produto Nacional Bruto) americano aumentou em dois terços, e, em 1945, o país contava com dois terços da produção industrial do mundo. Em 1950, o PIB per capita dos EUA era o dobro do da França e da Alemanha e mais de cinco vezes o do Japão. Novas tecnologias surgiam, as distâncias se encurtavam e a velocidade de circulação das informações aumentava. Nesses anos viu-se a difusão em larga escala dos materiais sintéticos, dos plásticos, dos polímeros e também das embalagens descartáveis. Tudo parecia concorrer para uma aceleração da vida, agora mais prática e bem aproveitada. O tempo livre não destoava dessa atmosfera de otimismo frenético: a diversão era encontrada no cinema, na roda-gigante e na montanha-russa.

Na década de 50, os Estados Unidos eram modelo para o Ocidente. O Plano Marshall lhes deu a capa do puritano generoso e o Macarthismo a vestimenta do guardião dos povos ditos livres. O mundo fitava com inveja o american way of life. Dizia-se que todo americano varão tinha um carro, uma casa, uma mulher e um emprego. Enquanto o marido estivesse trabalhando, a mulher cuidaria da casa e dos filhos com a ajuda dos mais variados eletrodomésticos. O lema era rapidez, praticidade e conforto. O americano médio tem de executar suas tarefas de forma eficiente, com diligência, sendo direto e franco. O tempo livre diferenciava-se categoricamente do tempo do dever. Dever perante a família e a sociedade: os cuidados do lar e o trabalho. Os tempos do quotidiano são cadenciados pelo relógio e pelo planejamento, que garantia conforto, bem-estar e felicidade. Essa é maneira de viver dos americanos. Os beatniks iam na contracorrente desse estilo de vida: em vez de buscar raízes, garantias e estabilidade, buscavam algo mais, algo que o dinheiro não poderia comprar.

O tempo da metrópole e o tempo da estrada

Sal Paradise é um universitário. Seu relato concentra-se nos períodos de férias, passados em viagens pelos Estados Unidos. No livro existe uma clara diferenciação entre a vivência do tempo da rotina do capitalismo industrial, da metrópole, e a percepção do tempo na estrada. Sal descreve a vida no campus como tempo de vagabundagem. Passava a maior parte do período de aulas dormindo. A cidade é morada do tédio para alguns viajantes, por isso resolvem deixá-la. Na estrada, tirando um cochilo em Colorado, Sal tem sonhos recobertos por teias de aranha sobre sua vida no Leste dos EUA. Para Sal, a vida em Nova York tem algo de viscoso e empoeirado. Essa é uma maneira de sentir a vida urbana, próxima talvez do spleen de Baudelaire.

A vida na cidade é demasiado acelerada nas multidões enfurecidas:

De repente lá estava eu na Times Square. Tinha viajado doze mil quilômetros pelo continente americano e estava de volta à Times Square; e ainda por cima bem na hora do rush, observando com meus inocentes olhos de estradeiro a loucura completa e o zunido fantástico de Nova York com seus milhões e milhões de habitantes atropelando uns aos outros sem cessar em troca de alguns tostões, um sonho maluco – pegando, agarrando, entregando, suspirando e assim poderiam ser enterrados naquelas horrendas cidades-cemitério que ficam além de Long-Island.

O beat observa a multidão enfurecida como quem olha para animais em uma jaula. Vê falta de lógica e de sentido no estilo de vida burguês. Há crueldade e competição no ar, tudo em função de objetivos e sonhos vazios. A realidade das metrópoles é triste, seus habitantes vivem e se movem apenas em função do dinheiro. A metrópole é uma prisão, é um hospício, é um cemitério de homens.

Para poder sobreviver, mesmo os “iluminados” têm de vender sua força de trabalho. Os beats também precisam de dinheiro. Logo que juntam um pouco partem. Sal descreve o trabalho de Dean como manobrista de um estacionamento em NY da seguinte maneira:

O mais fantástico garagista do mundo, capaz de dar marcha ré a sessenta por hora num corredor exíguo e estreito, parar rente à parede, saltar do carro, correr entre os pára-choques, pular para dentro de outro, manobrá-lo a oitenta por hora num espaço minúsculo, bater a porta com tanta força que o carro ainda balança enquanto ele sai voando em direção à cabine de controle como um atleta na pista, alcança um novo tíquete para um recém chegado e, enquanto o motorista ainda está sentado no carro, pula literalmente sobre ele, liga o motor com a porta entreaberta e sai cantando os pneus em direção ao lugar disponível mais próximo, manobra outra vez, trava bruscamente, salta fora, inicia nova corrida entre os pára-choques, trabalhando assim oito horas por noite sem parar, nos rush dos fins de tarde ou nas horas de pique das saídas de teatros.

Dean é um sobrevivente, somente alguém com sua energia inesgotável é capaz de ganhar uns trocados como manobrista. Filhos da velocidade e do frenesi metropolitano, os beats também gostam de máquinas, no caso, de carros a 150 km por hora, numa estrada rumo ao sol. De forma impressionista, Kerouac se maravilha com a agilidade, a destreza e a precisão de Dean, um atleta da eficiência. Dean está constantemente num estado de aceleração nervosa, entusiasmadíssimo com tudo e todos, contagiante, subversivo. Mantém simultaneamente um caso com Marylou e outro com Camille, com quem teve uma filha. É capaz de fazer milhões de coisas ao mesmo tempo. Nele existe algo como a sede do infinito. É conhecendo-o que Sal inicia sua vida na estrada.

O tempo da estrada é o tempo livre das preocupações e de todo planejamento e antecipação:

Ficamos maravilhados, percebemos que estávamos deixando para trás toda a confusão e o absurdo, desempenhando a única função nobre de nossa época: mover-se. (...) Dean enternesceu-se, de repente: ‘Todos vocês, escutem aqui, raios: temos que admitir que tudo está ótimo e que não há nada no mundo com que nos preocuparmos, e devemos compreender que, na verdade, realmente, não precisamos nos preocupar com absolutamente nada. Estou certo?’.

Enquanto o tempo das metrópoles industriais é tirano, mecanizado, burocrático, disciplinado, planejado e vigilante, o tempo descoberto pelos beats na estrada tem a medida do homem. O tempo da estrada é o tempo da espera por carona, da conversa tranqüila com desconhecidos, de descobertas, dos bares. Na estrada, nem o futuro nem o passado são uma preocupação. Dinheiro é uma preocupação apenas quando ele acaba. Uma boa quantidade pode ser gasta numa noite em um bar ou com uma mulher. Na estrada ou no Leste, o dia é trocado pela noite. Nada é planejado, os jovens não sabem o que querem ou o que buscam.

Dean e Sal se maravilham com o ritmo acelerado do be-bop, a trilha sonora de suas viagens. Novas tecnologias saltam das páginas de On the Road, como os vinis e o rádio toca-fitas no carro. O tempo da estrada é o tempo do inesperado, dos problemas resolvidos de última hora. A improvisação do jazz é o equivalente da maleabilidade e da espontaneidade na vida que os beats buscam:

Shearing começou a tocar seus acordes; eles ressoavam a cântaros para fora de seu piano em tons incrivelmente suntuosos. Você chegava a pensar que o homem não conseguiria alinhá-los. Eles deixavam o som rolar e rolar, como as ondas do mar. A rapaziada gritava ‘Vai’ para ele. Dean estava todo suado, o suor escorria pela sua gola. ‘Aí está ele! Ele é esse aí! O Pai de Todos!’.

O jazz é um ritmo urbano. A síncope acelerada e o apelo instintivo-sensual desse estilo de origem negra são a síntese da alucinada vida urbana. O be-bop dançante é catártico, os solos de metais libertam o ouvinte do emaranhado de tensões e conflitos do cotidiano. Em On the Road, os beats freqüentam os bares de jazz nas proximidades de New Orleans ou em São Francisco. O jazz é o ritmo tocado em último volume no carro correndo na estrada.

A experiência do tempo na estrada, resultante também do uso de drogas, aproxima-se de um tempo mítico, cíclico, totalmente dominado e aproveitado. Na viagem, não se é mais perseguido pela morte, mas se está em profundo contato com a vida.

Uma geração silenciada

Os beats eram acusados pela sociedade burguesa de vagabundagem. Existe aí um conflito. Os beats buscavam um tempo distinto do tempo da rotina do capitalismo-industrial. Então escaparam, sendo, conseqüentemente, marginalizados e mais tarde pasteurizados, castrados, engolidos pela indústria cultural, quando se forjou um estilo beat, uma imagem do beat. A indústria cultural purgou o movimento beat da maior parte de seu conteúdo subversivo. Apesar de conseguirem fama e sucesso, os beats não foram ouvidos. Entra-se, deste modo, no território dos mitos modernos, da memória forjada e das imagens comercializadas. Diz Garcia dos Santos (1992):

Para o poeta moderno a própria experiência do tempo mítico tornou-se uma crise violentíssima, não só porque os outros não têm ouvidos para ouvir mas porque se instaura um enorme descompasso que dilacera o homem entre o tempo linear da história e o tempo cíclico do mito e da natureza.

Em O uivo, de Allen Ginsberg, é um memorialista blue e apaixonado; reúne num vórtice cinematográfico as experiências da Beat Generation. Registra lembranças numa atmosfera chuvosa e nostálgica, fala daqueles que partiram na busca insaciável por liberdade e foram vencidos. O poema, considerado por ironia um dos marcos fundadores da literatura beat, já se inicia com a constatação da perda: “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro em busca de uma dose violenta de qualquer coisa”. Nas páginas seguintes vemos os beats retratados como santos martirizados, perseguidos pelos representantes da ordem e do mercado, enclausurados em prisões, hospícios ou numa tumba. O livro se transformou em sucesso editorial após a conclusão de um complicado processo judicial contra o autor.

Kerouac, apesar do posicionamento direitista dos últimos anos de vida, quando renegou seu passado e suas antigas amizades, foi sempre muito criticado. Sociedades de Pais e Mestres, puritanos, metodistas, sociedades defensoras dos bons costumes e a revista Time o acusaram de corromper a juventude. Foi responsabilizado por muitas das loucuras dos anos 60 e incomodado constantemente devido à fama. Viu a indústria cultural transformar a imagem da geração beat em fonte de lucros astronômicos.

Em 1956, a publicação de O uivo gerou críticas tanto da direita moralista, como da esquerda ortodoxa. Ginsberg exalta os beats, “que jogaram seus relógios do telhado fazendo seu lance de aposta pela Eternidade fora do tempo. Tempo & despertadores caíram em suas cabeças por todos os dias da década seguinte”. Os “despertadores” representam o discurso moralista, o fim do sonho, o acordar para o triste pesadelo do mundo capitalista. Esses versos têm um equivalente cinematográfico na antológica cena de Sem Destino, quando o motoqueiro se livra de seu relógio de pulso e parte na estrada escaldada rumo ao sol. Nesse momento, a platéia do cinema ia à loucura ao som de Steppenwolf, no entanto, toda a magia dos beats já estava desencantada. O beat se transformou em imagem catártica para o jovem urbano ainda preso em cadeias.

Bibliografia

Body-Gendrot, Sophie. “Uma vida privada francesa segundo o modelo americano”. In: Prost, Antoine e Vincent, Gerard (orgs.) História da Vida Privada: da Primeira Guerra aos Nossos Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Gasparini, Giovanni. Tempo e vita quotidiana. Roma-Bari: Laterza, 2001.
Ginsberg, Allen. O uivo e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1999.
Kerouac, Jack. On the Road – Pé na Estrada. Porto Alegre: L&PM, 2006.
Santos, Laymert Garcia dos. “O Tempo mítico hoje”. In: Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Sevcenko, Nicolau. A corrida para o século XXI – no loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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Graduando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC.