Artigo publicado na edição nº 17 de dezembro de 2006.
Autoritarismo político e institucionalidade democrática:
a grande imprensa e o conflito social.
Francisco Fonseca
Este artigo objetiva analisar o papel da grande imprensa brasileira, isto é, os quatro principais periódicos diários – Jornal do Brasil (JB), O Globo (OG), Folha de S.Paulo (FSP), e O Estado de S. Paulo (OESP) –, quanto ao conflito social, notadamente os novos direitos políticos inseridos na Constituição de 1988 e sobretudo o direito à greve. O período que contextualiza a discussão é justamente a transição para a democracia, entre 1985 e 1990, e mais especificamente o período constituinte, entre 1987 e 1988. Por meio, sobretudo de editoriais, mas também de artigos e reportagens, busca-se observar como a grande imprensa se postou perante o conflito social e como se autodelatou quanto ao seu autoritarismo e conservadorismo.
Por fim, é importante ressaltar que a grande imprensa é aqui considerada sob três perspectivas: a) como aparelho privado de hegemonia, tendo em vista sua capacidade de, autonomamente em relação ao Estado, influenciar-lhes as decisões, assim como a agenda política, em sentido amplo; b) como empresa privada capitalista que, como tal, objetiva o lucro, o que faz da notícia uma mercadoria - há diversas implicações aqui, sobretudo a intermediação de temas públicos, embora seus órgãos sejam privados; c) como “partido político” do capital e das classes médias, sobretudo em determinadas circunstâncias candentes, caso da transição à democracia e especificamente do período constituinte.
Autodelações involuntárias: autoritarismo e conservadorismo em plena reinstitucionalização democrática.
Vejamos o modus operandi dos jornais. A seguinte passagem, publicada no JB pela Federação Nacional dos Bancos, é significativa:
(...) o bom senso da maioria (...) [deve prevalecer] sobre o radicalismo de algumas lideranças que desejam a greve por motivos políticos. O que essas lideranças querem impor, com a ameaça da greve, é a inviabilização do plano cruzado, com prejuízo dos próprios bancários e de toda a população. A alta exacerbada de salários, via greve, fatalmente conduzirá à generalização de pretensões da espécie e à conseqüente explosão dos preços. (grifos nossos).[*1]
Afinal, esta passagem poderia perfeitamente substituir os editoriais de qualquer um dos quatro jornais aqui analisados, pois todos os elementos fundamentais argüidos pela grande imprensa estão aqui presentes: a deslegitimação da greve devido ao papel manipulador das “lideranças”, embora não se apresente qualquer dado que o comprovasse; a suposta motivação política, considerada um motivo escuso, embora silencie sobre os baixíssimos salários dos bancários em contraste aos altos lucros dos bancos; a omissão quanto ao fato de que, em sentido amplo, toda greve ser inerentemente política, assim como as ações empresariais (caso deste panfleto); e a utilização da tese da perversidade (HIRSCHMAN, 1985), pois todos seriam prejudicados com a greve. Como pertence a Fenaban, constata-se que entre as entidades patronais e os (também patronais) órgãos de imprensa não há qualquer diferença quando o tema em questão é a greve, isto é, a luta de classes, independentemente do intuito que possuam os movimentos sindical e popular.
Mas toda essa retórica conservadora não passou desapercebida pelos sindicatos, que, de tanto serem achincalhados pelo discurso patronal, publicaram, no dia anterior ao comunicado dos bancos – estes, portanto, responderam aos sindicatos – um comunicado de esclarecimento chamado “POR QUE OS BANCÁRIOS VÃO À GREVE”, e também publicado na primeira página dos jornais.[*2] Os argumentos dos sindicatos bancários sinalizam que:
(...) banqueiros e Governo acenam com ameaças e acusações infundadas. Ameaçam com a decretação de ilegalidade da nossa greve, lançando mão das leis da ditadura. Atribuem aos bancários intenções políticas e desestabilizadoras do Plano Cruzado. É um absurdo, uma tentativa de criminalizar o legítimo movimento reivindicatório dos trabalhadores e seus sindicatos.[*3]
O comunicado poderia inserir a grande imprensa – embora com o plausível risco de que não conseguissem publicá-lo – no que diz respeito às “ameaças e acusações”, assim como à “tentativa de criminalizar” a luta dos trabalhadores. Como se observa, o que a grande imprensa fez e propugnou foi exatamente o mesmo que os governos conservadores e determinados setores empresariais, casos, respectivamente, da “Nova República” e do patronato, em sua grande maioria, no que tange à organização sindical dos trabalhadores e à luta de classes. Efetivamente não houve diferenças.[*4]
A grande imprensa, por outro lado, cobrou dos sindicatos, enquanto personagens políticos e sociais, posturas que ela própria não adotou. Para OG, por exemplo:
Qualquer associação, e não apenas os sindicatos, tem pendor para a oligarquização: para criar a opinião comum, tanto quanto para apresentá-la; para formar essa opinião através da propaganda (e há toda uma parafernália de propaganda, bastante sofisticada (...) e lhe dar um quadro pré-fabricado. Em síntese, qualquer associação pode ser o reflexo de um grupo de interesses, tanto quanto um grupo de interesses ser pura projeção de um grupo incomparavelmente menor e ciosamente fechado.” (OG, 10/05/87, grifos nossos).
Esta descrição define com precisão a própria imprensa, pois, embora expresse interesses múltiplos, estes são restritos no sentido de que estão fortemente vinculados a determinados grupos, isto é, classes (minoritárias, portanto). Mais ainda, a formação de opinião, que se confunde com a propaganda por meio de mecanismos bastante sofisticados, faz com que a opinião se apresente “pré-fabricada”.[*5] OG, sem o perceber, descreveu o modus operandi da grande imprensa, embora acreditasse no contrário ou simplesmente omitisse tal assertiva quanto à imprensa, mesmo considerando que qualquer associação poderia agir desta forma. É significativa tanto a “autodelação” como a exclusão a si mesma de uma descrição a qual se adequa com extrema perfeição.
Mas OG cometeu outros “atos falhos”, denunciadores da própria imprensa, pois afirma que: “Quanto mais amplo é esse direito, maior a responsabilidade (...) Se é amplo o direito de greve, numerosas e severas são, igualmente, as limitações ao seu exercício” (OG, 09/02/90). Ora, se tal assertiva é válida para os sindicatos e as greves, não o seria também para a imprensa? Afinal, à liberdade não corresponde sempre uma responsabilidade, proporcional ao impacto que produz numa dada sociedade, o que implica necessariamente limitações? Estas indagações são simplesmente descartadas pela grande imprensa (pode-se generalizar), que requer toda a liberdade, inclusive para denegrir, ostensiva e/ou subliminarmente – como ocorre de forma exaustiva com os sindicatos, grevistas e pessoas à esquerda no espectro –, em nome do que considera “justo” e “correto”, a ponto de julgar e prejulgar ações, pessoas, idéias e circunstâncias, sem prestar contas a nenhuma instância. OESP, por exemplo, se opôs à existência de uma lei de imprensa, postulando a suficiência dos códigos civil e penal, como se a imprensa não apenas não tivesse poderes especiais – de denegrir e sofismar, por exemplo – assim como se seu impacto social não fosse amplo.
OG ainda demonstra uma outra contradição ao afirmar que: “(...) a economia é mais que administração de bens escassos; é a administração de interesses divergentes (...)” (OG, 10/12/87). A contradição se refere não à definição, que é claramente verificável na história, mas sim à negação concreta, prática, desta afirmação no que tange às greves como exercício democrático e normal (desde que regulados em lei) de uma sociedade em que há “interesses divergentes”. Em outras palavras, o jornal e toda a grande imprensa afirmaram princípios – abstratos –, mas os contraditaram quando os mesmos se personificaram nas contendas sociais. Isso implica “posar” de democrata e liberal – como OESP afirmara ao criticar a suposta permissividade dos “liberais” para com as greves (FONSECA, 2005).
Mas a FSP nos oferece, por outro lado, novas amostras de contradições e “autodelações” da grande imprensa como um todo, pois, ao apoiar o fim do imposto sindical e do sindicato único por categoria, afirma que, sem estas medidas, o sindicalismo permaneceria o “(...) garoto mimado de uma democracia liberal sem forças para levar seus princípios até o fim” (FSP, 08/10/85). A pergunta óbvia a fazer é se os periódicos levam os pressupostos desta democracia que tanto diz zelarem “até o fim”, ou se os utilizam ao sabor das conveniências e dos interesses que representam. Mas se os exemplos demonstrados até este momento não foram suficientes para deixar claro o conservadorismo autoritário dos principais jornais brasileiros, a própria FSP se encarregará de fazê-lo, “delatando-se” involuntariamente ao comentar as posições “à esquerda” e “conservadora” no que tange aos direitos sindicais, sobretudo o exercício da greve. Quanto a argumentos conservadores, afirma que:
O volume inusitado e a audácia do movimento grevista em curso suscitaram reações cujo teor, intensidade e um certo grau de orquestração deixam dúvidas sobre se o que está em questão é apenas resolver os impasses para o restabelecimento das operações de trabalho. Pois, de fato, não colabora para refazer o clima de confiança mútua entre as partes envolvidas fazer apelo, sem mais considerações, à repressão policialesca pura e simples aos trabalhadores, em tom e linguagem que nada deixam a dever àqueles de tempos que se pensava superar.
Inserem-se nestas considerações o alarmismo indisfarçado daqueles que antecipam o caos social pelas projeções fantasiosas de uma paralisação dos serviços urbanos; as intromissões públicas, intempestivas e deselegantes, vindas de áreas do próprio governo, em assuntos pertinentes ao Ministério do Trabalho; e a surrada tese de que as greves teriam causa na ‘infiltração’ de elementos estranhos. (FSP, 18/05/85, grifos nossos).
Antes de tudo, é importante contextualizar esta afirmação, pois em 1985 não apenas a FSP possuía uma postura mais próxima às demandas democráticas da sociedade – afinal, no ano anterior de certa forma “liderara” a campanha das “diretas já” –, como seu projeto econômico ainda era “nacional-desenvolvimentista”. Esses aspectos certamente faziam com que a ambigüidade crucial do jornal – premido entre a ordem e os direitos – se tornasse ainda mais complexa. Por outro lado, embora a FSP não tenha dito quais setores estariam reagindo autoritariamente perante as greves, é mais do que evidente que a grande imprensa como um todo se adequa perfeitamente à descrição efetuada. Afinal, todos os argumentos arrolados na passagem acima são, inteira e freqüentemente, utilizados pelos jornais, incluindo-se a própria Folha de S. Paulo, sobretudo ao final da “Nova República”, quando pende ao ultraliberalismo. E não apenas os argumentos esgrimidos, mas também o tom e a linguagem autoritários e a decisiva pressão em favor da “criminalização” dos sindicalistas e da esquerda fazem parte da forma de proceder dos periódicos. Portanto, a FSP “autodelata”, sem o querer nem perceber, toda a grande imprensa – e outros setores conservadores que por trás dela se articulam e/ou recobrem –, revelando, com suas próprias palavras, a reação à introdução de direitos civis, políticos e sociais demandados pela grande maioria da sociedade brasileira, tal como expresso na campanha das “diretas” e durante toda a transição.
Mas um outro indicador veio também das páginas da FSP, por intermédio da coluna do ombudsman, que, embora jamais radicalizasse posições contra a Folha em particular e a grande imprensa como um todo, vez por outra revelou e revela ainda as contradições dos órgãos de comunicação. Numa dessas circunstâncias, comenta “O descaso dos jornais com a greve na Justiça”, título da coluna que questionou as razões da greve em foco, praticamente desconsiderada na cobertura e na opinião dos periódicos paulistas (a greve ocorrera na Justiça de São Paulo). Para o ombudsman à época, o jornalista Caio Túlio Costa:
(...) destaque na primeira página para desnudar a vontade editorial de priorizar a notícia, mostrar sintonia com fatos que mexem e muitas vezes transtornam o cotidiano dos cidadãos, isto nada. (...)
Advogados sérios declaram (...) que o trabalho na burocracia judiciária seria muito mais rápido e bem feito se esses 37 mil servidores fossem reduzidos para sete mil e os salários economizados (...) revertidos em benefício dos que restarem. (...) Ninguém trabalha contente ganhando miséria. Responsáveis pela tramitação de toda a papelada num fórum não ganham hoje mais do que 12 mil cruzeiros mensais, coisa aberrante. Esta é uma das discussões possíveis no aprofundamento dessa crise. Nada foi dito, escarafunchado. Os jornais se limitam a noticiar com pouco caso a greve (...) Instituições políticas (opinativas) e instrumentos indispensáveis para o dia-a-dia do seu leitor (...), nenhuma dessas funções maiores os jornais estão tendo no caso da greve na Justiça. (FSP, 27/05/90, grifos nossos)
A opinião do ombudsman corrobora o que vimos apontando, isto é, a grande imprensa arroga-se a liberdade sem qualquer responsabilidade, a ponto de cobrir ou deixar de cobrir assuntos públicos por motivos particulares. Por outro lado, o jornalista, embora aparentemente apontasse como exceção o fato de a imprensa não discutir propostas alternativas, isto é, não dar voz seriamente aos diversos lados de uma contenda – o que chama de “escarafunchar” –, exprime a ausência de debate, de discussão, de pluralismo.[*6] A opinião (privada) dos donos dos jornais e dos interesses que defendem – permanente ou circunstancialmente – assume a condição de “opinião pública”, ocultando-se em larga medida as contradições sociais e os eventuais projetos em pugna. Por fim, o fato de o ombudsman conceber os jornais como entidades “políticas e opinativas” é também um avanço, pois contribui – a partir do jornal – para destituir o mito da neutralidade, da independência e da autonomia da grande imprensa, tal como esta se autodefine, sobretudo ao afirmar a separação entre notícia e opinião. Mas a opinião da coluna em foco é, neste caso, apenas uma opinião,[*7] isolada num “ambiente ideológico hegemônico”, dado que a dinâmica da FSP de forma alguma se alterou em razão da existência desta crítica. A indagação final a ser feita é: quem controla os controladores?
A unicidade da grande imprensa pode ser corroborada, também, por meio de uma outra “autodelação”, pois O Globo, em sua renitente campanha antigreves afirmou ser um dos editoriais de OESP a síntese do pensamento da grande imprensa, pois: “(...) a indagação pertinente, e justificadamente angustiada, do jornal ‘O Estado de S. Paulo’ em seu editorial de ontem: ‘Até onde chegaremos, se não prevalecer o bom senso?’ Ela é o eco da imprensa a uma sociedade colhida (mais uma vez) pelo fogo cruzado das radicalizações” (OG, 10/05/89).[*8] OG denuncia, sem o perceber, que a grande imprensa fala as mesmas coisas, cria as mesmas imagens, detrata os mesmos inimigos. Em outras palavras, pensa e age uníssona, embora considere, irônica e paradoxalmente, tal procedimento como “democrático”. Deve-se aqui ressaltar o fato de que, sobretudo em se tratando dos personagens e das idéias vinculados aos trabalhadores, a intolerância chega ao paroxismo.
As conclusões são, de certa forma, evidentes, isto é, o caráter autoritário, patronal e conservador da grande imprensa que, por meio de autodelações involuntárias, demonstrou sua visão de mundo e seus compromissos políticos. Os periódicos em foco não foram, portanto, o que diziam ser (liberais/democratas), mesmo num momento de redemocratização. Afinal, propugnaram a criminalização dos movimentos sociais populares, sobretudo a greve, e demonstraram que o limite à sua alegada democracia é a luta de classes.
Bibliografia
COCKETT, Richard. Thinking the Unthinkable (Think-Tanks and the Economic Counter-Revolution, 1931-1983). London: HarperCollins, 1995.
EAGLETON, Terry. Ideology, An Introduction. Oxford, 1991.
FONSECA, Francisco. O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2005.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HIRSCHMAN. Albert. A retórica da intransigência. (perversidade, futilidade, ameaça). São Paulo: Companhia das Letras, 1985.
IANNI, Octávio et al. (orgs.). Desafios da Comunicação, Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
KÜHNL, Reinhard. Liberalismo y Fascismo (dos formas de dominio burguês). Barcelona: Editorial Fontanella, 1978.
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