:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 18 de janeiro de 2007.
A idéia de História e Civilização na Revista Nitheroy

Lílian Martins de Lima

No estudo da imprensa periódica brasileira do século XIX observa-se a presença constante de dois termos intimamente ligados, a saber, História e Civilização. O objetivo do artigo é compreender de que modo esses conceitos são trabalhados na Revista Nitheroy de 1836 e, assim, observar qual é a visão de Brasil construída por essa revista que é comumente tida como um marco do Romantismo entre nós.

Periodismo

A introdução da imprensa no Brasil deu-se de forma tardia somente no ano de 1808 com a chegada da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro. Nos seus passos iniciais podemos dizer que era bem cautelosa, divulgando apenas notícias oficiais, como foi o caso da Gazeta do Rio de Janeiro de 1808, na qual encontramos notícias como as datas festivas da Corte ou notas sobre o aniversário do monarca. Nos anos que precederam o movimento da Independência, por sua vez, a imprensa destacou-se pelas discussões que travou sobre os rumos do país, conforme esclareceu o estudo da historiadora Isabel Lustosa, no qual a imprensa exerceu o papel de formadora da então recente e precária opinião pública. É nesse sentido que a imprensa do século XIX deve ser compreendida como um espaço por excelência de reflexão sobre o país. É característico da imprensa dessa época o formato dos impressos semelhantes a de um livro, como observou Maria Lúcia Pallares-Burke (BURKE, 1995, p. 14). Era comum também a prática das subscrições, espécies de assinaturas que garantiam assim uma vendagem maior dos periódicos. Contudo, uma outra característica comum à produção jornalística desse período é a crença nos poderes do conhecimento como capaz de promover o desenvolvimento da nação. Essa idéia estará presente logo nas páginas iniciais dos jornais, revistas e panfletos que deixam claro seus objetivos de instruírem e colaborarem para a grandeza do país.

O amor do país e o desejo de ser útil aos seus concidadãos foram os únicos incentivos que determinaram os autores desta obra a uma empresa que excetuando a pouca glória que caber-lhes pode, nenhum outro proveito lhes funde. Há muito reconheciam eles a necessidade de uma obra periódica que desviando a atenção pública sempre ávida de novidades, das diárias e habituais discussões sobre coisas de pouca utilidade e o que é mais, de questões sobre a vida privada dos cidadãos, os acostumasse a refletir sobre objetos do bem comum e de glória da pátria.[*1]

Assim, mais do que um meio de informação, a imprensa periódica oitocentista visava a formação de um público que fosse capaz de discutir e encontrar soluções para o país e, desse modo, contribuir para inseri-lo nos trilhos do progresso e da civilização como era usual no vocabulário do período.

É interessante notar que esses periódicos tratavam dos assuntos mais variados, como economia, política, teatro, música, literatura, traduções de textos clássicos, que visavam formar um leitor virtuoso, que fosse bem instruído nos mais diversos assuntos e também possuidor de um bom gosto literário - daí as numerosas traduções de textos franceses considerados fundamentais para a formação desse “bom gosto”.

Mas quem escrevia nos periódicos? Para respondermos essa pergunta é necessário ter em mente a idéia de um intelectual que é antes de tudo versátil e que não pode ser definido apenas como jornalista, mas antes como um escritor, pois essa é a definição que é dada no século XIX pelos responsáveis pelos ensaios, traduções e artigos publicados nos mais diversos jornais e revistas do Brasil. Conforme esclareceu Antonio Candido (1969, p. 235), os intelectuais desse período compartilhavam de uma espécie de crença no poder transformador do intelectual na sociedade e assim, sua participação na vida social foi característica da nossa “época das luzes”. Acerca dos homens letrados do período imperial José Murilo de Carvalho aponta para um perfil de intelectual com uma formação na maioria dos casos jurídica e atenta ainda para o fato de que nesse período a educação era a marca distintiva da elite política[*2] (1988, p. 46).

História e Civilização

Fundada por Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre e Francisco Torres Homem, a Nitheroy – Revista Brasiliense – Ciências, Letras e Artes é tida como um marco do Romantismo. Palco de inúmeras polêmicas como a existência ou não de uma literatura de caráter nacional, entre outras, seus ensaios são exemplares quando das problemáticas nas quais se envolviam os letrados. Desse modo, um primeiro juízo que se faz presente ao longo dos dois números em que a Nitheroy foi publicada é a idéia da História enquanto um conhecimento que permite um certo grau de previsibilidade sobre o futuro. É por meio da História que se pode conhecer de modo mais seguro o caminho que deve ser trilhado, como podemos depreender dos trechos destacados abaixo:

Nada de exclusão, nada de desprezo. Tudo o que poder concorrer para o esclarecimento da história geral dos progressos da humanidade deve merecer nossa consideração. Jamais uma nação poderá prever o futuro quando ela não conhece o que ela é, comparativamente com o que ela foi. Estudar o passado é ver melhor o presente, é saber como se deve marchar.[*3]

Como nós estudamos a história não com o único fito de conhecer o passado mas sim para tirarmos úteis lições para o presente.[*4]

Aliada a essa concepção de História, enquanto um estudo do passado que pode orientar acerca do futuro, encontramos a idéia de civilização tão cara nesse período. Sobre esse assunto no século XIX Norbert Elias esclarece as diferenças desse conceito na língua francesa e alemã. Enquanto na primeira ele exprime o orgulho das nações pelo seu papel no progresso do Ocidente, no caso da língua alemã o conceito de Zivilisation, nas palavras de Elias, (1994, p. 24) “significa algo de útil, mas apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a aparência externa dos seres humanos, a superfície da existência humana”. O sociólogo atenta para o fato de a palavra em alemão que corresponde a essa idéia de orgulho nacional é Kultur. Observa ainda as transformações do conceito que num primeiro momento – século XVIII - estaria ligado, no caso francês, a um modo de vida na Corte e que posteriormente passou a ser identificado com o caráter nacional. Sua definição de civilização abarca assim essas mutações do conceito e ao seu ver

Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial, aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão de mundo (ELIAS, 1994, p 23).

Na análise do conceito de civilização não podemos deixar de lado a idéia de civilidade que, de acordo com o historiador francês Roger Chartier,[*5] pode ser desmembrada em três acepções. Uma primeira acepção refere-se à civilidade enquanto uma espécie de ciência com regras e tratados que se confronta com uma segunda definição na qual é entendida enquanto um modo de ser em sociedade. Já num terceiro momento, o historiador observa a identificação da noção de civilidade com a idéia de honradez e cortesia. Esse mesmo autor observa ainda que, a partir dos primeiros decênios do século XIX, o conceito de civilidade difunde-se entre um número cada vez maior de pessoas através de textos de caráter pedagógico e, deste modo, na sua antiga acepção enquanto um modo de ser distinto na sociedade passa a ser compreendido como um código de conduta que não diz mais respeito a uma determinada camada social.

Nos ensaios da Nitheroy a idéia de civilização está ligada com a primeira acepção tratada por Elias, ou seja, com a noção das realizações que tornaram possíveis os progressos alcançados no século XIX.

Cada nação livre reconhece hoje, mais do que nunca a necessidade de marchar. Marchar para uma nação é engrandecer-se, é desenvolver todos os elementos de civilização.[*6]

Ou então,

Não, oh, Brasil, no meio do geral movimento, tu não deves ficar imóvel e tranqüilo como o colosso sem ambição e sem esperanças. O gérmen da civilização depositado em teu seio pela Europa não tem dado ainda todos os frutos que deveria dar; vícios radicais tem tolhido o seu desenvolvimento. Tu afastaste de teu colo a mão estranha que te sufocava, respira livremente, respira, cultiva as ciências, as artes, as letras, a indústria e combate tudo que entreva-los pode.[*7]

A civilização é então compreendida por uma série de elementos que por sua vez são tidos como exemplificadores do progresso de uma nação. Desse modo, ao falar em civilização os ensaístas da Revista Nitheroy tinham em mente a identificação de uma nação civilizada como uma nação onde o trabalho era livre, assim como também o uso de máquinas era cada vez mais generalizado. Com relação a esses aspectos é interessante observar as considerações feitas por Francisco Torres Homem num ensaio intitulado “Considerações Econômicas sobre a Escravatura”.

Nesse ensaio o autor faz inicialmente algumas considerações sobre os primórdios da utilização da mão-de-obra escrava no Brasil, destacando primeiramente o uso do braço indígena e posteriormente a larga utilização do africano em terras brasileiras. Esse episódio da história é apresentado como algo maléfico para o futuro desenvolvimento do país, uma vez que a escravatura é concebida enquanto um empecilho para o progresso, como se pode perceber no seguinte trecho:

D’outro lado os governos, expressão completa dos preconceitos, dos erros e falsos interesses da época e desvairados pelos motivos daquela economia que antepõe o trabalho bruto, instintivo e forçado ao livre e inteligente, mantinham e protegiam como altamente útil ao país um gênero de tráfego que soube abrir uma larga ferida à humanidade, corrompe as nascentes da prosperidade pública.[*8]

Numa concepção de História linear e progressista dirigida pelas noções de civilização e progresso, a leitura que o autor realiza do presente brasileiro não é nada otimista. Contrariando o rumo tomado pelo restante das nações do globo, o Brasil se apresenta como uma nação que marcha “às avessas” e daí todo o esforço dos letrados nesse período em instruir e educar o público para que o país possa trilhar o caminho das nações ditas civilizadas, ou seja, para que adentre o mundo das nações onde o trabalho é livre.

(...) se o livre trabalho na sua lata acepção é um dos destinos da espécie humana a titulo de instrumento primordial de toda a civilização, os povos que tem a desdita de engastar em seu solo os horrores da escravidão doméstica comprometem de gravíssimo modo o seu porvir, afugentando todo o prospecto de opulência e prosperidade.[*9]

Entre as conseqüências que Torres Homem enumera desse uso da mão-de-obra escrava está em primeiro lugar a resistência às inovações e daí o caráter arcaico da agricultura brasileira e sua baixa produtividade.

A escravatura é um instrumento ruinoso de produção: o obreiro livre produz incomparavelmente mais que o escravo: do mesmo modo que a liberdade do trabalhador favorece a potência da indústria e o desenvolvimento da riqueza, a servidão produz o resultado inverso.[*10]

Outra característica apontada é o desprezo pelos trabalhos manuais e a valorização de ocupações “que ministram meios de influência e de ação sobre outros homens ou sobre a sociedade”, ou seja, o desejo de angariar cargos públicos. Por fim, a dificuldade de um desenvolvimento da indústria em um meio onde a resistência às inovações se faz presente é mais um elemento que, na argumentação elaborada por Torres Homem, ajuda a compreender o atraso do país, concluindo que

O seu desenvolvimento industrial [do Brasil] porém foi retardado pelo monstruoso corpo estranho implantado no coração de sua organização social. A posse de escravos nos tem evidentemente impedido de trilhar a carreira da indústria. Vede as conseqüências da escravatura! A sede dos empregos públicos e a esquivança para as profissões industriais são fatos mui gerais entre nós e que amiudadas vezes hão sido assinalados pela administração como uma grave enfermidade do corpo político[*11].

Ao lado dessa primeira identificação da noção de civilização com a defesa do trabalho livre, encontramos um outro elemento que seria também exemplar da imagem de país “avançado” que tanto era almejada pela intelligentsia da época, a saber, o uso das máquinas, concebidas como “filhas da civilização”. Com relação a esse aspecto é interessante observar como o uso ou não de máquinas é decisivo na opinião de Torres Homem para classificar uma sociedade.

A distinção principal que lavra entre o homem no estado de uma sociedade grosseira e imperfeita e o homem na sociedade civilizada consiste em que um prodigaliza suas forças naturais entretanto o outro as economiza e as poupa tirando partidos das forças que encontra em torno de si: para domar a resistência da natureza material ele arma sua fraqueza com máquinas.[*12]

Tal uso das máquinas é compreendido como uma espécie de indício do progresso alcançado por uma nação e aliada ao trabalho livre é tida como a expressão mais bem acabada de civilização.

Verifica-se assim que é por meio da instrução e da difusão dessas idéias que a intelligentsia busca a inserção do país no caminho do progresso. Esse ponto é extremamente importante para a caracterização da intelectualidade desse período que, altamente engajada, propõe-se a educar a sociedade e prepará-la para o mundo moderno, esse “vasto bazar, essa imensa fábrica”, nas palavras de Torres Homem.

Portanto, História e Civilização apresentam-se como idéias intimamente ligadas e são, por assim dizer, os fios condutores de uma leitura acerca do país no qual se desenham os novos e tão desejados caminhos do progresso.

Bibliografia

BURKE, Maria Lucia Garcia Pallares. The Spectator, o teatro das luzes: diálogo e imprensa no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1995.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Vol. I. São Paulo: Martins Fontes, 1969.
CARVALHO, José Murilo de. O teatro das sombras: a política Imperial. São Paulo; Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ, 1988.
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador – Uma história dos Costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o Romantismo. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2001.
MARTINS, Wilson. A palavra escrita. São Paulo: Anhambi, 1957.
NAXARA, Márcia. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora da UNB, 2004.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro: 1808-1821. São Paulo: Editora Nacional, 1978.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Clique nas imagens para visualizá-las em tamanho maior.
Topo
Bacharel em História pela Universidade Estadual Paulista. Aluna do Programa de Pós-graduação em História e Cultura Social da UNESP - Campus de Franca, sob a orientação do Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França. Bolsista CAPES.
Revista Nitheroy. Revista Brasiliense – Ciências, Letras e Artes. Rio de Janeiro. Vol.I, s/p, 1836.
Ilustrativo desse perfil de intelectual é a figura de Torres Homem, um dos responsáveis pela Revista Nitheroy, que era advogado, médico e exerceu também os cargos de deputado, conselheiro do Estado e de senador durante o Império.
Revista Nitheroy. Revista Brasiliense – Ciências, Letras e Artes. Rio de Janeiro. Vol.I, s/p, 1836, p. 145.
Ibidem, p. 159.
Na sua análise sobre o conceito de civilidade e suas mutações ao longo do século XVII, Chartier faz uso dos dicionários de Richelet (1680), Furitière (1690) e do dicionário da Academia (1694).CHARTIER, Roger. Distinção e divulgação: a civilidade e os livros In._______. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.
Revista Nitheroy, p. 144.
Ibidem, p. 146.
Ibidem, p. 36.
Ibidem, p. 37.
Ibidem, p. 60.
Ibidem, p. 79.
Ibidem, p. 45.