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Artigo publicado na edição nº 18 de janeiro de 2007.
O corpo e as mazelas do corpo:
aprendendo pelo olhar

Alfredo César da Veiga

Definir o que seja arte contemporânea não é fácil, especialmente quando se leva em conta o seu caráter multifacetário no dilúvio de imagens que cruzam o nosso campo visual. Há nela virtudes e vícios que os críticos jamais se cansarão de apontar. Naquilo que lhe confere mérito, não poderíamos deixar de reconhecer certo êxito em conseguir traduzir o desencanto de uma sociedade com a ideologia política que, no seu entender, falhou. Além disso, não se pode negar que também ela tem o seu mito, e é justamente esse mito que lhe confere legitimidade e, portanto, aponta para o lado sacral da vida humana. Nesse sentido, ela implica na devolução do sentido que a técnica, quando decide abdicar da natureza e tender tão somente à funcionalidade e à eficiência, relegou à segunda instância. Os poliglotismos da arte contemporânea é que permitem uma interface entre arte e conhecimento. Conhecimento não no sentido de apreensão do objeto, mas no de identificação ou de semelhança com ele.

Uma mulher grávida, sentada bem à frente do edifício Palácio das Artes – projeto de Niemeyer na Av. Afonso Pena em Belo Horizonte (veja imagem 1), cercada de mais duas crianças exauridas pelo calor do sol e pela fome, me trouxeram à lembrança dois momentos ligados à vida e aos escritos de Aby Warburg. O primeiro, a convicção de que a imagem que se desprende de sua relação com a poesia – entre outras manifestações do homem - suprime, em si mesma, o seu elemento vital. O outro, o fato de mandar escrever, no frontispício da biblioteca que gastou boa parte da sua vida para construir, a palavra: Mnemosyne, como se quisesse lembrar ao pesquisador em arte de que a própria vida deve ser objeto de pesquisa, e que o material histórico só serve para lembrá-lo do funcionamento da memória social (WIND, 1997, p. 79).

Desde as ruas frias de Campos do Jordão no mês de julho, passando pelo Parque do Ibirapuera até Times Square, quem já não parou ou simplesmente não lançou pelo menos um olhar enviesado naquelas pessoas que se fingem de estátuas adonisadas em troca de algumas moedas?

A mulher do Palácio das Artes não tinha a beleza física para competir com as imagens realísticas dessas pessoas-estátuas que produzem um tipo de encantamento de forma a atrair os olhares fáceis. Difícil alguém, sem beleza e graça, como se via naquela cena desoladora, conseguir o mesmo efeito. O dinheiro que sobra para comer não deixa restos para adquirir bugigangas coloridas que poderiam muito bem ocultar a fealdade marcada como um ferrete pela vida ingrata. O que deu para fazer, ela fez: pintou os braços, o rosto e o cabelo com spray prateado, deixando de fora as pernas. Era, portanto, uma “meia estátua”, como uma vida que não pode ser vivida na sua inteireza.

Para Duchamp (PAZ, 2002, p. 25), a mulher seria o exemplo perfeito de antiarte, no sentido de não ser portadora de beleza ou de qualquer detalhe que desperte os sentidos do senso comum para o protótipo de belo. Na era do visual, ela seria a não-contemplação, o nada, o vazio.

Se a mulher entra ou não na categoria de arte, segundo a hierarquia disposta pelos especialistas, é difícil saber, mas se é verdade que, segundo Warburg, a arte se nutre das mais obscuras energias da vida humana (apud Wind, op. cit., p. 83), então ao menos ela servia para abastecer a arte, impedindo-a de morrer de inanição, e apenas o fato de despertar o olhar de pessoas apressadas, já é uma forma de consagração do corpo como objeto de arte por excelência, e desse modo, “qualquer coisa que seja passível de experiência, toda e qualquer coisa que entre no campo da atenção, pode ser intuída e vivenciada esteticamente” (GREENBERG, 2002, p. 39).

Warburg, aos escrever a palavra “recordar” na língua grega à entrada da sua biblioteca, queria evocar, mais que uma mera lembrança, um processo espiritual, interior. O Palácio das Artes, atrás da mulher semipintada, permanecia trancado a correntes e cadeados, como muitos museus, a fim de serem “preservados”. Aquilo que é protegido pela “aura”, para usar uma expressão de Benjamin, não corre riscos, e assim como para os gregos, o que estava dentro do centro cultural era sagrado, intangível, e o que estava fora, profano (do latim: pro-fanus: que está diante do templo ou que simplesmente não entra nele).

Todo pesquisador em artes deveria ser, como o pintor, alguém, que na opinião de Merleau Ponty, seja

(...) forte ou fraco na vida, porém soberano incontestável na sua ruminação do mundo, sem outra “técnica” a não ser a que seus olhos e suas mãos se dão, à força de pintar, obstinado em tirar, desse mundo onde soam os escândalos e as glórias da História, “telas” que quase nada acrescentarão às cóleras nem às esperanças dos homens, e ninguém murmura. (1989, p. 48)

Ingressamos todos no novo século conservando os mesmos vícios de sempre. O flâneur da modernidade de Baudelaire pode ser identificado ao flâneur da pós-modernidade quando se mistura à multidão para se esconder dela. No que difere é que, para Baudelaire, os filhos do progresso e da tecnologia se tornam os heróis da modernidade. Na pós-modernidade, são esquecidos ou vistos com indiferença. “Se algum dia” – como bem previu o poeta, “a mulher se libertar do homem que lhe paga o preço do seu corpo (...) então deverá sua existência exclusivamente à sua própria criatividade” (BENJAMIN, 1991, p. 89).

No caso de uns, a arte é um lamento, e como para a mulher da nossa história, era como se precisasse travestir de algo que não fosse ela mesma para ampliar o megafone representado pelo prateado barato a fim de chamar a atenção de uma sociedade que deixou alguém para trás, obrigando-a a sobreviver dos seus restos. Para outros, a arte é usada apenas como invólucro que age sob o influxo da aparência a fim de esconder um humano que por algum motivo não faz questão de aparecer de forma plena, deixando escapar o sintoma de uma sociedade esquizofrênica que prefere viver de alucinações a encontrar um sentido consistente à experiência vivida.

Nesse sentido, temos que reconhecer que a arte, de certa forma, representa bem nossa situação histórica. Uns a utilizam como adereço para compor uma indumentária insípida do ponto de vista da aesthesis no sentido grego, mas que, de um jeito ou de outro presta seu quinhão para ajudar na solução de problemas reais, como a fome, só para citar um exemplo; enquanto, para outros, a arte não passa de um artifício para enaltecer ainda mais a fetichização do corpo, o que contribui, em larga escala, para a desagregação do humano que, indiscriminadamente, atinge as duas realidades. A arte, assim, carrega dentro de si a sua própria contradição dialética: ao mesmo tempo equilibra e desequilibra a relação dos homens entre si. Liberta e oprime quando se faz dela motivo de interesses próprios e imediatos. Ajuda a dar sentido quando muitas vezes é isenta de qualquer sentido. É essa aparente falta de nexo que levou Jean Cocteau a exclamar: “A poesia é indispensável. Se ao menos soubesse para quê.” (apud FISCHER, 2002, p. 11).

Em vista disso, poderíamos perguntar: o que a arte tem a dizer aos desvalidos, aos fracos, aos esquecidos pela sociedade de consumo?

Talvez absolutamente nada, talvez absolutamente tudo. Mais que tudo, ela pode significar um interregno, uma interrupção momentânea, uma parada obrigatória para toda a sociedade, sem exceção. Para o miserável representa um sinal de esperança quando aponta para um sentido, ou meio de ganhar a vida. Para o abastado, um delírio ilusório, ou até mesmo um grande ponto de interrogação de uma maneira incoerente de viver. Para um mero passante, apenas mais um detalhe no meio de tantos, e finalmente, para outros mais sensíveis, a eclosão de uma emoção de ódio, amor, medo, enfim, uma semente que provoca o nascimento de algo que só pode ser percebido pelo seu contemplador que se deixa tocar pela obra.

Uma mulher pobre, pedindo esmola, travestida de estátua. Depois de lhe dar um pequeno agrado em dinheiro, perguntou-me se queria que fizesse pose de estátua, já que sentada não se parecia com uma. Se alguém lhe pagava, achava que estava na obrigação de agir como uma. Disse que não precisava, talvez porque via cansaço em seu olhar e preferia que se sentasse na mureta do belo Centro Cultural e descansasse, ou talvez porque entendesse que a verdadeira arte não se expressa em sua realidade vital tanto na sua imobilidade quanto nas suas voltas, nos seus contornos, nos seus encontros e desencontros, e nas certezas e incertezas que geram, e principalmente naqueles rostos esmaecidos e derrotados pela vida.

Diante de um museu hermeticamente fechado e sem vida, apenas movimentado pelas figuras externas que espelhavam, três figuras verdadeiramente vivas, movidas pela crença de que até mesmo a arte pode sair dos quadros e das paredes e ser usada para transformar desespero em uma simples expectativa de que alguém ainda passe e perceba.

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. “Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo”. In: Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1991.
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.
GREENBERG, Clement. Estética doméstica observações sobre a arte e o gosto. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002.
PONTY, Merleau. “O olho e o espírito”. In: Textos Selecionados. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
WIND, Edgar. A eloqüência dos símbolos: estudos sobre arte humanista. São Paulo: EDUSP, 1997.
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Mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo e Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. Contato: acv@usp.br