:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 19 de fevereiro de 2007.
Famílias, Riqueza e contratos de Dotação na Belém da borracha

Cristina Donza Cancela

A produção gomífera foi responsável pela maior liquidez econômica do Pará no período que compreendeu os anos de 1870 a 1920. Nesse momento, percebe-se uma importante acentuação nas mudanças que já vinham se anunciando desde o início da segunda metade do século XIX. As relações sociais foram redefinidas a partir da formação, consolidação e rearranjo dos grupos sociais. Famílias de proprietários de terra enraizados na província ainda no período colonial tiveram que flexibilizar suas atividades para fazer frente às novas demandas do mercado e aos indivíduos recém-chegados, sem tradição, mas com fortunas centradas no negócio da borracha ou às atividades incrementadas a partir da expansão do chamado ouro negro. Com o estabelecimento de novos signos de riqueza, as famílias da elite local, cujo patrimônio e prestígio estavam pautados preferencialmente na propriedade de engenhos, criação de gado, ocupação de cargos administrativos, funções militares e, por vezes, firmas comerciais, tiveram de restabelecer seus investimentos em novas bases, iniciando e/ou se associando aos novos negócios e grupos de comerciantes. Seringais, casas de aviação, firmas comerciais, ações e imóveis urbanos passaram a estar cada vez mais presente nos legados das famílias da elite, redimensionando o perfil de suas fortunas.

As mudanças econômicas alteraram não apenas a configuração da riqueza das famílias proprietárias, mas também os arranjos e alianças de casamento que essas passaram a estabelecer, incorporando pessoas ligadas ao novo grupo da elite mercantil fortalecido a partir da economia da borracha.

Para se entender melhor o significado desse novo contexto econômico na refiguração da riqueza das famílias proprietárias tradicionais, cabe mostrar a trajetória da família Pombo, cuja história patrimonial pode ser construída a partir dos inventários de várias gerações de seus membros.

Os Pombo: a trajetória de um patrimônio

Advinda do Reino da Galizia, essa família de fidalgos, com a nomeação de Henriques, chegou ao Grão-Pará na segunda metade do século XVIII. Um dos seus primeiros nomes, Joaquim Clemente da Silva Pombo, foi ouvidor da Comarca do Pará, entre 1810-1817. Era pecuarista e proprietário de terras das Ilhas Mexianas, localizadas no Arquipélago do Marajó. Estas terras foram posteriormente herdadas por seu filho, Ambrósio, agraciado com o título de Barão de Jaguarari, em 1830. Essa alcunha tem origem no engenho homônimo de propriedade da família, localizado nas proximidades de Belém, mais especificamente no baixo Tocantins. (MEIRA FILHO, 1969/1970: p. 141-155)

A base de sua fortuna estava centrada na propriedade de terras, engenhos e fazendas de criação de gado com uso da mão de obra escrava, como era comum às famílias proprietárias da primeira metade do século XIX. (BEZZERA NETO, 2001: p. 79)

No entanto, esse quadro começa a ser alterado a partir da segunda metade daquele século. Descendente da família Pombo, João Florêncio Henrique da Silva Pombo herda as terras das Ilhas Mexianas e, em seu inventário no ano de 1865, juntamente com cerca de 30 escravos, vários animais, casas e terrenos em Belém, declara a presença de seringais em seus domínios, os quais correspondiam a quase 9% do valor total de seus bens. (ATJEPA/ Cartório Odon Rhosard, caixa: 1865-1866, ano: 1866).

Quando da morte de sua mulher, Maria Emilia de Mancada Pombo, treze anos depois, em 1888, os seringais já correspondiam a 18% dos bens de herança, tendo dessa forma multiplicado o valor em relação às demais posses da família. (ATJEPA/ Cartório Odon Rhosard, caixa: 1890, ano: 1890). No inventário do filho do casal, em 1893, o tenente-coronel Ambrósio Henriques da Silva Pombo, o valor das terras da Ilha Mexiana contendo as estradas de seringueiras equivalia a 40% do patrimônio inventariado. Por sua vez, as antigas casas, terrenos e ações não só continuavam fazendo parte do legado da família, como a elas foram somados novos imóveis e valores mobiliários, do que se depreende que não foram esses bens que perderam seu valor agregado, mas a presença e a extração de seringais nas fazendas da Ilha Mexiana que elevaram o preço e a rentabilidade dessas terras. (ATJEPA/ Cartório Odon Rhosard, maço 04, ano: 1893).

A trajetória dos legados aqui pontuada demonstra como, gradativamente, a borracha vai ganhando espaço nos negócios da família Pombo, que, concomitantemente a esta atividade, continuava investindo na criação de gado como tradicionalmente o fazia, sendo ainda uma referência nesse negócio na região. Basta citar que, em 1894, dentre os cinco fazendeiros que receberam prêmios do governo estadual por terem importado gado da Europa e América do Norte para incrementar a indústria pastoril no Pará, estava o nome de Floripes Chermont de Miranda Pombo, viúva do tenente-coronel Ambrósio Henriques da Silva Pombo, acima referido (RPP, 1895: p. 95-7).

O exemplo dos Pombo evidencia o crescimento do valor agregado dos seringais no patrimônio das famílias da elite local, particularmente a partir da década de 1870, quando a borracha cresce em prestígio e legitimidade em função do aumento do volume de negócios e da entrada de importantes firmas estrangeiras no seu comércio.

O mesmo processo vai ser encontrado em meio a outras famílias igualmente tradicionais como os Chermont, Bezerra, Lobato, Miranda, Pombo e Monard. Proprietários de grandes áreas de criação de gado, engenhos de açúcar e olarias nas diversas localidades da Ilha de Marajó, em Belém e seus arredores. A ocupação destas terras remonta à concessão de sesmarias por parte da Coroa portuguesa à época da colonização. Muitas delas pertenciam inicialmente à ordem dos jesuítas. Com a expulsão desses religiosos, as propriedades foram seqüestradas e transferidas pela Coroa a particulares, tornando-se a base econômica daquelas famílias. (WEINSTEIN, 1993: p. 58)

Pouco a pouco, esses proprietários de gado de Marajó e de engenhos de diversas regiões paraenses vão combinar essas atividades com a extração de seringa em seus domínios e a participação em firmas comerciais, disputando e/ou aliando-se com os novos grupos de comerciantes, em grande parte formados por migrantes recém-chegados à capital. Vale lembrar que, assim como ocorreu em outras localidades brasileiras, o comércio tornou-se a atividade mais viável aos estrangeiros, uma vez que a posse da terra, para o desenvolvimento de atividades agrícolas e pastoris, estava centrada nas mãos das famílias tradicionais.

Esses comerciantes eram indivíduos recém-chegados à capital, sem tradição ou nome de família, mas com renda e propriedade. Alguns fizeram fortuna no estado, outros já vieram com algum recurso de seus locais de origem. Seus negócios estavam, de alguma forma, ligados à produção gomífera, ou foram por ela incentivados em função da intensificação comercial e da demanda gerada pela maior circulação de pessoas e liquidez econômica.

Alianças matrimoniais

Embora a fortuna abrisse a possibilidade de participação no universo restrito da elite paraense, por parte dos comerciantes estrangeiros nem sempre ela era garantia de prestígio e reconhecimento. Fazia-se necessário aliar à riqueza outros fatores como nome e tradição familiar, o que poderia ser alcançado por meio de alianças comerciais e conjugais com membros das famílias locais.

A abertura dessas famílias tradicionais a novas atividades e negócios podia ser iniciada, ou consolidada, a partir de alianças matrimoniais envolvendo seus membros com comerciantes estrangeiros ou nacionais. E ainda, o poder e o patrimônio de um genro bem-sucedido poderia vir a tornar-se um fator importante para conseguir ou fortalecer cargos administrativos e funções políticas, da mesma forma que ter um sogro ou cunhado com influência política poderia abrir portas a novas atividades, mercados e favores que potencializassem os negócios. Alianças que, deste modo, tornavam-se uma corrente contínua de obrigações e de reciprocidades e que ajudavam a realizar e reforçar relações sociais.

Uma via de mão dupla estava sendo configurada. Os interesses da elite local se coadunavam com os do grupo de comerciantes instalados no estado, em meados da segunda metade do século XIX. Grupo este que se tornava cada vez mais nítido e numeroso, ampliando suas fortunas, relações de poder e organização política.

O resultado desse cenário foi o espaço cada vez maior que os matrimônios horizontais ganharam no seio das famílias da elite agrária. O consórcio envolvendo o comerciante João Gualberto da Costa Cunha e Anna Cândida Malcher Cunha é um exemplo da aliança entre comerciantes estrangeiros e membros de famílias locais tradicionais.

João Gualberto da Costa Cunha nasceu no Maranhão, em 1844. Membro de uma importante e rica família de comerciantes daquela província, recebeu o nome homônimo de seu avô português que chegara ao Maranhão ainda no início do século XIX, onde recebera a insígnia de comendador. Uma vez em Belém, João Gualberto tornou-se um dos maiores comerciantes locais, participando de uma das firmas de aviamento mais importantes da cidade a Darlindo Rocha & Companhia. (ATJEPA/ Cartório Odon Rhosard, maço: 27, ano: 1908). Participou, ainda, da instituição e publicidade do Banco Emissor. Casou-se com Anna Cândida Malcher Cunha, filha de uma família de proprietários de terras concedidas por sesmarias. Seu pai, José da Gama Malcher, era médico, tendo ocupado diversos cargos na administração da província, como o de vereança, chegando mesmo a ser, durante muitos anos, intendente de Belém (BORGES, 1986: p. 92-3).

Vê-se, assim, de que forma um migrante maranhense de uma rica família de origem portuguesa, casou-se com uma representante da elite local. Ao falecer em 1908, em Portugal, onde estava morando com Anna, João Gualberto deixou um legado de trezentos e setenta e cinco contos de réis à viúva e seus quatro filhos, afora o dinheiro da firma de aviamento que ficou para ser avaliado em uma sobrepartilha a acontecer posteriormente.

Na verdade, ao chegar ao Pará, João Gualberto não estava sozinho. Seu parente pela linhagem materna, Francisco Gaudêncio da Costa, irmão de sua mãe, era um rico comerciante instalado em Belém desde a primeira metade dos oitocentos. Francisco era casado com a paraense Carlota Pombo Brício, sobrinha do pecuarista Ambrozio Henrique da Silva Pombo, a quem já foi feita referência anteriormente. Carlota era também irmã de Maria Pombo Brício, casada com o Barão do Marajó, José Coelho da Gama e Abreu, que foi presidente da província do Pará em 1879.

Esses dados deixam claro como membros de duas gerações de uma mesma linhagem de comerciantes vindos de fora da província o português Francisco, e o maranhense João Gualberto, casaram-se com mulheres de famílias tradicionais paraenses, proprietárias de terra, firmas comerciais e com grande influência na política local; afinal, a cunhada de Francisco fora casada com um presidente de província, e seu sobrinho, João Gualberto, casou-se com a filha de um intendente da capital paraense.

Por meio dessas alianças as famílias fortificavam o patrimônio e ampliavam a rede de influência política, o que, particularmente para os migrantes, poderia tornar-se um elemento importante de integração à sociedade e aos espaços de sociabilidade da elite local.

Contratos de dotação

Em alguns casos, as alianças matrimoniais estabelecidas por estes comerciantes estrangeiros eram acordadas em um contrato de dotação. É importante lembrar que o sistema de casamento português, atualizado no Brasil, estabelecia a comunhão total de bens, que poderia não ser adotada pelo casal, sendo, nesses casos, necessário assinar uma escritura de contrato antenupcial. Esses sistemas matrimoniais estavam contemplados nas Ordenações Filipinas e no Código Civil Brasileiro de 1916.

Em meio à pesquisa, encontrei quinze casais que estabeleceram escrituras de contrato antenupciais, sendo as mais comuns aquelas que determinavam a separação total de bens seguida de disposição dotal. Isso significa dizer que os bens do casal ficavam incomunicáveis, ou seja, tudo aquilo que por herança, doação, legado, enfim, qualquer aquisição gratuita ou onerosa que os cônjuges viessem a receber, não poderia ser partilhada pelo(a) viúvo(a). E, ainda, pela disposição dotal, os bens da noiva já existentes ou adquiridos durante a vigência do matrimônio, gozariam de todos os privilégios de um dote, entre eles, o fato de voltar aos seus ascendentes ou tutores, no caso de falecimento ou separação. Como, na maioria das vezes, eram os pais ou tutores que doavam à mulher os bens com os quais ela entrava no casamento, ficava assim assegurada a possibilidade de retorno do benefício se algo ocorresse, como uma separação ou ausência de herdeiros.

Esse acordo incluía, da mesma forma, o privilégio dos bens serem inalienáveis, o que significa dizer que “não ficarão sujeitos a pagamentos de dívidas contrahidas antes ou depois do matrimonio ainda que ella para isso tenha emprestado sua outorga e assignatura porque dado tal caso desde já reclama como constrangida e por obediência a seu marido.” (Escriptura antenupcial de Leonardo José da Silva e Maria José de Azevedo Portal. Maço 14, Ano: 1899. ATJEPA). O esposo poderia ter o usufruto e a administração dos bens que a noiva trazia para o casamento, porém não poderia deles tomar posse. Nem, tampouco, deles fazer uso para pagamento de dívidas e empréstimos contraídos, evitando assim que o patrimônio da família ascendente da noiva fosse prejudicado pelos reveses dos negócios do marido.

Nesses contratos de separação de bens e dote, o noivo também podia dotar a noiva, e isso ocorria com certa freqüência nos acordos. Nestes casos, o valor ou bem dotado gozava dos mesmos privilégios dos bens que ela, esposada, trazia para o casamento.

Em resumo, as disposições acima apontadas transformavam em regime dotal todo e qualquer bem que a mulher conduzia para o casamento e aqueles que ela recebia do marido sob forma de dote. Essas determinações fazem pensar que “os contratos matrimoniais pré-nupciais visavam claramente a proteger os bens de cada um dos cônjuges dos direitos do outro cônjuge dentro do sistema de comunhão de bens. Assim é possível que os contratos reflitam a desigualdade econômica inicial entre os cônjuges”. (NAZZARI, 2001: p. 232). Ou seja, no caso de casamentos assimétricos, o cônjuge com maior fortuna usava o regime de separação de bens como forma de preservação e garantia do patrimônio individual e familiar. Quando esta situação cabia à mulher, seus bens não poderiam ser possuídos pelo marido, apenas administrados. No caso de ser o esposo o cônjuge de maior fortuna, ele legava à mulher apenas o dote concedido ao casar, ficando esta sem direito a outros bens do casal no momento da partilha, salvo disposição testamentária em contrário.

A existência deste tipo de prática sugere uma preocupação das famílias com a manutenção do patrimônio uma vez que com os contratos de dotação, os bens ficavam a salvo dos reveses da economia e dos negócios do esposo. Por outro lado, nos casamentos em que não prevalecia a simetria de riqueza e prestígio, esses acordos podiam significar uma tentativa de assegurar a manutenção do patrimônio por parte do cônjuge de maior fortuna, resguardando seus bens de possíveis separações ou uniões sem prole. Em alguns casos, no entanto, essas disposições contratuais foram revogadas por testamento e a comunhão dos bens passou a vigorar, o que ocorreu com maior freqüência naquelas uniões que resultaram na existência de filhos.

Uniões, riqueza e contratos de dotação. Mais do que laços de famílias, o que procurei aqui discutir foi como a economia pode nos ajudar a compreender a configuração das estratégias de casamento e relações familiares, assim como, de igual maneira, as alianças matrimoniais nos auxiliam no entendimento da abertura e fortalecimento de novos negócios e sociedades comerciais, na Belém da borracha.

Bibliografia

BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará. Belém: Pakatatu, 2001.
BORGES, Ricardo. Vultos notáveis do Pará. Belém: CEJUP, 1986.
MARIN, Rosa Acevedo. As alianças matrimoniais na alta sociedade paraense no século XIX. Revista Estudos Econômicos, nº15. São Paulo: (IPE-USP), 1985.
MEIRA FILHO, Augusto. A capela do senhor dos passos. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, v. º XVI e XVII, 1969/1970.
MIRANDA, João Evangelista. Guia do tabellião - de acordo com o novo código civil brasileiro e mais legislação em vigor. Pará/Belém: Typ. da Livraria Gillet, 1927.
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulher, famílias e mudança social em São Paulo, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 [1991].
WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: HUCITEC/EDUSP, [1983] 1993.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Clique nas imagens para visualizá-las em tamanho maior.
Topo
Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo-USP, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Pará-UFPA e membro do grupo de pesquisa “Cidade, Aldeia e Patrimônio” - CNPQ. Contato: donza@ufpa.br