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Artigo publicado na edição nº 20 de março de 2007.
A Igreja e os usos políticos do passado

Alfredo César da Veiga

No livro organizado por François Hartog e Jacques Revel a respeito dos usos políticos do passado,[*1] os autores advertem para o risco de se fazer uma revisão instrumentalizada com fins políticos quando se recorre a fatos passados, trazendo ao debate interpretações impróprias e simplificadoras.

A recorrência ao passado sempre foi a atitude preferida da Igreja ao tentar explicar ao mundo a sua missão de ser para todas as nações “o sacramento universal da salvação”.[*2] Esse recurso não foi utilizado apenas por um grupo de teólogos e historiadores da religião considerados da ala conservadora, como também por aqueles que se declaram abertamente da ala progressista.

Neste artigo pretendo discorrer sobre a problemática estabelecendo um tempo delimitado entre aquilo que se convencionou chamar de modernidade de um lado e pós-modernidade, de outro sem, no entanto, marcar esses acontecimentos como uma sucessão cronológica, evitando, assim, o quanto possível, o “demônio das origens”, o qual Marc Bloch considerava o inimigo satânico da história. Minha escolha irá recair, sobretudo, na imagem como fonte de persuasão, especialmente quando veiculadas às camadas com menos acesso à educação. O padre, com seu discurso, atinge menos o coração do fiel do que a estátua ou a figura de um santo.

O período escolhido abrange dois momentos da história da Igreja. De um lado, a Teologia da Libertação, que nasce impulsionada sob o ritmo de uma Modernidade negada, até a Reforma encetada pelo Papa João XXIII, de 1963 a 1965, e cujo ocaso acontece num clima cultural denominado por muitos de Pós-Modernidade, que traz de volta uma Igreja preocupada não tanto com o sujeito, mas com a sua própria sobrevivência num clima de nova desconfiança das instituições terrenas e proclamando o retorno à espiritualidade.

As correntes modernizantes que sacudiram a Igreja e que culminaram no Concílio Vaticano II (1962-1965) auxiliaram na gestação dessa Teologia. No bojo de tais correntes havia questionamentos ainda não resolvidos, frutos da Reforma e do mundo moderno, mas que foram simplesmente deixados sem resposta ou deliberadamente ignorados por uma instituição que prescindia da história quando se tratava de prover experiência religiosa. Para o crente, segundo essa corrente, basta uma luz interior para ter acesso à fé.[*3]

O Concílio significou, mais que uma reforma nas estruturas eclesiásticas, um envolvimento com o mundo que antes desprezava e considerava locus do mal,[*4] de forma a romper o muro de separação que vez ou outra insistia em se levantar entre as esferas temporal e espiritual. Ao anunciar o Concílio Vaticano II, o papa João XXIII deixou clara a sua intenção em “abrir as janelas da Igreja a fim de deixar entrar nela um ar fresco do mundo exterior”,[*5] abandonando, assim, lentamente, uma postura condenatória e preferindo outra, de conciliação e diálogo.

Os ares do Concílio chegaram aos teólogos da América Latina quando, por ocasião da Segunda Conferência dos Bispos Latino-americanos (CELAM) em 1968, produziram-se documentos que convidavam o cristão a fazer uma análise mais profunda da situação injusta e desumana dos nossos povos, vítimas de um colonialismo interno e externo, gerador de violência e opressão.

A condição pós-moderna, no entanto, produziu uma espécie de eclipse nas teorias veiculadas pela TL, e o aparente triunfo do capitalismo global fez cair por terra seus discursos, juntamente com o fim das esperanças de um mundo socialista. A Igreja da Conferência de Medellin, que queria maior conscientização e participação, cede lugar a uma outra, mais clerical e hierárquica, acentuadamente fechada em si mesma. A primeira, assimilando os valores modernistas, procurava romper com a Modernidade enquanto sinônimo de uma civilização ocidental que baseia sua prática no uso do homem pelo homem e na exploração das riquezas dos países pobres com clara finalidade de manter a opulência dos mais ricos e poderosos. A segunda, nunca teve a intenção de romper, mas de assimilar os valores da sociedade pós-industrial.

As duas alas, durante todo esse período, lutaram ferozmente na tentativa de obter espaço de influência dentro da instituição, e para isso cada uma, à sua maneira, utilizou os mesmos meios de persuasão: o uso do passado como força política para reforçar sua razão de ser no presente.

Como isso aconteceu na prática? Da mesma forma como sempre foi: o apelo à Tradição da Igreja, representada pelos ensinos bíblicos e pelos escritos das primeiras autoridades cristãs em matéria de fé. Essa postura tem o significado simbólico de fornecer um ancoradouro seguro em tempos de intempéries, de forma que é fato pacífico e sempre aceito ao longo de quase vinte séculos que, se algo vale para a Tradição, deve valer também para a teologia tout court.

Vejamos como a recorrência à força da Tradição foi utilizada por pensamentos tão díspares numa tentativa de justificar o presente num passado que representa permanência e estabilidade. Se, por um lado o passado é o ponto de encontro das duas tendências, o que as separa é questão de saber em qual passado elas irão buscar suas fontes.

No que diz respeito à Teologia da Libertação, a práxis social é a matéria prima da sua fundamentação teórica, e numa tentativa de justificar sua hermenêutica, a tradição bíblica se tornou o ponto convergente de investigação. Nesse caso, os fatos antigos servem não somente no sentido de buscar justificativa ideológica para as lutas assumidas pelos agentes pastorais, mas principalmente, como memorial para os dias de hoje, uma recordação da ação divina na história da caminhada de um povo em todas as épocas.

Tendo a tradição bíblica como ponto de partida, é fácil perceber como os heróis do presente encarnam os do passado, numa tentativa de construção de um ideário. Os guardiões da assim chamada Verdadeira Tradição nunca deixaram de lembrar os perigos de uma tal interpretação sociológica da religião, especialmente quando passa pelo viés marxista.

A mesma postura de interpretação dos textos sagrados é usada também pelos teólogos da libertação para ajudá-los a enfrentar tal oposição. Utilizando a mesma fonte, deixam claro que fazem parte da mesma Igreja, isto é, mostram seu desejo de continuar sendo parte integrante da Tradição, condição indispensável para sua catolicidade.

No campo da linguagem, o esquema simbólico se torna a coluna dorsal na construção da mensagem. Personagens, situações, experiências do mundo bíblico são selecionados e transformados numa pragmática do tempo presente.

Nesse sentido, a imagem de um Deus Libertador, que no Antigo Testamento conduzia o povo da escravidão no Egito para uma terra livre, transforma-se no Deus que quer, nos dias de hoje, conduzir o povo sofrido do Terceiro Mundo para uma terra livre dos interesses neocolonialistas e imperialistas. Nessa mesma linha, a luta contra o Faraó serve de inspiração na luta a ser encetada contra o governo dos países explorados, e até mesmo a fé monoteísta, que era uma espécie de garantia da unidade de um povo ou de uma sociedade com apenas uma classe econômica,[*6] tornou-se a base de sustentação da fé dos teólogos da libertação na sua luta contra a idolatria do capital.

Papel preponderante têm os profetas, que nos tempos bíblicos assumiam o encargo de anunciadores, nessa releitura, assumem uma nova missão: a de denunciadores dos processos de exploração e injustiça perpetrados pelos povos estrangeiros que introduzem não mais seus ídolos tipificados por estátuas, mas por suas ideologias cuja finalidade seria a de cimentar o sistema de dominação.

Os salmos se tornam o grito do pobre contra a violência do rico:

O Senhor libertará o pobre que pede auxílio
e o desvalido, privado de ajuda.
Ele terá compaixão do fraco e do indefeso
e salvará a vida dos pobres.
Da opressão e da violência lhes resgatará a vida
e o sangue, que é precioso a seus olhos (Salmo 72,12-14)

No Novo Testamento, Jesus é o protótipo do Libertador. Ele não veio para os ricos, mas para os pobres e desvalidos. Sua prática é toda voltada para aliviar seus sofrimentos e conduzi-los ao Reino, que não significa, necessariamente, o céu, mas muito mais, a promessa de uma nova terra que tem início aqui e agora, no centro da História do homem.

Ainda faz parte essencial na releitura das fontes do passado, a figura da Virgem Maria. Mais do que ser simplesmente a santa, ela é, sobretudo, a mulher: exemplo de luta contra a discriminação e opressão do forte e do poderoso. Seu canto é repetido pelas comunidades em busca de libertação: “Dispersou os orgulhosos, derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lucas 1, 51).

Da década de 1980 em diante, a economia se globaliza, os regimes autoritários na América Latina e no Leste Europeu cedem espaço aos processos democráticos e a sociedade se entrega sem reservas à alta tecnologia, inaugurando, assim, aquilo que se convencionou chamar de Pós-Modernismo. Se o Pós-Moderno é um fato ou tão somente a restauração de um modernismo domesticado que ganhou força com um retorno político conservador na era Kohl-Thatcher-Regan, ou, por outro lado, de acordo com os seus críticos, simplesmente um jogo de marketing, não importa agora. O que importa é o fato de que o Pós-Moderno esconde o sintoma de uma profunda transformação cultural da sociedade ocidental.

No campo da religião, contrariando previsões pessimistas sobre o seu fim, percebe-se, ao contrário, não somente uma sobrevivência, mas, sobretudo, uma busca ansiosa e angustiosa de sentido que a religião traz. Porém, essa busca não vem acompanhada de sua versão tradicional. O interesse se revela na procura de um sagrado sem compromisso, uma espécie de catarse que reduz a experiência religiosa à mera terapia, um cristianismo que o sociólogo David Lyon compara ao Magic Kingdom “onde tudo é fantasia, ilusão, superfícies escorregadias, realidades revisadas, múltiplos significados e centrado no princípio do prazer”.[*7]

Nesse caso, a Igreja da pós-modernidade reage tirando sua força de um passado onde representou ao mesmo tempo a estabilidade da tradição e o triunfo da sua força política. Pode-se facilmente perceber essa tendência na arquitetura e na decoração das novas igrejas. Hoje, os artistas cristãos, passando pela rica Europa até os rincões africanos, recorrem à arquitetura românica e ao ícone bizantino a fim de assegurar ao homem contemporâneo um espaço que represente ao mesmo tempo, ascese e refúgio contra os males do mundo.

O interesse pelo religioso é fruto da perda de identidade comunitária e remédio ao caos e à desordem contemporâneos. Nesse caso, a Igreja recorre novamente à autoridade da tradição que evoca um tempo imóvel, identificado no ícone bizantino através dos olhos amendoados e constantemente abertos, parecendo congelar o olhar para algo além deste mundo, numa clara decisão de abandonar a realidade imediata e conduzir o fiel de volta a um espaço harmônico e belo, protótipo da cidade espiritual.

Portanto a Igreja, nas suas várias visões de mundo, nas tendências direitistas ou esquerdistas, sempre fez uso do passado para justificar ora uma, ora outra dessas tendências movendo seus seguidores fiéis entre duas realidades: passado e presente.

O problema ao revisitar o passado aparece quando se tenta fragmentá-lo, com o intuito de proceder a uma apropriação indiscriminada de uma ou mais de suas partes a fim de presentificar algo carregado de sentido a uma determinada cultura apenas. Um passado assim, dificilmente pode servir de explicação ou conhecimento histórico devido à sua excessiva simplificação. Tal recurso pode tirar do passado o significado que lhe é próprio ou mesmo destituí-lo completamente de sentido. Um passado mutilado serve para intensificar um direito divino de pretensão à verdade, reduzindo a complexidade da autonomia e da discordância e conduzindo à repetição de um mito regulador que promete reduzir o conflito e enraizar o sujeito num presente que representa unicamente continuidade, sem tropeços, sem sobressaltos.

O uso indiscriminado do passado como justificativa de ações presentes pode transformar o tempo num tempo mimético, cuja função é a de parodiar, subvertendo a verdade e relegando-a ao mundo da aesthesis, produzindo, assim, uma “sociedade esquizofrênica”, incapaz de discernir a verdade das aparências, como afirmou Baudrillard.[*8]

O uso político do passado pode reduzir o tempo a um eterno presente, sem perspectiva de futuro, retirando, da história, a lógica da evolução. Seria tirar da natureza humana a sua força histórica, a sua capacidade de mudar e reinventar o futuro. Seria esquecer que o passado construiu a sua própria história, e seu uso indiscriminado pode trancafiar o homem dentro da fatalidade de um destino do qual ele não construiu e não participou.

Bibliografia

BARROS SOUZA, Marcelo e CARAVIAS, José. Teologia da terra. Petrópolis: Vozes, 1988
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991
BLOCH, Marc. Apologia da história. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2002
CHOPP, Rebecca. The praxis of suffering: An interpretation of liberation and political theologies. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1989
HARTOG, François e REVEL, Jacques. Les usages politiques du passè. Paris : Editions de L’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2001
LYON, David. Jesus in Disneyland. Malden, MA: Polity Press, 2000
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Mestre em Estética e História da Arte (USP); Doutorando em História Social (USP); Pesquisador da relação Arte e Sagrado e Membro da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte) E-mail: acv@usp.br
Les usages politiques du passè. Paris: Editions de L’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2001
Conc. Vat. II, Decreto Ad Gentes, 1
Marc BLOCH. Apologia da história, p. 57
Contribuiu muito para afirmar essa idéia a Encíclica do papa Pio IX: Quanta Cura (Quantos cuidados), de 1864 onde abordava os oitenta erros que o cristão deveria evitar. O primeiro deles era a tentativa de identificar Deus com o mundo.
Rebecca CHOPP The praxis of suffering, p.15
Marcelo de BARROS SOUZA e José CARAVIAS. Teologia da terra, p. 149
Jesus in Disneyland, p. 11
Simulacros e Simulação, p. 133