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Artigo publicado na edição nº 20 de março de 2007.
CORPO E ARTE CONTEMPORÂNEA:
o mosaico polimorfo em Farnese de Andrade

André Luiz de Araújo

A obra “A grande alegria”, datada de 1966-1978, considerada pelo artista mineiro Farnese de Andrade um de seus primeiros objetos, revela-nos elementos de composição necessariamente contemporâneos. A assemblage[*1] composta de fragmentos de boneca, bolas de vidro, fragmentos de madeira e de caixa de vidro torna-se, portanto, resultado de um agrupamento de matérias presentes no mundo usadas pelo artista para experimentação. Nesse sentido, o artista contemporâneo é um artista experimental.

Num estudo sobre Lygia Clark e o conceito de arte contemporânea, Suely Rolnik descreve que um dos aspectos do que muda e se radicaliza no contemporâneo é que, a partir do momento em que a arte passa a trabalhar qualquer matéria do mundo e nele interferir diretamente, explicita-se de modo mais contundente que a arte é uma prática de problematização: decifração de signos, produção de sentidos, criação de mundos. É exatamente nessa interferência na cartografia vigente que a prática estética faz obra, sendo o bem-suceder da forma indissociável de seu efeito de problematização do mundo. O mundo liberta-se de um olhar que o reduz às suas formas constituídas e à sua representação para se oferecer como matéria trabalhada pela vida, como potência de variação e, portanto, como matéria em processo de arranjo de novas composições e engendramento de novas formas (ROLNIK, 2002, p. 44-45).

Diferente da pobreza de experiência a que Walter Benjamin relaciona a vida moderna, Farnese torna-se implacável por operar a partir de sua vivência. Ele foi um construtor: mergulhou nas vísceras humanas, apropriou-se de objetos encontrados no lixo, de esqueletos de animais, do descartável, dos dejetos produzidos pela sociedade de consumo, onde tudo é efêmero. Escolheu as imagens, enclausurou-as em oratórios, imobilizou-as em caixas de vidro, por conseguinte, atomizou-as em poliéster (resina). Esses objet trouvé[*2] carregam consigo um tempo, uma memória, uma história capturada e transformada pelo artista em assemblages.

Nesse sentido, conclui Suely Rolnik que, nesse momento, a arte participa da decifração dos signos, das mutações sensíveis, inventando formas pelas quais tais signos ganham visibilidade e integram-se ao mapa vigente. A arte é, no entanto, uma prática de experimentação que participa da transformação do mundo (ROLNIK, 2002, p. 45-46).

Na série “Anunciação”, datada de 1972, Farnese trabalha com uma santa, fragmentos de ornato, borboleta, taça com ovo e madeira, ex-voto/seio, fotografias resinadas e oratórios com portas espelhadas. Na perspectiva estética, o sentido desse agrupamento de objetos é presentificar o futuro e o passado, ou seja, é criar por meio do simbolismo temas relacionados ao tempo. O tempo terrestre, mas também o tempo divino. Tempo do começo e do fim. Tempo cronológico e cíclico. Na dissertação de Romilda F. P. Barreto, Anunciação – a anjo de “mil asas” , a narrativa poética de Farnese fala de temas relacionados ao tempo. O tempo que regula a dinâmica da vida e da morte. O tempo que foi e não volta mais, o tempo vivido e o quase esquecido[*3].

Assim, na definição de Beatriz Sarlo, a arte é futuro, mesmo quando trabalha com o passado. O rétro, o revival podem ser programas estéticos cuja validade só pode ser julgada pelo repertório de respostas aos problemas semântico-formais que propõem, pelas questões que deixam em aberto e pela forma como relacionam-se com outras perguntas anteriores, dando-as por encerradas ou dialogando com elas. Beatriz Sarlo escreve a propósito das vanguardas artísticas europeias: “[...] transformaram esse aspecto da modernidade num ponto central de seu programa: o presente como tempo absoluto, forma atual do futuro, de onde se pode reler o passado: Lautréamont contemporâneo dos surrealistas; ou então, Kafka e seus precursores, o presente como doador de sentido ao passado.” (SARLO, 2005, p. 56).

Outro aspecto interessante sobre o artista moderno é que, no século XIX, já existia a negação do pensamento da arte como representação. Lembremos que Cézanne dizia que o que ele pintava era a “sensação”. Mas o que vem a ser a sensação? Na definição de Deleuze, a sensação tem um lado voltado para o sujeito (o sistema nervoso o movimento vital, o “instinto” o “temperamento”, todo o vocabulário comum ao Naturalismo e a Cézanne) e um lado voltado para o objeto (“o fato”, “o lugar”, “o acontecimento”), ou seja, é o mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto quanto sujeito. Assim, continua Deleuze, “[...] a lição de Cézanne vai além dos impressionistas: não é no jogo ’livre’ ou desencarnado da luz e da cor (impressões) que está a Sensação, mas no corpo, mesmo que no corpo de uma maça. A cor está no corpo, a sensação está no corpo, e não no ar. A sensação é o que é pintado. O que está pintado no quadro é o corpo, não enquanto representado como objeto, mas enquanto vivido como experimentando determinada sensação (o que Lawrence, falando de Cézanne, chamava de ‘o ser maçãnesco da maçã’).” (DELEUZE, 2002, p. 42-43).

Portanto, faz parte do processo de transição do moderno para o contemporâneo a subjetividade do artista e seu contato com as coisas do mundo. Suely Rolnik inteiraria: a arte contemporânea leva essa virada da arte moderna mais longe. Se o artista moderno não representa o mundo com base em uma forma que lhe é transcendente, mas, no lugar disso, decifra e atualiza os devires do mundo, baseado em suas sensações, e o faz na própria imanência da matéria, já o artista contemporâneo vai além não só dos materiais tradicionalmente elaborados pela arte, mas também de seus procedimentos (escultura, pintura, desenho, gravura etc.). Ele toma a liberdade de explorar os materiais mais variados que compõem o mundo, e de inventar o método apropriado para cada tipo de exploração (ROLNIK, 2002, p. 45-46).

Contudo, a arte farnesiana é composta por uma vasta produção na área do desenho, da gravura, da pintura e do objeto. Sendo este último o analisado para responder a nossa indagação: como escrever uma história do corpo na arte contemporânea?

Para Denise Sant’Anna, escrever uma história do corpo não é uma tarefa fácil de concretizar, porque tudo o que se relaciona com o assunto é, de um modo geral, remetido para as zonas mais obscuras da conduta humana. O corpo é o lugar do que se esconde ao olhar, do que se furta à promiscuidade, é o espaço da intimidade e da dissimulação dos subentendidos, do que não se diz ou vê de imediato. Realizar uma história do corpo é um trabalho tão vasto e arriscado quanto o de escrever uma história da vida. Mesmo se restringindo ao estudo do corpo humano, são incontáveis os caminhos e numerosas as formas de abordagem: da medicina à arte, passando pela antropologia e pela moda, há sempre novas maneiras de conhecer o corpo, assim como possibilidades inéditas de estranhá-lo (SANT’ANNA, 2002, p. 3).

Farnese de Andrade é um dos poucos artistas, assim como Lygia Clark e Hélio Oiticica, que pertenceram e contribuíram com sua genial produção a um momento de transição nas artes plásticas brasileiras. Do Moderno ao Contemporâneo, do Concretismo ao Neoconcretismo, cada um em sua singularidade teve, no cerne de sua produção, o corpo como inspiração ou preocupação.

Para Linda Hutcheon, no campo da arte, a manifestação do corpo perfaz uma (re)configuração de mudanças constantes, cujas circunstâncias socioculturais inscrevem a reflexão crítica, cada vez mais dinâmica de condições adaptativas a estratégias discursivas, evidenciado no seu uso como suporte, linguagem, tema, conteúdo etc. Explorado por temporalidade, contingência e instabilidade, historicamente o corpo sempre foi alvo temático dos artistas para além da performance. Contudo, sua maleabilidade de subtrair a representação contemporânea ajuda a (re)descobrir “novos/outros” caminhos inimagináveis. Linda acrescenta que, nesse percurso de possibilidades, a noção de corpo privilegia-se do estado da arte e adentra ao universo da subjetividade, em que surgem variantes poéticas do próprio processo de criação da obra. Nesse caso, a poética aqui deve ser lida e vista como uma estrutura aberta em constante transformação (HUTCHEON, 1991).

O trabalho de Farnese propõe uma exploração radical e poética da problemática do corpo: o questionamento da matéria, da aura, da morte física, da relação entre corpo e memória, do erotismo, da dialética do real e da imagem, da natureza e da cópia fabricada. Investiu no conflito e não na harmonia proposta pela sociedade capitalista em homogeneizar as aparências. Farnese caminha entre as diversas políticas do corpo que se afirmaram nos últimos 40 anos.

A historiadora Denise Sant’Anna descreve em seus estudos sobre as políticas do corpo, que no ano de 1960 na arte, há metamorfoses do corpo que modificam como forma de protesto e suas influências estão em domínio diversos da cultura: da antimoda à body art, passando pelas metamorfoses corporais dos “modernos primitivos”, existe uma considerável contestação à homogeneização das aparências, ao imperativo “seja sempre jovem” e à intensa exploração comercial. Nesse campo inserem-se os artistas que utilizam seus corpos para denunciar coações sociais, sexuais e identitárias. Em certos casos, passa-se do corpo da pintura do quadro para o próprio corpo do artista (SANT’ANNA, 2002, p. 20).

No Brasil, o pioneirismo de Lygia Clark foi em buscar na psicanálise a experiência de trabalhar junto com a arte, as políticas do corpo, e o de Hélio Oiticica, em incluir o corpo do espectador em sua obra, promovendo a interação corpo e obra. Ambos faziam parte do movimento neoconcreto, que se preocupava com a interação e a sensação do espectador com a obra. Lygia com os seus bichos e objetos “relacionais” e Hélio Oiticica com seus “pangarolés” e performances públicas.

Farnese não pertenceu a nenhum movimento artístico, pois optou por prosseguir sua pesquisa individual, porém jamais fora das preocupações relacionadas às transformações das sensibilidades na arte do seu tempo. A força motriz de Farnese, chamada “desassossego”, evoca a cena do grande artesão de corpos, em que o poder de criação que emana das mãos do artista se concretiza na apropriação da matéria. A partir dessa apropriação, a metamorfose corporal só é possível quando depositados os sentimentos humanos mais profundos.

Segundo Francis Bacon, a sensação é o que passa de uma “ordem” a outra, de um “nível” a outro, de um “domínio” a outro. É por isso que a sensação é a mestra de deformações, agente de deformações do corpo[*4]. A sensação em Farnese está na dramaticidade contida na composição dos objetos que realizam muito melhor a sua potência enquanto arte. O terror, a violência, o anjo, a santa, a mãe, a família podem denunciar sensações ambivalentes, ao contrário de parecer desumanizar o corpo nas assemblages, as obras de Farnese transcendem o limite da vida e da morte, da alegria e da tristeza, do lúdico e do monstruoso, do prazer e da dor, da bondade e da crueldade, do sagrado e do profano. Nesse sentido, podemos pensar no conceito do corpo paradoxal na obra do artista mineiro.

Portanto, neste momento, contudo, um dos aspectos que nos interessa na obra farnesiana é um dos seus elementos de composição, “as bonecas”[*5], são elas que significam esse paradoxo. O uso do corpo artificial como alegoria reveste uma dimensão antropológica fundamental. Estética, História e Psicanálise não seriam excessivas para compreender o fenômeno. Considerando a obsessão do artista pela vida e pela morte, o contexto histórico em que ele está inserido (o período de Guerra Fria no mundo e das ditaduras na América Latina), sua obra faz-nos mergulhar no universo dos sentimentos humanos, capaz de transformar o corpo simbólico numa possibilidade de sensação. É difícil a obra do artista não sensibilizar seus espectadores.

Num estudo sobre as modificações corporais na cultura contemporânea, Francisco Ortega escreve que “[...] a dor é um elemento fundamental nessas modificações, uma via de acesso ao corpo vivido numa cultura como a nossa, na qual a dor é um anacronismo que deve ser suprimido, um escândalo intolerável numa sociedade que não reconhece mais nem o sofrimento nem a morte como constitutivos da condição humana (Le Breton, 1998), sociedade auxiliada por uma medicina que não trata a dor como fato existencial, que possui uma dimensão social, cultural e histórica (Morris, 1993), mas como um dado fisiológico, ou antes, patológico, passível de ser medicalizado. A autenticidade da dor, como investimento subjetivo na matéria corporal presente nas modificações corporais, constitui uma resposta a uma cultura de anestesia sensorial e de patologização da dor e do sofrimento.” (ORTEGA, 2008, p. 64).

Vale lembrar que o caminho de Farnese é o de mão dupla. O corpo na arte contemporânea é fragmetado, mas também totalitário. No texto “o corpo no fio da existência”, Denise Sant’Anna descreve sobre o corpo na contemporaneidade, “[...] que mais do que salvá-lo, trata-se de transmutá-lo completamente. Nosso único bem ou nosso único mal, o corpo tende enfim a ser o último espaço disponível a diversos experimentos, tão criativos quanto destrutivos.”[*6] Nesse sentido, inevitavelmente, o corpo já é uma nova fronteira.

Referências bibliográficas

BARRETO, R. F. P. Tempo em suspensão: objeto reconvocado em Fanese de Andrade. Dissertação (Mestrado em Artes)– Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, Espírito Santo, 2008.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COSAC, C. Farnese Objetos. São Paulo: CosacNaify, 2005.
DELEUZE, G. Francis Bacon – A lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
ORTEGA, F. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
ROLNIK, S. A subjetividade em obra: Lygia Clarck, artista contemporânea. Revista Projeto História, São Paulo, n. 25, 2002.
SARLO, B. Paisagens Imaginárias: Intelectuais, Arte e Meios de Comunicação. São Paulo: EDUSP, 2005.
SANT’ANNA. D. É possível realizar uma história do corpo? In: SOARES, C. Corpo e História. Campinas: Autores Associados, 2002.
______. O corpo no Fio da Existência. In: ______ et al. Corpo, Itaú Cultural, 2005.
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Mestrando em História Social pela PUC-SP. Bolsista CNPq. E-mail: andreharaj@gmail.com.
Objeto artístico produzido pelo agrupamento de materiais diversos.
Objeto encontrado na natureza, como pedaços de madeira, conchas ou pedregulhos, que adquire um valor estético pelas transformações sofridas ao longo dos anos. Torna-se obra de arte pela intervenção do artista. O conceito surgiu com o movimento surrealista.
BARRETO, R. F. P. Tempo em suspensão: objeto reconvocado em Farnese de Andrade. Dissertação (Mestrado em Artes)– Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, Espírito Santo, 2008. p. 141.
BACON, F. Pintura e Sensação. In: DELEUZE, G. Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 43.
As bonecas eram usadas pelos surrealistas André Masson, Salvador Dali, Hans Bellmer e Man Ray para denunciar a desumanização e para propor novas formas anatômicas do corpo. Em suas obras, o corpo era apresentado fragmentado, dilacerado e considerado artificial. Adaptado de: MORAES, Eliane R. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 66-67.
SANT’ANNA, D. O corpo no Fio da Existência. In: ______ et al. Corpo. São Paulo: Itaú Cultural, 2005. p. 106.