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Artigo publicado na edição nº 21 de abril/maio de 2007.
Uma Reflexão Sobre o Surgimento do Candomblé

André Sekkel Cerqueira

Os estudos sobre a África e as culturas africanas têm ganhado espaço nas últimas décadas. No Brasil esse estudo começou, basicamente, com Nina Rodrigues em fins do século XIX, na Bahia. Depois dele veio Arthur Ramos, no começo do século XX. Foram esses os dois grandes autores que escreveram sobre os africanos em nosso país. Seus estudos foram incorporados por grandes historiadores que trataram do período colonial, como Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior. Ambos os autores foram pela linha do cruzamento de raças, pela miscigenação, para entenderem a formação da nacionalidade brasileira. Segundo estes dois autores, essa mistura aconteceria por causa da capacidade do português de se misturar com outras raças, como diz Caio Prado Júnior: “a mestiçagem, signo sob o qual se formou a etnia brasileira, resulta da excepcional capacidade do português em se cruzar com outras raças”[*1]. Mas esta mistura não é apenas étnica, é também cultural. Porém não existe uma cultura africana única e nem uma cultura indígena única, essa era uma visão que os europeus tinham desses povos. O mesmo Caio Prado nos informa isso: ”os povos que os colonizadores aqui encontraram, e mais ainda os que foram buscar na África, apresentam entre si tamanha diversidade que exigem discriminação”.[*2]

É preciso entender que não foi uma cultura africana que atravessou o Atlântico, mas várias. Foram diversos grupos étnicos, misturados pelos portugueses, diversas nações de africanos que vieram traficados para o Brasil Colônia. Com isso em mente vamos tentar entender os meios pelos quais essas culturas sobreviveram e moldaram a sociedade colonial – conseqüentemente a nossa também.

O aspecto cultural que mais me chama a atenção, e no qual me deterei, é o candomblé. Essa prática religiosa existe até hoje, principalmente na Bahia. É fácil pensar que os africanos se adaptaram para sobreviverem no Brasil Colônia e que para isso modelaram sua cultura, mas não podemos nos esquecer que não havia apenas uma cultura africana no Brasil Colônia. Além disso, temos que prestar atenção na relação das diversas culturas africanas entre si e com as culturas indígenas e portuguesas. Assim, vamos buscar a origem do candomblé em meio a essa “pluralidade de fragmentos culturais”.[*3]

Mintz e Price escreveram “O nascimento da cultura afro-americana”, livro no qual buscam entender, entre outras coisas, como se deu o contato entre uma cultura africana e outra européia. Eles defendem que não há uma cultura africana homogênea, como é possível dizer com relação à portuguesa ou à espanhola, mas dizem que deve haver algum traço que seja comum a todas as culturas africanas. Seria uma “herança cultural africana, largamente compartilhada pelas pessoas importadas por uma nova colônia”[*4]; em seguida a esta passagem os autores dão um exemplo interessante, o qual reproduzirei conforme descrevem: “(...)os iorubanos 'deificam' seus gêmeos, envolvendo a vida e morte deles num ritual complexo, enquanto seus vizinhos ibos destroem sumariamente os gêmeos no nascimento” e seguem afirmando que “ambos os povos parecem reagir a um mesmo conjunto de princípios subjacentes, muito difundidos, que dizem respeito à significação sobrenatural dos nascimentos incomuns”[*5].

Levando em consideração que os escravos importados, ou traficados, não vinham de uma mesma região da África e nem tinham a mesma cultura, então como explicar traços predominantes de determinadas culturas nas colônias americanas? É uma questão complexa, mas que pode ser respondida da seguinte maneira: supondo que nasçam gêmeos (para usar o mesmo exemplo) na senzala de um senhor de açúcar da Bahia, um acontecimento que requer um ritual, e só há um sacerdote iorubá naquela senzala capaz de fazer o rito. Então esse ritual será feito conforme os seus costumes, mesmo que a maioria dos africanos de lá não sejam iorubanos. A necessidade de fazer o rito é mais importante do que a maneira como ele é feito, pois há uma herança cultural comum.

Essa idéia será desenvolvida por Luis Nicolau Parés, em seu livro intitulado “A formação do candomblé – história e ritual jeje na Bahia”. Um tema que o autor desenvolve muito bem e que acho ser de extrema relevância é a passagem do que ele chama “nação étnica” para “nação de candomblé”. O tema trata justamente dessa questão de múltiplas nacionalidades que têm uma herança em comum e, no caso, um presente também comum – que é a escravidão.

O termo nação foi utilizado pelos portugueses para diferenciarem os grupos étnicos de escravos, que acabaram por incorporar essa distinção européia nas suas relações. Na segunda metade do século XIX o tráfico de escravos é proibido e há um decréscimo de africanos no Brasil. Dessa forma as distinções étnicas (de nações) que os senhores faziam “deixaram de ser operacionais para a classe senhorial”, mas “elas persistiram entre os africanos e seus descendentes crioulos no âmbito de suas redes de solidariedade familiar e, sobretudo, de práticas religiosas”.[*6]

Dentro dos rituais do candomblé é possível distinguir algumas nações, como aponta José da Cunha Grã Ataíde e Mello, o Conde de Povolide, em carta de 10 de junho de 1780 ao rei de Portugal, na qual fala sobre algumas danças de negros. O Conde faz a seguinte observação: “(...) os Pretos divididos em Nações e com instrumentos próprios de cada huma danção(...)”.[*7] Parés aponta que essa divisão acontece no candomblé por meio da língua, dos cantos, das danças e dos instrumentos.

Com o tempo o termo nação vai mudando de significado e deixa de designar “indivíduos compartilhando uma mesma terra de origem”, ou seja, “o parentesco biológico foi substituído pelo parentesco do santo”.[*8] Então o termo passou a designar uma forma de organização com bases religiosas.

Luis Nicolau Parés nos informa que entre os anos 1960-1970 estudiosos da África propuseram um “modelo teórico conhecido como ‘complexo fortuna-infortúnio’”,[*9] que nos ajuda a destacar um tipo de religiosidade preocupada com a “sustentabilidade da vida neste mundo”. Desse modo podemos entender o candomblé como uma forma de ajudar a enfrentar o infortúnio, no caso a escravidão. Porém o candomblé não é uma religião africana, mas ele se formou com base na memória trazida por esses africanos traficados, através dos “fragmentos de culturas”, que juntamente com outros fragmentos criou o candomblé, fruto dessa pluralidade cultural no Brasil Colônia.

Para entender um pouco melhor dou voz, novamente, à Mintz e Price, que escrevem o seguinte: “os africanos que chegaram ao Novo Mundo não compuseram grupos logo de saída. Na verdade, na maioria dos casos, talvez fosse até mais vê-los como multidões, aliás multidões muito heterogêneas(...). O que os escravos compartilhavam no começo, inegavelmente, era sua escravização; todo – ou quase todo – o resto teve que ser criado por eles”.[*10] Então, no caso do Brasil Colônia, vinham multidões heterogêneas de escravos que compartilhavam apenas a escravidão como traço comum. Talvez por isso houve uma grande necessidade deles criarem instituições receptivas às necessidades cotidianas. O candomblé foi uma dessas instituições.

Organizado hierarquicamente e com base religiosa, a fim de enfrentar o infortúnio, o candomblé se tornou uma instituição à qual o negro escravizado, fugido ou liberto, se dirigia para garantir algumas de suas necessidades. Os grupos de candomblé se reuniam em casas ou sítios, em geral, e eram espaços de sociabilidade dos negros, um lugar onde podiam fazer seus cultos, enterrar seus mortos – costume muito importante para as religiões africanas, trazidas na bagagem da memória – e onde davam ajuda aos que necessitavam dela; muitos escravos fugidos buscavam ajuda do candomblé do qual fazia parte.

Por ter essa característica de ajudar os fugidos e por suas práticas religiosas serem estranhas aos olhos cristãos, os candomblés são intensamente perseguidos durante o período colonial. Essa instituição religiosa era marginalizada, ao contrário das irmandades, que eram legalizadas.

Estudar o candomblé e a escravidão não é fácil. São diversos conceitos que temos de dominar para tentarmos entender como aconteceu essa travessia dos negros da África para as colônias americanas. São estudos ainda recentes que nos guiam e abrem caminho para entendermos essa mistura de culturas num determinado tempo e lugar. No caso que refletimos aqui, o candomblé, mostrei que é preciso ter noção de que não há uma cultura africana homogênea, mas que existe uma “herança cultural” que é comum às culturas africanas. Por isso temos que entender que os africanos não estavam em grupos formados logo de saída quando foram traficados, mas que encontraram um aspecto em comum, a escravidão. Foi a partir daí que eles sentiram a necessidade de criarem algumas instituições, uma delas foi o candomblé, que suprissem as necessidades cotidianas.

Bibliografia

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São Paulo, Global Editora, 2003.
MINTZ e PRICE, Sidney e Richard. O Nascimento da Cultura Afro-Americana: uma Perspectiva Antropológica. Rio de Janeiro, Pallas Editora e Universidade Candido Mendes, 2003
PARÉS, Luis Nicolau. A Formação do Candomblé – História e Ritual da Nação Jeje na Bahia. Campinhas, Editora Unicamp.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo, Editora Brasiliense, 2006.
Carta manuscrita arquivada na Biblioteca do Estado de Pernambuco, transcrita em nota de rodapé, por Robert C. Smith, “Décadas do Rosário dos Pretos. Documentos da Irmandade”, Arquivos, Prefeitura Municipal de Recife – 1º e 2º números – 1945-1951. Diretoria de Documentação e Cultura.
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Graduando em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo - FFLCH USP
Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo, editora Brasiliense, 2006. p. 107.
Idem. p.85.
Luis Nicolau Parés. A Formação do Candomblé – História e Ritual da Nação Jeje na Bahia. Campinas, editora Unicamp. p. 109.
Sidney Mintz e Richard Price. O Nascimento da Cultura Afro-Americana: uma Perspectiva Antropológica. Rio de Janeiro, editora Pallas e Universidade Candido Mendes, 2003. p.27.
Sidney Mintz e Richard Price. O Nascimento da Cultura Afro-Americana: uma Perspectiva Antropológica. Rio de Janeiro, editora Pallas e Universidade Candido Mendes, 2003. p. 28.
Luis Nicolau Parés, A Formação do Candomblé – História e Ritual da Nação Jeje na Bahia. Campinas, editora Unicamp. p.102.
Carta manuscrita arquivada na Biblioteca do Estado de Pernambuco, transcrita em nota de rodapé, por Robert C. Smith, “Décadas do Rosário dos Pretos. Documentos da Irmandade”, Arquivos, Prefeitura Municipal de Recife – 1º e 2º números – 1945-1951. Diretoria de Documentação e Cultura.
Luis Nicolau Parés, A Formação do Candomblé – História e Ritual da Nação Jeje na Bahia. Campinas, editora Unicamp. p.102.
Luis Nicolau Parés, A Formação do Candomblé – História e Ritual da Nação Jeje na Bahia. Campinas, editora Unicamp. p.103.
Sidney Mintz e Richard Price. O Nascimento da Cultura Afro-Americana: uma Perspectiva Antropológica. Rio de Janeiro, editora Pallas e Universidade Candido Mendes, 2003. p.37-38.