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Artigo publicado na edição nº 22 de junho de 2007.
A “medicina popular” durante a epidemia de gripe espanhola[*1] de 1918 no município de São Paulo.

Leandro Carvalho Damacena Neto

“Da impotência do saber médico em dialogar com a moléstia abriu-se a oportunidade para a utilização de práticas alternativas. Ao contrário do que em outras ocasiões, nada fez a medicina acadêmica para combater o discurso não oficial sobre a enfermidade, mesmo estando esta mesma medicina em um momento critico de sua própria legalização enquanto único saber sobre os corpos e as enfermidades”.
(Cláudio Bertolli Filho: 1986, p.148)

No período epidêmico de 1918 a medicina científica comemorava as grandes descobertas da bacteriologia, a sociedade tinha no seu imaginário, que a humanidade estava livre das doenças que as acometiam desde tempos remotos, além disto consideravam a medicina como uma religião, “salvadora da humanidade”.

A moléstia de influenza espanhola veio juntamente com a população paulista questionar a crença na medicina científica, pois o saber médico oficial se tornou impotente para solucionar a crise sanitária que o desafiava. Os mecanismos de transmissão da gripe constituíam-se em uma incógnita para a medicina oficial das primeiras décadas do século XX.

As idéias e os remédios referentes às enfermidades confrontavam as premissas fundamentais da medicina oficial, essas eram veiculadas tanto por leigos quanto por pequena parte de doutores da comunidade médica. È bom ressaltar que as práticas tradicionais não deixaram de ser utilizadas devido ao avanço da bacteriologia, existia na verdade uma mescla de saberes no seio da sociedade e da própria comunidade médica, sendo utilizadas as descobertas bacteriológicas e as práticas tradicionais, que estavam arraigados no saber popular.

Para explicitarmos quais foram as medidas profiláticas apoiadas na sabedoria popular utilizadas pela população, abordaremos as memórias dos contemporâneos da moléstia. O incremento da medicina popular durante o ano de 1918 ocorre pela inocuidade e inacessibilidade às propostas terapêuticas por parte da população. Sugestões preventivas e mais ainda as curativas foram solicitadas pela sociedade flagelada pela gripe, o desconhecimento da doença pela medicina científica fez com que, na falta de uma profilaxia determinada, vários médicos começassem a receitar medicamentos na maioria das vezes ineficazes para a população, no sentido de amenizar, aliviar o sofrimento desta, tendo em vista, segundo Goulart, a pressão social a que estavam submetidos:

Historicamente, o médico tem um papel social que inclui, entre outros aspectos, a elaboração de respostas às doenças que acometem a sociedade. A explicação médica tem grande importância social e emocional, uma vez que permite ao doente compreender seu infortúnio. Um dos aspectos essenciais do papel e do poder social do médico está em sua capacidade de nomear o sofrimento do paciente. Dentro desse quadro, pode-se entender o valor do diagnóstico e do prognóstico de uma doença. Mesmo se tratando de uma doença perigosa, esses mecanismos possibilitam torná-la compreensível e emocionalmente mais aceitável que uma doença incompreensível.( GOULART: 2005, p. 114 )

A gripe espanhola tornou-se, dentro desse quadro uma doença incompreensível, tanto para os médicos, como para a sociedade. A população enferma reivindicava soluções para o mal que os acometia, e os aterrorizava:

Feche seus olhos por um momento e tente se imaginar entrando num quarto onde, num leito, se estende um corpo como o rosto azulado, cianótico, uma pessoa morrendo asfixiado como os pés pretos – o sinal de que a hora era chegada. Agora imagine que essa pessoa é um irmão, um pai, uma mãe, ou qualquer ente querido seu. Se isso acontecesse com você e sua família, é lógico que você iria querer entender o que aconteceu.[*2]

Ocorre que vários médicos utilizam-se dessas práticas populares de medicina. Tais práticas seguiam as medidas expedidas pelas autoridades oficiais, o saber leigo repetia muitas vezes o saber clínico sobre a influenza e as possibilidades terapêuticas como foram produzidas originalmente pela ciência (BERTOLLI FILHO: 1986, p. 155). Entendendo que não houve a predominância em 1918, de uma prática oficial ou de uma prática popular, no ápice da epidemia as duas falas tornaram-se aliadas para o tratamento da população.

Ressaltamos que no período da hegemonia da medicina científica, um pouco antes da epidemia de gripe, grande parte da comunidade médica clínica, rejeitava as práticas da medicina popular, considerando os curandeiros e benzedeiras como charlatães que se aproveitavam do leigo para obter vantagens pecuniárias, vendendo remédios ineficazes e placebos. Durante a fase epidêmica na capital paulista, desenvolveu-se um comércio com a intenção de angariar lucros. Divulgam em jornais da capital paulista remédios que eram utilizados, antes da epidemia para outras finalidades, indicando-os para o tratamento da gripe, conforme assinala Bertolli Filho que aponta para os descaminhos da propaganda durante a fase epidêmica:

A lógica que dirigia o discurso propagandístico era ditada antes pela busca do lucro do que pela prevenção e cura dos gripados, daí a incorporação nos anúncios tanto do ideário médico oficial quanto o da medicina popular, na expectativa de maximalizar a venda dos produtos apresentados. ( BERTOLLI FILHO: 1986, p. 162-3)

Remédios que antes da epidemia de influenza eram utilizados para outras finalidades foram adaptados especificamente para o tratamento da população:

(...) O que geralmente ocorria era a adaptação de antigos anúncios às necessidades surgidas com a gripe espanhola, procedendo-se à atualização do discurso propagandístico e a conseqüente redefinição ou extensão das propriedades terapêuticas dos produtos anunciados. Somente a partir dessa operação, que tinha como objetivo seduzir o receptor da mensagem, é que se tornou viável o anúncio como específico para o combate da Influenza de drogas como o Maleitosan que tanto a marca de venda quanto décadas de propagandização haviam popularizado como um remédio próprio para o combate à malária. (Idem, p. 163)

A desconfiança frente à medicina acadêmica levou a população a procurar uma resposta para o desconhecimento da doença de gripe. A medicina caseira ou popular viveu seu apogeu durante a epidemia, diante da ineficiência das drogas indicadas nos receituários médicos.

A sociedade cada dia mais vitimada pela gripe, não iria ficar esperando de “braços cruzados” a epidemia ceifa-lá totalmente, A população tinha a sua disposição os saberes populares, então por que não utilizá-los? Foi exatamente isto que ocorreu no ano de 1918, sendo que muitos dos que não tinham acesso aos tratamentos e medicamentos da comunidade médica acabaram se beneficiando de suas vantagens, menos como terapias alternativas e mais como única forma de tratamento gratuito disponível. Na memória dos contemporâneos da epidemia de influenza espanhola, obtemos informações mais precisas sobre os remédios populares. A partir daí percebemos a grande ascensão que teve a medicina popular naquele ano para o tratamento da doença de gripe:

Foi uma gripe tão agressiva que já não davam conta de fazer remédios. Só limão. Numa certa hora acabaram também os limões em São Paulo. Eu comia pouco, só tomava água com limão. (BOSI apud BERTOLLI FILHO: 1986, p. 159 )

A utilização de produtos naturais pelos enfermos se tornou uma crença na cura da doença, grande parte da população tinha em produtos como o limão, o alho, o quinino, e o sal, a única esperança para curar e prevenir a gripe espanhola. Ressaltamos que muitas pessoas com condições de obter tratamento médico oficial recorreriam à medicina popular. Muitos desses utilizavam medicamentos populares que eram receitados por diverso esculápios com a finalidade de “aliviar” a população com uma terapêutica específica.

Entre as práticas médicas e populares durante a epidemia de gripe espanhola temos o “ressurgimento” de teorias consideradas ultrapassadas como a teoria do miasma, para a qual as doenças se originavam a partir de certas condições atmosféricas e climáticas específicas, existentes em determinados locais. Algumas medidas adotadas pelas autoridades sanitárias ou recomendadas pelo próprio costume tinham base na concepção miasmática das doenças, como, por exemplo, a prática da fumigação, entranhada na memória popular:

A sugestão para a queima de alcatrão, para limpeza do interior de edifícios pouco higiênicos, bueiros, ratos e fezes de animais (...) inalações de vaselina mentolada, os gargarejos com água e sal, com água iodada, com ácido cítrico, tanino e infusões de plantas contendo tanino, como folhas de goiabeira e outras (...) como preventivo, internamente, pode-se usar qualquer sal de quinino nas doses de 0,25 a 0,50 centígramos por dia, devendo usá-los de preferência no momento das refeições para impedir os zumbidos nos ouvidos, os tremores etc. ( BERTUCCI: 2003, p. 109 )

As doses do quinino foram controladas com maior rigidez em medidas estipuladas, sendo aconselhado o uso após as refeições, pois o quinino poderia deixar a pessoa inconsciente. O uso abusivo dessa substância pela população enferma na cidade de São Paulo foi uma constante, muitos utilizavam altas doses, ocorrendo assim desmaios em plena rua, sendo muitas pessoas confundidas com mortos, e levadas para serem sepultadas ainda vivas, conforme relatos estarrecedores difundidos como verdadeiras lendas urbanas durante e após a epidemia gripal.

A teoria miasmática exerceu grande influência na interpretação da doença de gripe e nas medidas adotadas pelo Serviço Sanitário Estadual, uma dessas interpretações é que a origem da epidemia de gripe espanhola de 1918 se deu a partir da Guerra no continente Europeu:

A Guerra Européia em toda a sua extensão e violência havia interferido inclusive nas leis naturais que regiam o universo; Imunação imperfeita de milhares de corpos, a decomposição do sangue derramado nos campos de batalhas, a ausência de higiene nas trincheiras, deflagração de milhares de projéteis e explosivos alteraram a atmosfera e a natureza de todo o globo (...) as mudanças ocorridas na atmosfera causou alterações nos micróbios que ganharam uma virulência ímpar. ( BERTOLLI FILHO, op cit. , p. 156-7)

A medicina popular surgiu então como alternativa diante de uma doença desconhecida. A proliferação de receitas milagrosas, chás, emplastos, beberagens diversas espelham as insatisfações da população com a falta de atendimento adequado, com a impossibilidade de estabelecimento de um diagnóstico preciso, pela ausência de estratégias do governo e das autoridades sanitárias. “Desconhecido o agente causador da doença de gripe, a solução foi à utilização de uma profilaxia individual e sintomática, constituindo assim uma terapêutica heterogênea” (GOULART: 2005, p. 112 ), até mesmo a aguardente tornou-se medicamento bastante utilizado como preventivo da moléstia:

O botequim da rua do Thesouro e a Casa Pomona, no Largo da Sé, passam os dias repletos. Extranhando esse facto, procuramos saber a sua causa. Entramos no Pomona, dispostos a dar dois dedos de prosa com qualquer dos garçons. Não foi necessário. Um apreciador da branquinha, que entoava desafinadamente a “Pinga com Limão, Cura a urucubaca”, forneceu-nos indirectamente a explicação que buscávamos. Pinga com limão, si cura a urucubaca, também pode curar a influenza.[*3]

A população estava à procura da cura e prevenção da doença de gripe, a medicina popular e sua farmacologia constituiram-se numa crença ou esperança para a sobrevivência à epidemia, pois o saber médico, acabou deixando a população, parafraseando Max Weber, em uma “Gaiola de Ferro” ( WEBER: 2004, p. 135):

Cada médico tinha uma “tentativa” de explicação diferente; nós não sabíamos no quê e em quem acreditar. Esperávamos por uma explicação que ninguém tinha para dar, como até hoje esperamos para saber o que foi aquela sassânida infernal.[*4]

Assim a população mostrou-se cética diante de um discurso que proclamava o “fim das enfermidades” que acometiam a humanidade buscando forças, crença e esperança na memória popular, ou seja, na tradição, tão desacreditada pela modernização em curso naquele período. Não é possível falar em impotência do saber popular, uma vez que esse saber permitiu que a população acreditasse de novo na possibilidade de sobrevivência, foi ele que constituiu o imaginário de grande parte da população, que se tornou sobrevivente do flagelo de gripe espanhola no ano de 1918.

Bibliografia

BERTOLLI FILHO, Cláudio. Epidemia e Sociedade: a gripe espanhola no município de São Paulo. SP, 1986, 482p. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
BERTUCCI, Liane Maria. “Conselhos ao Povo”: Educação contra a Influenza de 1918. Cad. Cedes, Campinas, v. 23, n. 59, p. 103-117, abril 2003 (Disponível em http://www.cedes.unicamp.br)
_____________________. Entre Doutores e para leigos. Fragmentos do discurso médico na Influenza de 1918. Hist., ciênc., saúde. Manguinhos, abr. 2005, vol. 12, n. 1, p. 143-157.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: TAQ/ Edusp, 1987.
GOULART, Adriana da C. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist., ciênc., saúde. Manguinhos, vol. 12, n. 1, p. 101-42, jan.-abr. 2005.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad., Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004.
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Graduado em História pela Universidade Estadual de Goiás – UnUCSEH – Anápolis – GO.
A Epidemia de Gripe Espanhola no ano de 1918 atacou em quase todas as localidades no mundo, com exceção de algumas ilhas no Oceano Pacifico, segundo consenso entre os pesquisadores da epidemia, a espanhola no ano de 1918 vitimou cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo.
“Entrevista ao Senhor Nelson Antônio Freire” apud GOULART, op. cit. , p.114.
“A GAZETA” apud BERTOLLI FILHO, op. cit. , p.161.
“Entrevista ao Senhor Nelson Antônio Freire” apud GOULART, op. cit. , p.114.