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Artigo publicado na edição nº 25 de setembro de 2007.
Mato Grosso
entre relatos de memória sobre ocupação recente e a instituição da memória vencedora[*1]

Andréia de Cássia Heinst

Durante as décadas de 1950 e 1960, é grande o interesse das autoridades governamentais do Estado de Mato Grosso, em produzir imagens que salientassem a preocupação com relação à abertura de estradas e rodovias, tanto de ligação entre os locais de terras para a venda e a localidade urbana mais próxima, como entre Mato Grosso e outros Estados vizinhos.

Procura-se assim produzir uma imagem de integridade e cuidado em torno da produção agrícola do Estado, passando uma idéia de que as autoridades governamentais estariam empenhadas na construção de rodovias que proporcionariam o escoamento da produção agrícola. Essa idéia em passar uma imagem de preocupação das autoridades em relação à construção de estradas e rodovias é estampada, exaustivamente, nas páginas de jornais, assim como a preocupação do Estado em promover a ocupação de suas terras.

Os anúncios sobre essas terras são encontrados em jornais de maior circulação em Mato Grosso e em outros Estados. São propagandas que tendem a apresentar Mato Grosso como uma enorme mancha de terra fértil a espera de mãos ávidas por trabalho e prosperidade. A intenção é despertar o interesse naqueles que, geralmente, têm uma relação forte com a terra e que, particularmente por esse fato, podem se apresentar mais sensíveis a tais anúncios. Os artigos chegam à mídia nacional, com um forte apelo patriótico, como se pode apreender da nota de jornal intitulada Estão vendendo terras em Mato Grosso, transcrita de “O GLOBO” :

(...) Estão vendendo Mato Grosso! A febre de loteamento na região está destruindo uma riqueza nacional que jamais se poderá recuperar. Terras ricas, capazes de construir toda nossa riqueza agrícola do país, vão sendo impiedosamente queimadas, para – envergonha dizer – serem trocadas por dólares e francos com a conivência das próprias autoridades locais. Por onde se passa vêem-se anúncios de terras para vender, mapas e contratos. Só indo lá para ver. É o que devem fazer, principalmente os moços, que são os interessados. Vão lá e dêem esse socorro ao Brasil (...).[*2]

Várias matérias destacavam também a falta de critérios na venda dessas terras ditas para a ocupação. Uma matéria do “O Estado de S. Paulo” denuncia as condições sem critério algum das vendas de terras em Mato Grosso, apontando para a grande oferta e procura dessas terras e as devidas facilidades que, aliás, outros jornais de várias localidades do país estavam divulgando:

(...) O volume de aquisição de fazendas no vizinho Estado é verdadeiramente impressionante. Em todos os jornais do interior deparamos com anúncios tentadores de ‘corretores autorizados’, circunstancia que demonstra ter o caso ultrapassado os limites do razoável e entrou no domínio do extraordinário. (...) As glebas em Mato Grosso são quase sempre imensas. Se em Minas Gerais o alqueire já é a dobra do alqueire paulista, lá então as medidas usuais se fazem por léguas quadradas. Núcleos e empresas colonizadoras aparecem nos mais estranhos e distantes lugares, (...) Os preços contrastam-se violentamente com os que vigoram entre nós, e pode-se adquirir terras devolutas, na região das dúvidas, na Barra do Garças, do Bugre, em Diamantino ou Aripuanã, por mais ou menos 25 cruzeiros o alqueire paulista! Paga-se o corretor, o despachante, paga-se o engenheiro que deve fazer a divisão e fica-se latifundiário de um instante para o outro com menos de dois contos de réis. (...) Qualquer jornal do interior paulista, ou da periferia mineira insere sempre um aviso das colonizadoras ou dos concessionários autorizados. (...).[*3]

Tais anúncios destacam fatores que, notoriamente, despertam o interesse para as terras do Estado, apresentando-o como o lugar “perfeito”, onde “o clima é o melhor do mundo”, as terras as mais baratas e fáceis de adquirir e somando-se a tudo isso se tem ainda as terras mais férteis, pois, são as “melhores do mundo” em que se plantando tudo pode produzir.

Anúncios tentadores como estes funcionam como verdadeiros catalisadores de interesses despertando as atenções dos que os lêem, como aponta uma outra nota do jornal “O Estado de São Paulo”, que critica o teor apelativo das propagandas sobre as terras de Mato Grosso: (...) O mesmo fenômeno que produz os loteamentos urbanos manifesta-se e faz com que os paulistas se voltem para Mato Grosso, ainda que sem o menor intuito de se quer viajar até lá. (...).[*4]

Dessa forma, as propagandas das terras e as facilidades em adquiri-las eram estampadas em jornais, tanto na capital do Estado de São Paulo como em cidades do interior.

As autoridades do Estado tentavam a todo custo estimular estes contingentes de pessoas a se dirigirem para Mato Grosso. Alcir Lenharo, ao analisar em seu texto a questão da terra em Mato Grosso, particularmente durante a década de 1950, aponta que: “Em primeiro lugar, abriu-se espaço para o colono do sul, branco, de origem européia, preferido em relação ao nacional, geralmente de origem nordestina[*5].

Numa nota de jornal publicada em 1963, é possível notar que o paulista é visto como alguém que, indiscutivelmente, possui o “dom” do progresso, do trabalho, da capacidade, por isso, é preciso trazê-lo para o Estado. Pode-se verificar estes sinais através de um exemplo emblemático de uma matéria do jornal O Estado de Mato Grosso. A reportagem vem trazendo informações sobre uma homenagem ao então governador do Estado de Mato Grosso, Fernando Corrêa da Costa, feita pela Câmara Municipal de São Paulo “outorgando-lhe” o título de Cidadão Paulistano – José Sabino Saúda o Governador – Discurso com a Linguagem do Coração – Apelo ao Povo Paulista:

(...) Nós aguardamos os dias de hoje e estamos felizes por esta quase obstinação, porque hoje nós já sentimos que os paulistas vão pular o Rio Paraná, com a sua experiência, com o seu patriotismo, com o seu dinheiro, com o seu poder econômico, que sem isso não há civilização possível. E lá nós estamos, paulistas, e digo em nome de todos os matogrossenses, e hoje paulistano também, aguardando de braços abertos a ajuda de vocês. Venham nos ajudar a desbravar a maior gleba preparada para receber uma civilização pujante, que é Mato Grosso. Venham povoar o pantanal, que é a maior reserva criatória de gado do mundo. Venham plantar nas nossas florestas. Venham trazer a Sorocabana até Dourados. Venham explorar, para riqueza vossa e nosso conforto, aquela mata de mais de um milhão de hectares de terras de primeira ordem, de terra roxa, igual a do Norte do Paraná, pois que a terra de Dourados não é mais que a continuação da terra do Norte do Paraná (...) venham para Cuiabá, e vamos conquistar a Amazônia através do Mato Grosso.
Confesso-me sumamente honrado. Agradeço, comovidamente, a homenagem que recebi nesta Casa e que levarei para todos os matogrossenses. Repito o meu apelo: venham, paulistas, ajudar no desenvolvimento de Mato Grosso[*6].

No discurso do governador, o Estado de Mato Grosso é apresentado como “a terra prometida ao povo escolhido”. Somente essa grande mancha de terra pode comportar uma civilização tão “forte” como a paulista. É essa figura colonizadora do paulista que Mato Grosso esteve esperando e se preparando para receber.

Falando em nome de todos os mato-grossenses, o governador colocava-se a si e também o Estado todo, numa posição de total passividade, dando a entender que desde sempre Mato Grosso e seus moradores estiveram esperando, como num “conto de fadas” o príncipe-herói, salvador que o libertaria do sono do atraso, levando-o rumo ao desenvolvimento. Nesse discurso, Mato Grosso é o “gigante adormecido” esperando aquele que pode despertá-lo desse sono que o impede de desenvolver-se. Na fala do governador homenageado, o paulista é apontado como aquele que pode trazer o progresso, a riqueza e o desenvolvimento para o Estado.

Neste aspecto, torna-se importante refletir que a partir da e com a ditadura militar, palavras como desenvolvimento e crescimento, especialmente econômico, circulavam freneticamente por todo o país. Buscava-se por uma válvula impulsionadora de uma imagem do Brasil como “um país predestinado a crescer e a se modernizar”. Naquele momento, era necessário que todos os Estados fizessem ver e crer, para si e para o restante do país, que eram partes importantes e integrantes de todo o território nacional, em consonância com o ideário político da nação: segurança nacional, desenvolvimento e integração.

Souza Guimarães, ao analisar a produção de “uma identidade cuiabana” a partir de uma certa produção iconográfica para a cidade de Cuiabá entre as décadas de 1970-1990[*7], traz valiosa contribuição ao apresentar a grande necessidade que se instaura, para o Estado de Mato Grosso, de sair de sua condição de atraso encurtando as distâncias, tanto econômicas como geográficas entre esse Estado e os grandes centros produtivos do país. Assim, a partir da década de 1970, com a política militar de “preenchimento dos espaços vazios” e a procura de estabelecer-se como parte integrante de um país “fadado ao desenvolvimento”, tornou-se imperativo para Mato Grosso construir um passado para si de progresso, ainda que em desenvolvimento. Pois, de acordo com a análise da autora:

“Tratava-se, segundo os discursos dos políticos daqui e ‘de fora’, de preencher este lugar – rondado pelo estigma da ‘falta’ – com grandes contingentes populacionais, que somados ao aproveitamento de seus recursos naturais, realizariam plenamente a inequívoca vocação da região – de produtora de alimentos —, consolidando-a como grande centro produtivo para o país e para o mundo. (...)”[*8]

Assim, fez-se imperioso para Mato Grosso construir sua imagem como lugar de inumeráveis possibilidades de desenvolvimento. Imagem esta produzida do passado para o futuro. É nesse sentido que uma luta pela memória, tal qual a autora analisa, é deflagrada na concepção das elites governantes para “resgatar” a memória cuiabana, preservando sua identidade cultural.

A preocupação em conclamar e instituir um passado de notável responsabilidade na construção da história do país é reforçada, como missão histórica, pelas autoridades políticas estaduais, especialmente depois da divisão do Estado, como no documento que se segue:

“(...) Um Estado que renasce, pela responsabilidade de seu passado, é muito mais difícil de administrar do que um outro que apenas nasce. O Estado de Mato Grosso, mais berço da História do Brasil do que qualquer outro do Centro-Oeste, está renascendo. Precisa reconstruir sua vida político-administrativa, refazer seus compromissos e, sobretudo, preservar a história de seu povo, que, mesmo com a divisão, os que ficaram no Estado do Sul, reclamam a sua origem. Inútil inobservar tal fato, sob pena de ser julgado pela própria História, o governante que ignorar esta realidade, porque, quando da proposição, pelo governo Geisel, para mudar o nome do Estado de Mato Grosso do Sul, sua população foi unânime em afirmar que precisava manter a tradição, responsabilidade dos dois estados de Mato Grosso. (...)”[*9]

O trecho acima aponta para uma enorme preocupação em firmar um passado para Mato Grosso, que estabeleça suas especificidades – culturais, econômicas e sociais – e que contribuíram ativamente para a construção da história do território nacional. Por outro lado, o país projetava-se como “um dos principais produtores de alimentos do mundo”, idéia bastante difundida a fim de inflamar os ânimos de todos os brasileiros, especialmente dos agricultores, na “luta” pelo crescimento nacional.

Para Mato Grosso, forja-se um discurso que a um só tempo quer dar visibilidade a um passado de tradições, como na matéria citada, mas também necessita firmar-se como um Estado de fundamental importância econômica na vida do país através do seu desenvolvimento. Nesse sentido, o Estado, apresenta-se como possuidor de um enorme potencial produtivo.

Seguindo essa linearidade progressista, entra em cena uma produção escrita sobre os municípios que compõem Mato Grosso e, necessariamente, é apresentado o histórico de cada município sempre envolto por uma história de desenvolvimento. Buscam nas origens de cada um a marca que dê significado a ele e ao papel que desempenha, contribuindo para a imagem do Estado como grande produtor do país. A figura do pioneiro torna-se um ícone nessa construção.

Conseqüentemente, os pioneiros apresentados são sempre pessoas voltadas para o trabalho com a terra. Essa história, que busca as origens para dar tons de verdade a certos interesses do presente, encontra na figura do paulista o pioneiro mais ajustado aos interesses de fixar uma história de progresso para o Estado. Sendo assim, elegem o paulista que se deslocou para Mato Grosso como herdeiro dos grandes bandeirantes, responsáveis por seus locais de origem, as regiões Sudeste/Sul, tidas como mais desenvolvidas que os demais Estados do país.

Várias produções escritas voltadas a difundir/fundir uma imagem e uma história progressista dos “novos municípios” do Estado são postas em circulação, em todo o território nacional, como o documento que se segue:

“Quando viajamos e vislumbramos as cidades por onde passamos, nem sempre nos ocorre pensar ou indagar sobre as pessoas que primeiro ali chegaram e puseram-se a trabalhar como autênticos pioneiros e desbravadores. Nossa história nem sempre fala, ou nada fala desses audaciosos e destemidos colonizadores. Enquanto isso a história da colonização americana está cheia de seus heróis e até filmes são feitos para imortalizar suas imagens e memórias.
Mato Grosso, tem muito do oeste americano, (...)”[*10].

Existe uma necessidade de construir uma história para essas novas cidades, ressaltando as potencialidades econômicas do local e recheada de feitos grandiosos e heróicos dos que são escolhidos e apontados por essa mesma história como pioneiros, os primeiros a chegarem ao local.

Procura-se fazer crer que o local teve bom desenvolvimento porque seus pioneiros são pessoas procedentes de locais “desenvolvidos” economicamente e de tradição agrícola. Esse discurso dissemina-se em todo território estadual, especialmente nos municípios de ocupação recente como o de Mirassol D’Oeste, que teve sua ocupação em princípios da década de 1960.

A partir do final de 1980 e início de 1990, são produzidos, na própria localidade, textos escritos, dirigidos especialmente às escolas do município, sobre a história da cidade.

Essa produção escrita do local apresenta uma “história” da cidade, de forma a destacar sua origem e promover o enaltecimento de determinados atores, sempre paulistas, pessoas que alcançaram ascensão sócio-econômica, destacando seus feitos para conseguirem seu enriquecimento e conseqüentemente o do município.

Nesse sentido, através dos textos sobre Mirassol D’Oeste, cria-se uma memória para a cidade calcada na idéia do pioneiro/paulista indissoluvelmente ligada ao progresso. Apresenta-se os chamados pioneiros como as pessoas que chegaram primeiramente ao local e, com sua força e coragem, conseguiram “desbravar heroicamente” o “sertão” que lá existia.

Estes “heróis” são descritos nos textos que circulam pela cidade como os que levaram desenvolvimento para aquela área e com seu esforço e dedicação ao trabalho, efetuaram verdadeiras mudanças no cenário encontrado na chegada. Esta façanha é tida como algo natural, inerente a esse povo “predestinado” a modificar tudo que tocar, pois: “ (...) Devido o esforço e a dedicação destes fundadores, conseguiram transformar a cidade natureza em cidade urbana.(...)[*11].

Essas pessoas eleitas para fazer parte da memória da cidade, em geral, são pessoas bem estruturadas econômica e socialmente. Entretanto, repetir incansavelmente uma mesma afirmação, silenciando outros personagens, é uma forma de dizer o que se pensa a respeito dos que não aparecem no discurso e afirmar uma postura sobre o que se deseja tornar visível, perpetuando algo. Essa é certamente uma maneira de expulsar da memória qualquer um que se diferencie do modelo esperado, que é o do pioneiro trabalhador pobre que chega e com muito esforço, dedicação e disciplina consegue trazer progresso à localidade e tornar-se próspero proprietário.

O silêncio neste caso fala. Fala sobre o que se pensa e como se age perante o outro, o diferente, o pobre, aquele que não é paulista, que não ficou rico e não representa uma boa imagem da cidade.

Folheando a produção de textos sobre a cidade, o que se encontra são informações sobre as pessoas que conseguiram certa posição econômica e social. Pessoas que enfrentaram toda sorte de perigos e desalentos não existem para essa memória construída sobre as muralhas da intencionalidade em firmar uma idéia de cidade pródiga e bem aventurada.

Assim, estes textos se ocupam de uma história linear, ou seja, desde os tempos iniciais da cidade, descrevendo em tom heróico a saga dos que são reconhecidos por estas leituras sobre a formação da cidade como os pioneiros, apresentando-os como aqueles que, com muito trabalho, ao mesmo tempo em que angariavam bens materiais, construíam e transformavam o local em próspero e vencedor. Nota-se que os discursos estão sempre representando interesses de um determinado grupo.

Esses textos instituem uma memória vencedora, excluem uns e enaltecem alguns outros personagens, porque entendem que alguns representam a melhor imagem de uma cidade que precisa afirmar-se como aquela que oferece muitas oportunidades. Necessitam apresentar uma história sempre direcionada para o futuro.

Entretanto, existem outros relatos sobre quem são os pioneiros que deveriam fazer parte dessa história e estar presente na memória de Mirassol D’Oeste. São relatos de pessoas que participaram dos tempos iniciais de ocupação, mas que não estão presentes na memória oficial da cidade. Esses relatos de memória apresentam outros atores como os verdadeiros pioneiros e os que mais trabalharam. Nesse ponto, estabelece-se uma disputa em torno das leituras sobre o passado e a história de Mirassol D’Oeste.

A experiência vivenciada nos primeiros momentos da abertura das terras dessa área da cidade focalizada, ainda que re-significada pelas experiências do presente, emerge nos relatos de memória como uma ruptura. Ao rememorarem e contarem suas experiências vividas juntamente com o acontecer da cidade, os relatos de memória apontam para a descontinuidade e multiplicidade de uma história que se quer ininterrupta e homogênea.

Notamos que uma batalha é travada entre os vários grupos, na intenção de tornar verdadeiras as suas versões sobre a história de Mirassol D’Oeste e fazer-se visível para si e para os outros como aquele que tem a “verdade”.

Assim, os que não aparecem nos livros e apostilas municipais escritas sobre a cidade afirmam-se pioneiros, relembram e narram determinados fatos que lhes ocorreram no desejo de valorizar suas pessoas. Estabelecem aí uma forma de luta para tentar ser visto e reconhecido como importante na história da cidade.

Para isto, nos relatos de memória, sobre o período inicial de ocupação da área de terras em Mirassol D’Oeste, esses personagens ausentes (mulheres e homens) vão estar o tempo todo fazendo apropriações do discurso vencedor, enaltecendo suas pessoas, apresentando-se e representando-se como o que primeiro chegou no lugar e o que mais trabalhou, merecendo desta forma o reconhecimento devido, como expressa o relato de memória a seguir: (dona Preta):

(...) Olha eu trabalhei ali naquele lugar, foi onde criei meus filho, ali no sítio. Trabalhei que nem uma condenada (...) Sozinha, eu e meu filho mais velho que tava com oito anos. Agora, que força tem uma criança com oito anos? (...) a primeira mulher que entrou aqui fui eu e a finada mãe, só que, faz vinte anos que minha mãe faleceu (...)[*12]

Desse modo, os relatos de memória a respeito dos tempos iniciais de abertura dessa área de terras de pessoas que não aparecem nos textos escritos sobre a cidade, mas que se atribuem o título de pioneiras também, representam um ponto de “erosão” nesse discurso vencedor que se quer absoluto, demonstrando assim que o tempo da história, que é o tempo do vivido, “ (...) não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’[*13].

Essas leituras que querem dar a crer e fazer-se reconhecer como verdadeiras, produzem o que Michel Foucault aponta como “um combate pela verdade”, entendendo-se por verdade “o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder[*14].

Nesse sentido acreditamos que mais do que apontar quem realmente são os autênticos pioneiros e quais relatos contém a verdadeira história da cidade (os textos escritos ou os relatos de memória dos que foram ausentados desses textos) é preciso questionar porque e como num determinado momento a produção de uma certa história e a instituição de uma memória vencedora tornou-se necessário para a cidade, e mais ainda, interrogar por que é tão expressivo ser reconhecido como pioneiro.

Portanto, é preciso que se diga que os relatos de memória desses homens e mulheres que narram suas experiências sobre a abertura dessa área de terras, trazem leituras dessa ocupação. Assim como a produção escrita sobre a história da cidade apresenta uma certa interpretação de verdade, esses relatos de memória não encerram, por expressarem as experiências vivenciadas no período inicial da abertura, a real história da ocupação pois concordamos que experiência deve ser entendida como “uma história do sujeito[*15] que narra e “não evidência autorizada[*16], sendo leituras plurais de cada narrador.

Palavras-chaves: relatos de memória, ocupação, colonização, pioneiro.
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Mestre em História pela UFMT; Professora Interina do Departamento de História da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso).
Este texto é um fragmento da minha Dissertação de Mestrado “ Pioneiros do século XX:memória e relatos sobre a ocupação da cidade de Mirassol D’Oeste”, defendida em 2003 pela UFMT.
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 21 de novembro de 1954, n°2485, p. 01.
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 21 de janeiro de 1954, n°2358, p. 01.
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 21 de janeiro de 1954, n°2358, p.01.
LENHARO, Alcir. A terra para quem nela não trabalha: a especulação com a terra no Oeste brasileiro nos anos 50.In: Revista Brasileira de História. “Terra e Poder” . São Paulo, Ed. Marco Zero/ANPUH, V.6, nº 12, 1986., p.50.
O Estado de Mato Grosso: Cuiabá, Jornal, 24 de fevereiro de 1963, n° 4.236, p. 01.
Cf: SOUZA GUIMARÃES, Suzana Cristina. Arte & Identidade: Cuiabá 1970 –1990. Cuiabá. ICH – UFMT, 2003. (Dissertação de Mestrado).
Idem, p.37.
Revista AGROESTE. Cuiabá, 1982, p.49.
Revista O POLICIAL. Cuiabá, 1979, p.24
PEREIRA, Tereza Dias. História de Mirassol D’ Oeste: Formação e Organização do Município, 1962 – 1994. R.G.A. Gráfica e Editora Ltda, 1998, p.11.
Entrevista com Dona Preta em sua residência em Mirassol D’Oeste em 2000.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. 3ª. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.229.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1998, p.13.
SCOTT, Joan W. In:SILVA, Alcione Leite da & SOUZA, Maria Coelho de & OLIVEIRA, Tânia Regina (orgs). Falas de gênero: teorias, análises, leituras, Florianópolis: Ed. Mulheres, 1999, p.42.
Ibidem, p.27.