Artigo publicado na edição nº 26 de outubro de 2007.
“Furiosos” e “incuráveis”:
as recusas ao internamento de loucos no hospital da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas – RS (1848-1908)[*1]
Cláudia Tomaschewski – UFPel
Este artigo trata da assistência (neste caso com o sentido de controle) e pergunta sobre o lugar que teriam os loucos na distribuição da assistência aos pobres (ou não pobres) de uma forma geral, especialmente no Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas - RS. Não tomo os loucos como pobres, porém, se entendermos sua condição de precariedade relacional, podemos compará-los aqueles que, por exemplo, não tem ninguém que os cuidem em suas doenças. Os que são considerados alienados, em muitos casos, mesmo não sendo pobres, são interditados e seus familiares não os desejam em sua companhia.[*2] Neste caso, a assistência configura-se como controle, porque podemos pensar que a maior parte dos indivíduos internados como loucos em hospitais gerais, asilos, hospícios e prisões o foram, não por sua decisão, mas por vontade de parentes ou das autoridades policiais, ou seja, este tipo de “cuidado” atendia muito mais as necessidades das famílias e da ordem pública.
Neste caso, os mais interessados na existência de espaços específicos para a loucura eram aqueles que dos loucos queriam distancia.
O hospital da Santa Casa de Pelotas, fundado em 1848, asilava os loucos, mas a administração da irmandade parecia querer distancia dos mesmos. Normalmente, os regulamentos limitavam de forma considerável o seu ingresso, e, em muitos casos, havia a tentativa de enviá-los para o hospício Pedro II no Rio de Janeiro, ou para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, e posteriormente o hospício São Pedro na mesma cidade. Sempre que estas medidas eram frustradas havia reclamação dos dirigentes e afirmação da impossibilidade de manter “estes infelizes” no hospital. E, mesmo quando, em 1876, a Mesa da Irmandade inaugura alguns quartos para loucos, a justificativa é a caridade com que deveria ser tratada a “classe mais infeliz da sociedade”. Ou seja, de uma forma geral, as justificativas para a não inclusão dos loucos entre os internos do hospital, ou mesmo a sua assistência, não tem como argumento principal a medicina, mas sim, a filantropia, ou, no caso da exclusão pura e simples, o incômodo causado por estes assistidos, que trariam danos materiais e espirituais, respectivamente ao hospital e aos demais internos. Mais precisamente, é possível perceber um discurso da economia dos recursos dispensados para a assistência.
Desde a fundação do hospital os ditos “alienados” foram recebidos entre os internos. Por meio do relatório à nova mesa, sabemos que em 1850 havia dois quartos específicos para os loucos, separados das demais enfermarias, nos quais era preciso “por grades de ferro nas enfermarias dos presos, policiais e doidos para melhor ventilação no verão e segurança”.[*3] Os loucos, presos e policiais eram, de certa forma, colocados dentro de uma mesma categoria de assistidos; especificamente, aqueles que representavam perigo e que deveriam ser trancafiados com grades seguras.[*4]
No final da década de 1850 há insistência, nos ofícios e relatórios enviados pela irmandade de Pelotas ao Presidente da Província, para que fosse construído um asilo especialmente destinado aos loucos em Porto Alegre, já que o Pedro II no Rio não estaria mais recebendo os “furiosos” e “incuráveis” que antes eram para lá enviados, possivelmente por superlotação.[*5] Em 1859, ao escrever para o Presidente da Província, o provedor da Santa Casa de Pelotas argumenta sobre os motivos pelos quais deveria ser construído um asilo para loucos. Diz ele que, por não existir lugar suficiente no Pedro II, as Santas Casas se viam obrigadas:
a tê-los nos hospitais com grave prejuízo dos outros enfermos em conseqüência da grande bulha que de dia e de noite fazem, sem a menor esperança de cura, como nos acontece com dois que há mais de dois anos aqui existem, que muito incomodam.[*6]
Ou seja, a expectativa da incurabilidade e a desordem causada no hospital eram os principais motivos apresentados pelos dirigentes para enviar os loucos para outras cidades aos cuidados de instituições específicas, provavelmente para livrarem-se do sustento de um sujeito que poderia ser considerado permanentemente improdutivo. Em outros casos argumenta-se que mesmo com os parcos recursos da Santa Casa, esta instituição deveria prover uma ajuda caritativa aos loucos. No ofício acima referido, as justificativas médicas — como a especificidade dos loucos que requeria o que “a ciência têm conhecido ser útil em semelhantes enfermidades” sendo necessária a construção de “acomodações apropriadas como a ciência exige”—, aparecem no final da argumentação e reforçam o envio dos loucos para outras cidades, já que em raros momentos a Santa Casa de Pelotas propôs-se a destinar espaço no hospital para “tais enfermidades”.
Poderíamos então pensar em três argumentos utilizados para que se construa um hospício para loucos, e que podem ser lidos na seguinte ordem de enunciação: 1º - Uma economia da assistência no que diz respeito ao custo de manutenção dos internos e a ordem do hospital; 2º - Um discurso caritativo/filantrópico que afirma que deve haver humanidade no tratamento dos loucos; 3º - O argumento de que a ciência já teria algumas soluções para a loucura que deveriam ser empregadas no tratamento dos loucos.
A Misericórdia de Pelotas também enviou, em agosto de 1859, ofícios às Misericórdias de Porto Alegre, Rio Grande e São Gabriel pedindo-lhes para “corroborarem o pedido desta Santa Casa à Presidência no sentido de haver na província um hospital especial para alienados”. E seguem vários ofícios ao Presidente da Província, e, especialmente, os pedidos nos relatórios anuais para que seja construído um asilo específico. Esta pressão pode ter sido feita também pela Santa Casa de Rio Grande e São Gabriel, o foi, como se sabe, pela Santa Casa de Porto Alegre; e pode ter sido fator importante para o decreto provincial de 1859 que previa a construção de um hospício.[*7]
Em muitos casos encontrados, o recebimento de loucos na Santa Casa encontra impedimento em motivos econômicos. Se em muitos a justificativa está na desordem que os loucos causariam no hospital, perturbando os demais internos, as justificativas econômicas começam quando os loucos causam estragos materiais no hospital. Poderíamos então pensar que os loucos “mansos” seriam asilados sem problemas, mas não é o que acontece, pois neste caso as justificativas para o não recebimento podem ser encontradas nas despesas diárias destes indivíduos se fossem considerados “incuráveis”.
Em 1860, são feitas novas queixas ao presidente da província dos “graves embaraços com os doidos”, pois havia chegado em agosto deste ano “uma furiosa vinda do Herval, que com custo se arranjou no estabelecimento, mas que de noite e de dia muito incomoda os enfermos com seu contínuo bater e gritar”. Neste mesmo ofício, relata-se que existia na cidade outra louca cujo marido foi obrigado pelo delegado de polícia a mantê-la em casa, mas que:
Sendo ele oficial de ofício se vê impossibilitado de trabalhar e de manter os meios de subsistência; pelo que pretende levar a mulher para a Corte, apesar do aviso do Exmo. Ministro do Império que declara não se poderem receber no Hospício de Pedro II mais doidos pobres.[*8]
Em 11 de agosto de 1861, a Santa Casa enviou ofício ao subdelegado para recusar o pedido de recebimento de Maria Fausta, provavelmente a mulher do caso acima. Ela não seria recebida na Santa Casa, pois, segundo o provedor, “esta infeliz como tem um marido que pode trabalhar, não a podemos considerar como pobre, para os quais as portas desta Santa Casa estão sempre abertas”.[*9] Ou seja, tanto a Santa Casa, quanto o marido queriam distância de Maria Fausta.
Em relatório de 1861, o então provedor Barão de Piratini informa que, durante o ano, foram recebidos cinco loucos no hospital, e que “apesar dos incômodos, não recusou a Mesa dar alívio à classe mais infeliz da sociedade”.[*10] Um dos loucos recebidos era Luiz Naranjo, imigrante espanhol, que teria sua estadia de dois mil réis diários paga por João Sainz de la Maza (não pesquisei sobre as relações entre estes indivíduos, mas suponho que João fosse agente de imigração ou empregador de Luiz, ou ambos). Como chegasse ao fim do acordo de pagamento, a Santa Casa envia ofício ao vice-consul espanhol para que tome providências em relação a Luiz, que nos poucos momentos de fala teria expressado o desejo de retornar à “sua pátria e ao seio de sua família”. Luiz foi “remetido para a Espanha”, e a Santa Casa livrou-se do ônus de mantê-lo por mais tempo no hospital, além de serem confiscados parte de seus poucos pertences para pagamento das diárias não cobertas por La Maza.[*11]
Quando da campanha para a construção do Asilo de Alienados na capital da Província, os dirigentes da Santa Casa de Pelotas sempre afirmaram estar dispostos a contribuir para a construção. Acontece que, em 1863, o então provedor da Misericórdia de Pelotas, Barão de Piratini, afirmava que a subscrição de esmolas na cidade seria difícil “pois as pessoas têm contribuído para a obra do novo hospital”, ou seja, a prioridade agora era a construção de um novo hospital local.[*12]
Mas quando apareciam problemas com os loucos a Santa Casa afirmava novamente que ajudaria na construção do Asilo em Porto Alegre. Em 1866 foi recolhido no hospital como alienado o capitão Luiz Ignácio Pires, e como não haviam cômodos para “tais enfermidades” ficou encarregado o irmão José Rafael Vieira da Cunha, então delegado de Polícia, a entrar em contato com a Misericórdia de Porto Alegre “lembrando que de Pelotas também farão meios para coadjuvarem o hospital de alienados que ali se estabeleceu”.[*13] Percebemos uma postura pragmática dos dirigentes da Santa Casa em relação aos loucos: quando há problemas no seu recolhimento, recorre-se ao hospital de Porto Alegre e à polícia.
De uma forma geral, as justificativas para o não recebimento dos loucos eram as despesas e os prejuízos materiais que eles poderiam causar. Como veremos, o público preferencial a ser atendido no hospital desde a sua fundação era composto por trabalhadores livres e escravizados em idade produtiva, e que logo poderiam voltar ao trabalho. Os loucos, assim como os enfermos de doenças contagiosas, ou consideradas contagiosas, poderiam causar desordem no hospital, podendo os primeiros permanecer por muito tempo, sem que voltassem à atividade profissional, e os segundos contaminar os demais doentes. Esta preocupação com a desordem, estragos materiais, e principalmente, os prejuízos econômicos pela permanência dos loucos aparece no regulamento do hospital em 1872. Neste regulamento, afirma-se que apenas seriam recebidos loucos mediante pagamento e por decisão do provedor que consultaria o médico. Além disso, os loucos pagariam mil réis a mais por seu internamento do que os demais doentes pensionistas ou escravos internados por seus senhores. Os doentes em geral pagariam 2 mil réis diários sendo livres, e mil e quinhentos sendo escravos. Já os loucos e doentes de elefantíases, cólera e varíola, pagariam 3 mil réis os livres e 2 mil os cativos. Além do pagamento, os internos, ou quem os internasse, teriam que dar “fiança idônea” do pagamento.[*14]
Em 1876, talvez acompanhando a campanha filantrópica para a construção do São Pedro, o então provedor da Misericórdia de Pelotas anuncia a inauguração de quartos destinados aos loucos. Afirma em seu relatório anual que:
Deixa-los desacompanhados de todos os meios conducentes ao seu restabelecimento, seria, em minha opinião humilde, concorrer criminosamente para o aumento e não para a cura do mal. [...] ao constar esta nossa tentativa, muitos virão de longe em busca do pouco que temos para oferecer-lhes, e muitos maiores sacrifícios terá de arrancar-nos este generoso tentame.[*15]
Percebe-se, na fala acima, o receio de que venham loucos de outras cidades procurar abrigo na Santa Casa, como foi possível observar que já ocorria. Neste sentido, a Santa Casa propõe-se como asilo para os loucos da cidade, não proporciona tratamento, mas os abriga “humanitariamente”. Este será o único momento em que os dirigentes da Santa Casa promovem a assistência aos loucos, e como se vê não há uma justificação médica para a construção deste espaço, mas sim um discurso da caridade que deveria ser praticada para com “estes infelizes”.
Em 1880, quando a construção do São Pedro está em pleno impulso, e os loucos parecem incomodar na Santa Casa de Pelotas, o mesmo provedor que havia mandado, por “humanitários fins”, construir os quartos para loucos em 1876, Joaquim José de Assumpção (provedor durante 12 anos), informa em seu relatório a impossibilidade de receber os “infelizes desprovidos da razão”; e parece estar convencido de que somente com um lugar apropriado que contasse com os “novos meios de restabelecimento” poderiam “tais desventurados volverem, fortes de sua razão, a serem úteis a sociedade e aos seus.”[*16] O discurso médico acaba sendo uma justificativa relevante para que instituições como a Misericórdia de Pelotas se livrem do ônus do aprisionamento dos loucos.
Com a inauguração do hospício São Pedro na capital da Província em 1884, para lá são enviados os loucos que estavam no hospital da Misericórdia de Pelotas. O que não impede que os loucos, como antes, sejam recolhidos à cadeia e recebidos na Santa Casa. Estes dois espaços continuaram sendo lugares intermediários ou permanentes para os loucos de Pelotas. Muito pouco se fala sobre os loucos na Santa Casa nos anos seguintes. Após a construção do São Pedro, parece haver uma relativa estabilização das reclamações que anteriormente vinham ocorrendo. A partir de 1890 a Santa Casa constitui-se como uma sociedade civil, menos dependente e também prestando menos esclarecimentos ao Estado.[*17] Neste momento, talvez o sentimento de “obrigação” para com a “classe mais infeliz da sociedade” já não existisse mais, até porque, no regulamento interno de 1890, a tônica é restringir o acesso ao hospital. Afirma-se que não serão recebidos os doentes que possam ser tratados na “sala do banco”, os que “padecerem de moléstias” que “a juízo dos facultativos” prejudiquem os demais doentes, e conforme é especificado “os inválidos, os alienados, e os doentes de elefantiasis dos gregos”[*18] (no regulamento de 1913 não há sequer qualquer especificação sobre atendimento de “alienados”).
Somente em 1908 torna-se a discutir a construção de um pavilhão para loucos mantido pela Santa Casa de Pelotas. Neste ano, Vicência Lopes deixa em testamento um legado de 20 contos para a Misericórdia com a condição que sejam construídos “aposentos para alienados”. Em sessão da Mesa Administrativa de 29 de agosto de 1908, o médico Edmundo Berchon, provedor da irmandade, afirma que “torna-se cada vez mais perigoso para a Santa Casa a criação de aposentos destinados a receber alienados” e propõe-se a negociar com o filho da falecida para que desista de tal condição.
Os loucos que não são imediatamente mandados para o São Pedro são mantidos na cadeia municipal e os que podem pagar continuam sendo recebidos na Santa Casa e também no hospital da Beneficência Portuguesa. Alguns anos antes do legado para o pavilhão de loucos na Santa Casa de Pelotas ainda podemos perceber a estreita relação entre loucos e cadeia. Em 1902 parece que a Santa Casa transferiu uma louca lá internada para a cadeia, segundo relato no jornal correio mercantil de 18 de julho de 1902 “estava em tratamento na Santa Casa uma desditosa mulher, que por acordo entre a direção do estabelecimento e a autoridade policial, foi, como alucinada, transferida para um xadrez na cadeia”. Lá ela esperaria sua transferência para o São Pedro “juntamente com outros alienados”, percebemos por esta notícia e por muitas outras publicadas nos jornais locais que possivelmente o percurso de muitos loucos que algumas décadas antes eram considerados perturbadores, gritões e maltrapilhos não era mais a permanência temporária no hospital da Misericórdia, mas o encaminhamento da cadeia para o São Pedro. No caso relatado acima, a mulher que não foi identificada acabou morrendo na cadeia pois o médico municipal julgou que não se tratava de um caso de loucura, mas sim de sífilis, talvez a sua condição de pobreza e o estigma da doença venérea tenham determinado a sua permanência na prisão.
Acredito que, diferentemente do quadro descrito por Robert Castel no caso da França, onde possivelmente tenham se estabelecido justificativas médicas já na primeira metade do século XIX para o aprisionamento dos loucos em vista da liberdade dos cidadãos que seria atingida por uma prisão arbitrária, no caso do Brasil este processo não está tão claro no século XIX e mesmo no começo do século XX.[*19] Por mais que se construíssem espaços específicos para os loucos, os médicos não estavam necessariamente à frente destes projetos como alguns trabalhos já tem mostrado; e por mais que alguns filantropos tenham criticado o confinamento de loucos em prisões, esta prática continuou mesmo durante o século XX.
Palavras-chave: História da Assistência; loucos; Santa Casa de Misericórdia; Pelotas; filantropia.
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