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Artigo publicado na edição nº 28 de dezembro de 2007.
Histórias recontadas:
imigrantes judias, empresárias em São Paulo (1945-1956)

Marie Felice Weinberg

Apresentação

Este estudo tem por tema a trajetória de mulheres judias que imigraram no período compreendido entre o final da Segunda Guerra Mundial e 1956. Este é o período em que o general Gamal Abdel Nasser ascendeu ao poder no Egito como resposta ofensiva a Israel, estado que, desde sua fundação, em 1948, havia passado a ocupar o referencial de identificação de todo judeu.

Segundo o censo de 1950, a cidade de São Paulo já contava com 2.198.096 de habitantes, o que demonstra que, comparada ao 1.320.000 de habitantes em 1940[*1], a população crescera muito em decorrência dos movimentos migratórios. No final de 1959, já eram mais de setecentos mil[*2] os novos imigrantes em busca de um cenário pacífico e da economia em crescimento.

De acordo com os estudos de Bresser Pereira no início do século XX, foram os imigrantes vindos a São Paulo que criaram a classe empresarial. A cidade, que acelerou seu processo de desenvolvimento a partir da Revolução de 1932, foi favorecida por contingências internas e externas que consolidaram seu espaço central no cenário econômico-financeiro e comercial brasileiro. Desse modo, as mulheres judias, provenientes de vários países, onde tinham vivenciado circunstâncias hostis ao exercício da religião e das tradições judaicas, encontraram no sudeste brasileiro, que passava por um período de crescimento demográfico e econômico, circunstâncias favoráveis às suas iniciativas profissionais.

Os estudos existentes sobre a imigração de judeus em nosso país concentram-se em núcleos de famílias e, em particular, na figura masculina, considerado este como o único partícipe de empreendimentos econômicos e o único responsável pela manutenção (sustento) da estrutura familiar. Embora recentes estudos sociológicos venham mostrando a importância das mulheres no mercado de trabalho, nenhuma pesquisa acadêmica abordou as mulheres judias que, inseridas no contexto familiar, ousaram empreender ações em busca de soluções econômicas capazes de garantir suas necessidades e as de seus familiares.

A História Oral foi a metodologia escolhida para compor e interpretar as histórias de vida de mulheres que imigraram para São Paulo entre 1945 e 1956 e que trabalharam, visando ao lucro, apoiadas em seu próprio capital.

Para definir o valor numérico da amostra, deparamo-nos com a distorção dos dados de imigração do período, decorrência das barreiras impostas pelo governo brasileiro especificamente à imigração de judeus, conforme apontam os trabalhos de Tucci Carneiro. Além da investigação quantitativa, que representa um terreno objetivo, este estudo teve seu fenômeno estudado qualitativamente, o que reitera a validade da escolha metodológica.

O universo da pesquisa

O universo selecionado exigia como pré-requisito que a mulher fosse judia, imigrante, tivesse chegado à cidade de São Paulo no período delimitado pela pesquisa e exercido o papel de empresária[*3]. No entanto, mesmo hoje, as mulheres casadas não assumem seu papel de empreendedoras, colocando suas ações na dimensão de “ajuda” ao marido ou à família. Outro parâmetro exigido para a seleção do universo das mulheres imigrantes foi a utilização, por parte da empreendedora, de capital próprio, conseguido por dote ou herança, e, acima de tudo, sua capacidade de obter crédito. Neste quesito, constatamos a dificuldade na percepção da propriedade pessoal. Para as mulheres, a definição de posse mantém-se nebulosa mesmo quando a origem do objeto está clara: a louça da casa da mãe, as meias dadas pelo tio, jóias da própria família, enxoval. Esse fator refletiu-se na significativa restrição do universo pesquisado.

Sofia afirmou: “Conhecemos um austríaco muito necessitado que nos vendeu um lote de couro de muito boa qualidade. Eu não deixei meu marido revender tudo, e resolvi inventar como o meu pai fazia. Devo a ele a nossa fábrica de bolsas e carteiras.”

A solução encontrada por Dália foi: “Um dia, eu resolvi vender uma bíblia antiga, com a capa dourada, que trouxe comigo, para comprar uma máquina de costura. Assim iniciei o negócio de conserto de roupas que se transformou numa pequena confecção de calças e camisas.”

Juliette declara:

Comecei vendendo meus próprios tapetes. Depois passei a importá-los através de contatos com amigos de lá e com a ajuda do meu filho, que fazia as viagens. Assim que a situação do meu marido se estabilizou, ele pediu que eu parasse com o negócio. Vendi o negócio para um conterrâneo, mas continuo com uma participação. Até hoje eu falo para o meu marido que recebo dinheiro do meu filho para as minhas bobagens pessoais.

Há o relato de Linda, que utiliza seu capital de conhecimento e de risco. Depois de fazer o curso profissionalizante, ela trabalhou com o tio como contabilista. Assim, teve a oportunidade de negociar um lote de tecido que seria descartado, por estar fora das especificações, e com ele costurou uma série de colchas em matelassê. Este foi o embrião de seu negócio, que hoje exporta colchas e roupas-de-cama.

Há ainda o caso de Esmeralda, que, após a morte do marido, passou a trabalhar como sacoleira em repartições públicas no centro de São Paulo.

Ruth, ainda, cujo marido foi perseguido político na Europa e no Brasil por ser socialista, adquiriu capital para montar a sua loja vendendo livros e obras de arte graças ao relacionamento que mantém, até os dias de hoje, com figuras de destaque no universo cultural. A loja de roupas na Rua Rui Barbosa servia, inclusive, para acobertar as atividades políticas do marido, pois no fundo da casa ficava a tipografia que imprimia um jornal em iídiche.

Em caso de necessidade de apoio financeiro para implementação do negócio, constatamos que, diferentemente do que existe na literatura elaborada por Bernardo Sorj e Henrique Rattner, o apoio não veio exclusivamente de parentes ou de judeus, mas, em 41,0% dos casos, foi obtido com conterrâneos (mesma cidade). O que facilitou o vínculo foi o idioma comum. Mas os que concediam o empréstimo consideravam importante o endosso masculino; pois, segundo Scott, “o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”[*4].

Outras mulheres, que contavam com maridos já estabelecidos, puderam se arriscar em um novo empreendimento. Luiza, outra entrevistada, acrescenta que: “Hoje é uma grande malharia e começou com uma saleta que meu marido me reservou para fazer roupas para os meus filhos. E por que não também para as amigas?!!!”

Dessa maneira, o quase ausente objeto da pesquisa ficou ainda mais reduzido. As mulheres perpetuam o discurso patriarcal ao reconhecer os eventos, embora os considerem como casos isolados e sem significado. Foi necessária uma abordagem mais abrangente a respeito das nomenclaturas utilizadas: iniciar, inventar, trabalhar...

No entanto, as mulheres foco desta pesquisa ousaram ações diferenciadas, apesar de descritas na condição de objeto da estrutura familiar patriarcal aqui e no resto do mundo, onde as comunidades judaicas puderam instalar-se. Relutantes ainda, as entrevistadas exigiram a omissão de suas identidades, confirmando sua subordinação à norma de conduta tácita que preserva o poder masculino nos atos e conquistas econômicas. Nesse momento, associei à imagem a manutenção da burca (veste típica das mulheres do Oriente Médio muçulmano) como aceitação do anonimato. Dessa maneira, já se anunciavam os intrincados códigos que levam ao estudo das relações de poder, ainda que só no plano discursivo. Há um desafio em divulgar histórias que poderão contribuir para contradizer os discursos normativos, encarados como naturais.

As iniciativas práticas das mulheres que correram o risco de adentrar no universo masculino e empreender, buscando a sobrevivência de sua família, são ações que diferenciaram este universo da amostra. Embora os “economistas e sociólogos façam distinção entre os diversos tamanhos das empresas”[*5] – micro, pequena, média e grande –, estas medidas, ajustadas à capacidade produtiva, quantitativa, incorporações tecnológicas, hierarquização e sistematização, em geral pontuadas pelas entrevistadas, não foram objetos de análise, pois o relevante para este estudo foi o auto-reconhecimento do empreendedorismo, seja ele de sucesso ou não. Dessa maneira foi possível privilegiar a diversidade das camadas sociais.

No universo pesquisado, 40 por cento das entrevistadas mantêm até hoje seu empreendimento; 40 por cento fecharam seus negócios por questões financeiras ou falta de interesse familiar pela sua continuidade, e quase 10 por cento não alcançaram sucesso no negócio que mantiveram por menos de cinco anos.

Considerando-se que mais de 85 por cento dos empreendimentos foram iniciados no período entre 1945 e 1956, numa cidade em profundas mudanças sócio-econômicas, torna-se mais significativo o fato de 90 por cento das entrevistadas contarem com funcionários e 55 por cento empregarem mais de seis funcionários no processo produtivo.

Esta pesquisa buscou definir o grupo de mulheres imigrantes e empreendedoras, recaindo sobre as judias. A “auto-identificação”[*6] serviu como referencial, de modo que o universo abrangisse desde as laicas ou não religiosas até as ortodoxas. Esta é uma questão que não faz parte do escopo deste trabalho, mas que traz uma discussão atual sobre o significado de pertinência judaica e os diferentes processos identificatórios.

A técnica utilizada foi a de entrevistas individuais, realizadas na residência da família ou no escritório, o que permitiu observar mudanças no discurso de acordo com a presença inesperada do marido ou filho. Nesses casos, um novo encontro era marcado para elucidação da história.

A origem e a adaptação das imigrantes

As imigrantes judias que se instalaram em São Paulo vieram de várias regiões da Europa, Oriente Médio e África do Norte. As originárias da Europa Central e Oriental são ashkenazitas; as de origem Ibérica, sefarditas; e o terceiro grupo, oriental, oriundo dos países árabes, entre os quais Líbano, Síria, Egito e Iraque. A maior parte do grupo é de origem ashkenazita, e isto se refletiu neste estudo, que buscou incluir participantes dos três grupos culturais. Cada um dos grupos teve sua representação balizada em, pelo menos, 10 por cento do universo pesquisado, o que garante sua significância.

Ao estudar as mulheres empreendedoras em São Paulo, identificamos nas histórias o esforço individual na busca de espaço na sociedade. Na bagagem, elas trouxeram as memórias e lembranças, inclusive do trabalho de mulheres nas localidades de origem, sendo que em 41 por cento dos casos eram atividades remuneradas e voluntárias. Esses casos servem de referência, estímulo e modelo de independência e de reconhecimento da capacidade produtiva de mulheres.

“Eu dava aula de órgão, que aprendi com as freiras italianas”, foi o comentário da sefardita Isabel. Dentre comentários das ashkenazitas, podemos destacar a fala de Sofia: “As mulheres ajudavam nas colheitas de morango, e as mais fracas cuidavam dos idosos e doentes. Eram enfermeiras”.

Regina relata: “Éramos feirantes de meias, e minha irmã, que era linda, trabalhava como balconista”. NItza conta: “Tínhamos um negócio de mulheres há muitas gerações, fazíamos corsettes, sutiãs e cintas”.

A chegada a São Paulo aconteceu pela estrada que corta a Mata Atlântica, de onde puderam vislumbrar um país com um clima extremamente úmido e quente e exuberante flora: “Não entendo como as mulheres daqui passeiam sem a sombrinha, naquele sol que melava tudo”.[*7] No entanto, o choque em relação ao clima não foi o único. Ao saírem de casa, as mulheres se surpreendiam com a multiplicidade de sotaques nas trocas de informações com a população, percebida até mesmo por quem ainda não dominava a língua portuguesa: “Eram italianos, japoneses, portugueses, pretos, que conseguiam se comunicar basicamente pelo sorriso”[*8].

A simpatia foi outra característica marcante na população local. Comum às entrevistadas era perceber que as pessoas não eram alfabetizadas e “não sentiam vergonha disso”[*9]. Espantavam-se, também, com o comportamento que permitia o contato físico, inclusive entre pessoas que não se conheciam: “...eram muitos beijos, muitos abraços, naquele calor, entre pessoas que eu mal conhecia”[*10].

Apesar das diferenças iniciais, a necessidade de sobreviver exigiu a execução de tarefas e atividades de troca entre imigrantes e paulistanos, que afrouxaram as barreiras entre a cultura tradicionalista judaica e o povo tolerante que as recebia. E São Paulo fez o seu papel, tecendo uma sociedade constituída por vários grupos étnicos.

As imigrantes judias tinham a seu favor códigos sociais comuns, em que a estrutura patriarcal e a reserva feminina ao espaço privado compunham o cenário. Nas entrevistas, foram captadas referências a essa dinâmica social que aparece travestida no discurso de “nós”. Conforme relata Daniela: “Eu não vou falar do que eu fiz, fomos nós (grifo nosso)...A sabedoria de uma boa mulher é saber ficar atrás, mesmo sendo a mentora.”[*11]

Empreendedorismo

A necessidade, a solidariedade para com os familiares e as oportunidades de relacionamento deram impulso e coragem às entrevistadas para iniciar sua história individual como empresárias, muito embora a maioria não admita essa definição, considerando-se, no máximo, colaboradoras.

Avaliando o que as motivou a iniciar um empreendimento, as entrevistadas acreditam que, pelo fato de serem imigrantes, numa situação de necessidade premente e luta pela sobrevivência, sentiram uma certa liberdade de escolha em conseqüência do desenraizamento. Para Nitza: “Essa união das pessoas que passaram pelo pior é o que nos deu força para construir algo melhor para nossos filhos”. Esmeralda afirma que: “O fato de ser imigrante permitia certas ousadias, ao mesmo tempo em que se abria espaço para novas amizades e contatos”. Esta visão é compartilhada pela entrevistada Juliette, de origem oriental: “Tinha o espírito de não ter nada a perder”.

Para mais de 68 por cento das mulheres que sentiram necessidade de buscar soluções econômicas em prol da sobrevivência da família, a renda auferida ia para o fundo familiar ou era entregue diretamente ao marido, e nunca era usada em benefício próprio.

Para Amelie: “A perspectiva era de transformar o pequeno negócio iniciado na França numa fábrica de lingerie que daria sustento a toda a família. Não com salário, cada um teria de acordo com sua necessidade.” Para Linda, “A expectativa sobre o resultado na mulher é menor, pois ela não sofre tanta pressão, assim não precisa nem contar o dinheiro.” Constata-se o que o montante que cada entrevistada produziu, embora não tenha sido mensurado, significou a cobertura da totalidade das despesas para mais de 55 por cento e uma parcela do pagamento destas para mais de 31 por cento.

De modo geral, a atividade escolhida pela maioria das mulheres que iniciaram sua busca pela sobrevivência está relacionada ao universo feminino: sacoleiras, costureiras de lingerie, distribuição de “quentinhas” (almoço para viagem), fabricação de doces, pirulitos e chocolates, roupas sob medida, roupas infantis... Uma especialização étnica, como afirma Grün[*12], ou outra questão de gênero?

Em 1984, nos EUA, John Rury[*13] apontou para as “nebulosas fronteiras entre formação técnica e preparação doméstica”, que também estão presentes na grande maioria das empresárias aqui estudadas. Confirmando esse contorno nebuloso da formação profissional, constatamos que, no universo pesquisado, a linha divisória foi a capacidade de romper os arranjos idealizados e arriscar-se num empreendimento contando apenas com conhecimentos acumulados empiricamente, pois só quatro das entrevistadas tinham preparação formal para o trabalho. As demais aplicaram a experiência vivenciada na família ou aproveitaram oportunidades.

Na “nova terra”, as mulheres imigrantes buscaram em seu interior a solução para o problema da sobrevivência econômica. Neste estudo, constatamos que 50 por cento das entrevistadas encontraram-na com base no conhecimento adquirido da família de origem.

No entanto, é importante observar que há diferença entre o conhecimento técnico ou profissionalizante e a educação formal. Esta última não era reservada às mulheres, pois não se esperava que elas sustentassem a casa, salvo, nas famílias religiosas, enquanto o marido estudasse as Escrituras Sagradas. Os relatos revelam que a prioridade da educação formal era dada aos primogênitos em quase 30 por cento das entrevistadas e aos filhos homens na totalidade das mulheres.

No entanto, essa conduta não se repete na segunda geração, na qual a preocupação com os estudos é diferencial do grupo étnico. Constatamos que a geração seguinte conquistou o segundo grau completo como nível educacional mínimo. Portanto, não surpreende que quase 36 por cento das filhas das imigrantes tenham formação de nível universitário e, destas, 63 por cento contribuam para a economia familiar exercendo profissões diversas. O incremento é significativo, mesmo considerando o contexto das décadas de 70 e 80 do século XX, quando o mercado de trabalho era ainda mais favorável à absorção da mão-de-obra feminina. Disso resulta que 44 por cento das filhas das entrevistadas optaram por serem empresárias ou profissionais liberais, seguindo os passos de autonomia profissional de suas mães.

Questões de gênero

Contudo, o posicionamento das mulheres de que sua contribuição é ajudar[*14] minimiza o significado do seu trabalho, supervaloriza o papel masculino no sustento da família e alimenta o argumento da desigualdade e da não-equiparação de rendimentos. Assim, ao equacionar seu tempo, as entrevistadas colocam como prioridade o marido e os filhos, e só usam para si o tempo que não põe em risco suas funções maiores, garantindo com isso o reconhecimento sócio-cultural.

Partindo desta premissa, as possíveis atividades a serem exercidas serão escolhidas visando privilegiar a família em algum aspecto; isto é, se houver a necessidade de incremento econômico, a mulher buscará atividades alternativas. Isto nos remete ao declínio do número de filhos por família, sendo a diferença mais acentuada nas áreas urbanas e nas classes sociais altas ou de maior escolaridade, possibilitando às mulheres uma imediata mudança de seu ciclo vital e, estando os filhos em idade escolar, abrindo-lhes um espaço de tempo produtivamente econômico.

No aspecto familiar, a convivência domiciliar com parentes facilitou a participação econômica feminina, dada a presença no lar de outros adultos que podiam se responsabilizar pelas crianças e tarefas domésticas. No início do empreendimento, quando 45 por cento das mulheres trabalhavam em casa e podiam administrar o próprio lar, era imperativo contar com apoio logístico para as tarefas domésticas. É importante ressaltar que, entre os casos analisados, quatro maridos dividiam a responsabilidade dessas tarefas, dando suporte às esposas em várias atividades, considerando, em que 50 por cento dos casos, os filhos estavam em idade pré-escolar.

Sendo o trabalho doméstico entendido como um ciclo que a cada dia se repete, as tarefas diárias da casa deixam de ser valorizadas. A dona-de-casa não é reconhecida como trabalhadora, e as tarefas domésticas só são notadas e vistas como importantes quando não são feitas. Isso pode explicar o interesse demonstrado pelas mulheres em geral pelo trabalho fora do lar. No entanto, embora elas mesmas tenham se tornado empresárias, escorregavam nas respostas, apresentando valores afinados com o padrão patriarcal.

Margareth relata que: “Algumas trabalhavam, mas era sinal de que o homem não as podia sustentar.” Esse comentário reforça o princípio patriarcal introjetado. O mesmo demonstra Myetta quando afirma que: “Mulher ganhar dinheiro é prêmio, para o homem é obrigação”. As mulheres entrevistadas foram as que, efetivamente, trabalharam e manifestam opiniões compatíveis com o grupo familiar, criando esquemas nos quais o “respeito” ao marido e ao pai (autoridade masculina) foi preservado.

“Tem que saber levar. Há artifícios como a subserviência”, comenta Luiza. “No meu caso, eu não tive opção, mas eu fazia isso escondido dos amigos do meu marido.”[*15]

O período estudado era economicamente favorável, com altas taxas de crescimento que criavam uma forte demanda. As empresas cresciam e tornavam-se complexas, abrindo espaço para a contratação de mão-de-obra administrativa. No entanto, o papel central familiar continuava sendo exercido nas pequenas e médias empresas, que ainda hoje correspondem a 90 por cento do total das empresas de indústrias e serviços no Brasil[*16].

Diante do exposto, não surpreende que a grande maioria das mulheres que implantaram um empreendimento por sua conta e risco tenha incluído o marido, o pai ou irmãos em caso de êxito e expansão, justificando essa inclusão com o argumento de “não serem muito boas para administrar negócios”.

Margareth explica: “Tão logo pude, meu filho assumiu os negócios. Isso é coisa de homem”. Miriam diz: “Eu comecei sozinha para pagar a feira. Quando começou a dar certo, é que meu marido largou seu emprego para me ajudar com as vendas.” E Luiza afirma: ”Eu comecei a costurar e não era trabalho, depois costurei para as amigas e foi virando pequena produção. O meu marido ampliou e tornou isto um negócio de verdade e eu continuei dando as idéias”. Afinal, como diz Daniela, “a mulher inteligente não fica na vitrine”. As demais, para as quais a experiência não resultou em nada, além de “um período duro de luta pela sobrevivência”, concluem que “afinal, o mundo é dos homens”.

Para 77 por cento das entrevistadas, a estrutura formada no empreendimento foi a da participação da família sem pagamento de salário formal. Tanto os rendimentos, como as despesas entravam e saiam do fundo familiar. As mulheres contaram com a aprovação dos familiares em suas conquistas comerciais, sobretudo dos homens que eram os “donos desse saber”.

Entretanto, sendo o empreendimento “solução”[*17] econômica, e não havendo projeto de profissionalização administrativa, sua perenidade ficou ligada à capacidade produtiva da pioneira. No grupo estudado, as imigrantes judias não projetaram uma durabilidade para seus negócios. Valorizaram os estudos, o aprimoramento intelectual e o crescimento pessoal dos filhos e filhas, respeitando a vocação e a ambição de cada um dos descendentes. Diante da falta de envolvimento dos filhos, a maioria dos empreendimentos esgotou-se com suas fundadoras.

Os empreendimentos na área de malharia e confecção representam 45 por cento e 36 por cento estão no ramo do comércio, mas cinco são marcadamente do segmento masculino, como açougue, ourivesaria e importação de tapetes. Uma das pesquisadas, Margareth, montou uma joalheria baseada na experiência familiar no ramo de ourivesaria: “Não era bonito, mas, no meu caso, eu estava cumprindo um plano familiar. O meu irmão estava na Suíça montando a rede de lojas na Europa para as jóias que eu aqui fabricaria”. O caso do frigorífico que teve início a partir de uma pequena granja repete esse mesmo padrão.

Pautados em Bourdieu (1995), percebemos que a visão da divisão sexual é incorporada como se fosse a única visão e/ou a mais correta. O autor explica a eficácia desse “preconceito desfavorável” ao perceber que essa afirmação é reproduzida também pelas próprias vítimas – as mulheres – reforçando a suposta inferioridade como se esta fosse biológica: “Isso se dá no momento em que elas se percebem a partir do que a visão masculina lhes atribui, dando assim a aparência de um fundamento natural a uma identidade que lhes foi socialmente imposta.”[*18] Myetta é um exemplo: “Sabe, porque a mulher foi feita da costela, a parte escondida do homem!!!! Para que seja modesta. Isso está escrito no livro Gênesis. Esse é o truque”. Samantha afirma que: “A mulher que tem sucesso não pode perder a humildade, principalmente com o marido. Guarde este lema!” Para Daniela é : “Sorte ter os filhos perto, que se uniram para o negócio comum e fizeram a linha de frente.Hoje os homens já aceitam as mulheres comprando e vendendo”. Margot conta que: “A filha fazia o acabamento e o marido, as embalagens e a venda, que é o seu mundo”. Entretanto há momentos de mudança! Maura faz sua reflexão: “No início da minha loja eu tinha um ajudante que me tratava apenas como a esposa do dono. Até o dia em que ele se recusou a fazer um serviço devido à dificuldade, eu fiz sozinha. A partir daí ele passou a me considerar como a chefe do negócio”.

Duas entrevistadas ashkenazitas vivenciaram experiências em países diferentes, como a Suécia e a Inglaterra, que valorizam uma posição feminina de maior liberdade. “A independência é o primeiro passo para a conquista da própria identidade”, diz Rosa, e Samantha considera que: “Para a mulher, a escola e o trabalho são sinônimos de liberdade”.

Para este estudo, as mulheres que construíram o universo de empresárias encontraram soluções com “liberdade de escolha e responsabilidade pessoal”[*19], que são os pressupostos do capitalismo. Como outras entidades econômicas, mantiveram as fases primordiais da produção sob seu controle, embora já contassem com o trabalho cooperativo, característica que mantém a nebulosa definição de responsabilidade.

As entrevistadas minimizam os fatos, e mesmo os ocultam, até se tornarem invisíveis na história dos negócios que iniciaram. Não raro, por insistência de contemporâneos, intitulam-se co-responsáveis, colaboradoras e/ou cooperadoras, e assim, não assumindo seu papel empreendedor, perpetuam a biografia oficial que conhece as ações e mantém as personagens invisíveis.

Estudos acadêmicos americanos específicos sobre o movimento feminista preocuparam-se em analisar as mulheres judias e suas experiências durante a história, motivados pelo vasto rol de escritoras e jornalistas consagradas. Um deles é o trabalho comparativo de Linda Kuzmack, "A causa da mulher”[*20], escrito em 1990, sobre as comunidades judaicas dos Estados Unidos e da Inglaterra.

Esta pesquisa surpreendeu a todos ao constatar a interação entre as feministas laicas e judias, enriquecendo nossa compreensão sobre a cultura e o contexto social, e promovendo diferentes versões sobre os ativismos feministas. Os resultados consideram a questão de gênero ou sexo relevante para o estudo da atividade econômica vista como categoria que interfere na construção das relações sociais.

Especificamente, nos estudos dos historiadores do feminismo judaico, que colocam a família no centro articular das relações de gênero e sua interação entre a vida pública e privada, é possível perceber a necessidade de questionar o impacto da cultura das novas décadas e o sistema capitalista sobre o indivíduo e a comunidade; sobre a divisão de trabalho e a remuneração; sobre a representação feminina e sua auto-definição.

Assim, em cada novo estudo que inclui questões de gênero, a ampliação dos detalhes das histórias de mulheres oferece a oportunidade de revisão dos papéis e funções, em que se descobre uma nova janela de composição entre indivíduos outrora invisíveis.

De acordo com este estudo, e tendo alinhavado suas características, pretendemos despertar a percepção sobre o pequeno grupo pesquisado, salientando o significado do micro-universo dessas mulheres empreendedoras. As histórias aqui recontadas surpreenderam pela banalização demonstrada frente às iniciativas e conquistas alcançadas, embora muitos não acreditem ou desconsiderem sua importância. As mulheres empresárias que participaram da pesquisa, conquanto apresentassem personalidades marcantes, frisaram que, embora não tenham tido demandas que implicassem força física, seus empreendimentos exigiram coragem, ousadia e energia para assumir riscos.

Em tempo, para que as mulheres e suas iniciativas ganhem visibilidade, os momentos de quebra do sistema de subordinação devem se tornar públicos. São necessários novos processos de abertura de espaços às aptidões individuais “e sem gênero (mas não sem sexo) na qual a anatomia sexual seja irrelevante para o que são ou fazem”[*21], e que em suas histórias recontadas apareçam as reais autoras: empresárias ou colaboradoras?

Fontes e Bibliografia

Fontes orais: Nomes fictícios das mulheres imigrantes judias empreendedoras em São Paulo, a partir de 1945, e seus relatos registrados no 2º semestre de 2000 ao 2º semestre de 2003 e podem ser encontrados em sua íntegra na dissertação.
Amelie; Claudete; Dália; Daniela; Esmeralda; Isabel; Juliette; Linda; Luiza; Margareth; Maura; Miriam; Nitza; Regina; Rosália; Ruth; Samantha; Sofia; Suzana; Zelia.
Histórias de vida : Myetta Garon – identidade assumida.
Este trabalho é parte da Dissertação defendida em São Paulo, 2004. Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
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É mestre na área de Língua Hebraica, Literatura e Culturas Judaicas, da FFLCH da USP.
CARIGNATO, T.; ROSA, M. D; PACHECO Fº, Raul A.(org.) Psicanálise, Cultura e Migração. Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade. São Paulo: Ed. YM, 2002, pp. 94-95.
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“Pessoa ou grupo de pessoas que inicia e ou administra uma empresa, assumindo a responsabilidade por seu funcionamento e eficiência. Encarrega-se de reunir e coordenar os fatores de produção no processo produtivo, avaliar os mecanismos de oferta e demanda e assumir os riscos inerentes ao empreendimento. É quem cuida do suprimento de capital, compra e combina os insumos e decide o nível da produção (...) O administrador, por seu lado, só é considerado empresário na medida que assume os riscos do empreendimento (por participação no capital e nos lucros, por exemplo).” SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia, pp. 138-139.
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A seguir, para melhor ilustrar o texto, aparecem trechos dos relatos das mulheres imigrantes judias, como Regina e outras para Marie Felice Weinberg em SP, 2000.
Relato de Regina a Marie Felice Weinberg em SP, 2000.
Relato de Margareth a Marie Felice Weinberg em SP, 2000.
Relato de Samantha a Marie Felice Weinberg em SP, 2000.
Relato de Daniela a Marie Felice Weinberg em SP, 2000.
GRÜN, Roberto.Intelectuais na Comunidade Judaica Brasileira, apud SORJ, Bernardo. Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In: SORJ, Bila. Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo, RJ: Imago,1997, p. 137.
BRUSCHINI, Cristina; SORJ, Bila (orgs.) Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo: Marco Zero:Carlos Chagas, 1994, p. 194.
NAISBITT,John; ABURDENE, Patrícia. Reinventando a empresa. São Paulo: Amana Key Ed, 1989, p.217.
Relato de Claudete a Marie Felice Weinberg em SP, 2000.
PISCITELLI, Adriana. “Jóias de família”: Gênero em histórias sobre grupos empresarias brasileiros, Campinas, 1999. Tese de Doutoramento - IFCH /UNICAMP. p. 13.
Relato de Juliette a Marie Felice Weinberg em SP, 2000.
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