:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 28 de dezembro de 2007.
Educação e catequese na formação de São Paulo

Felipe Ziotti Narita

Em uma matéria escrita para a seção Travel do The New York Times, em outubro de 2007, Seth Kugel apresentou um guia de viagem para os interessados em aproveitar algumas das principais atrações da cidade de São Paulo em algumas horas. Logo no início do texto, o autor informa que “Gray high-rises stretch to the horizon, graffiti blankets downtown, where those who can afford it drive bulletproof cars, and power lines form a wire mesh that seems to block out the sun[*1] (Kugel, 2007).

Cidade de contrastes, onde bolsões de pobreza coexistem com os grandes skyscrapers de uma cidade mundial, a paisagem de São Paulo, no limiar do século XXI, contorna um acelerado ritmo de vida que se sobrepõe a uma outra temporalidade mais longa e quase remota: o tempo das tradições fundadoras, evidenciadas no resgate das memórias das primeiras formações populacionais na região no século XVI.

Organizadas a partir da estruturação da Casa de Meninos de São Paulo de Piratininga – local construído pelos jesuítas[*2] em 1554, destinado, sobretudo, à catequese – as primeiras concentrações populacionais na região ilustram momentos fundamentais na história do Brasil, de modo que representam um duplo processo: os triunfos e as dificuldades da instalação missionária e a organização de uma forma bastante peculiar de compreensão da educação na colônia. Esta educação tomava como eixo a catequese, a conquista espiritual (Leite, 1938) como elemento fundamental para articulação da colonização portuguesa no trópico.

Em nome dos verdadeiros ofícios de fé – ad majorem Dei gloriam – a ação jesuítica na colônia do século XVI teve que contornar as inúmeras adversidades para conduzir os preceitos de uma vida cristã àquela terra desconhecida que escancarava suas hostilidades. Localizada nas regiões mais interioranas da Capitania de São Vicente, a Casa de Meninos de São Paulo de Piratininga, produto de um longo projeto jesuítico liderado por Manuel da Nóbrega[*3], localizava-se “em sertão quase ínvio – só acessível através de ásperas veredas, que até ao século passado seriam o tormento ou o espantalho dos viajantes” (Holanda, 1954).

Penetrar no sertão, terra habitada por “monstros e prodígios” (Taunay, 1920), e formar um povoado de cristãos era um desejo da empreitada daqueles homens pouco avessos aos inúmeros perigos se o que estava em jogo era a atividade missionária[*4]. Ao reunir algumas das primeiras impressões de um jesuíta sobre o interior da capitania de São Vicente, Leonardo Nunes, em 1550, informa que encontrou alguns cristãos dispersos em meio aos índios, e, ao reuni-los, “Pusiéronlo luego por obra y tomaron luego campo para la iglesia. Gasté dos o tres dias com ellos, y confessé algunos y diles el Sanctissimo Sacramento” (Leite, 1952a, p. 208). A edificação da igreja, símbolo da condução de uma vida cristã ao agressivo sertão, objetivava marcar o ritmo do cotidiano daquela “gente christiana derramada” (Leite, 1952a, p. 207). Este cotidiano seria contornado pelas missas, pelas confissões e pela louvação ao Senhor. A proposta de Nóbrega, ao levar jesuítas para atuar na formação da Casa de Meninos de São Paulo de Piratininga, também tangenciava a condução de preceitos cristãos ao planalto. Era uma obra que se realizaria por meio da educação, entendida como formação religiosa, na qual a catequese desfrutava de um espaço privilegiado: era o instrumento formador de um povoamento cristão.

Estruturada em 25 de janeiro de 1554, a Casa de Meninos de São Paulo de Piratininga contou, como marco inicial, com a realização de uma missa coordenada por Manuel da Nóbrega. Conforme o testemunho de José de Anchieta[*5] (Leite, 1952b, p. 105), em carta escrita na então nascente povoação de São Paulo de Piratininga, em setembro de 1554,

Por isso alguns dos Irmãos mandados para esta Aldeia no ano do Senhor de 1554, chegámos a ela a 25 de Janeiro e celebramos a primeira missa numa casa pobrezinha e muito pequena no dia da Conversão de S. Paulo, e por isso dedicamos ao mesmo esta nossa Casa.

Já nos primeiros meses de funcionamento, a dinâmica educacional desenvolvida na Casa de Meninos aparece nos relatos jesuíticos. A prática da fé em meio àquele ambiente muitas vezes pouco receptivo traduzia-se nas práticas educacionais reportadas por José de Anchieta (Leite, 1952b, p. 106), que indica que os meninos índios,

Os quais, depois de rezarem de manhã as ladainhas em coro na Igreja, a seguir à lição, e de cantarem à tarde a Salve Rainha, são mandados para suas casas; e todas as sextas-feiras fazem procissões com grande devoção, disciplinando-se até ao sangue.

Disciplinar, conforme a verdadeira conduta cristã, as almas daqueles cathecumeni e apartá-los da vida errante nas matas significava apresentar-lhes os rudimenta da doutrina. Anchieta (Leite, 1952b, p. 106), nesse sentido, informa que “ensina-se-lhes todos os dias duas vezes a doutrina cristã, e aprendem as orações em português e na língua própria deles”. O tempo era marcado e percebido pelos eventos cristãos. Era o tempo que tentava projetar o bom ordenamento social, seja pelas cruzes, bem como pelas ladainhas e procissões. Tudo estava impregnado pela simbologia cristã, forma de representação da vitalidade de experiências coletivas, que, com as mediações simbólicas, estabeleciam “o vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade” (Bosi, 1992, p. 15).

Com efeito, conduzir com diligência e zelo as atividades educacionais ministradas na Casa dos jesuítas no planalto era mister para o espírito missionário. Tarefa que exigia parcimônia e que implicaria, sobretudo, o sucesso ou o insucesso do projeto de afirmação civilizacional que fomentou a construção de uma cultura escolar, com modos de agir e de pensar que conferiram características particulares para a estruturação do ensino e das dinâmicas sociais ao redor daquele espaço escolar. Tudo culminou em um processo que conferiu à formação social no planalto características bastante distintas, no sentido da fórmula proposta por Richard Morse (1970, p. 28), uma vez que

Já o São Paulo jesuítico toma partido pelo racionalismo e o ecumenismo; seus fundadores eram a ponta de lança de uma fé militante, universalista; no mundo que idealizavam, os diversos povos seriam “reduzidos” em comunidades organizadas segundo princípios comuns; não desejavam aceitar nem fazer guerra contra os ameríndios, mas remodelá-los conforme uma imagem nova; e o momento presente nada mais era do que um trampolim para o futuro.

Ao afirmar o projeto de se fixar nas porções interioranas da colônia, idéias que aparecem de forma explícita nas cartas de Nóbrega desde 1551[*6], a missão jesuítica vislumbrava um amplo horizonte – ao mesmo tempo tão grande e perigoso quanto o sertão. Sobretudo, porque este, com efeito, também era o espaço primordial para o contato com inúmeras almas passíveis de conversão. É nesse sentido que Anchieta (Leite, 1952b, p. 105) relata que

Como era muito trabalhoso e difícil, por causa da grande aspereza do caminho, ao nosso Padre pareceu melhor no Senhor mudarmo-nos para esta povoação de Índios, que se chama Piratininga. Isto por muitas razões: primeiro, por causa dos mantimentos [...] e especialmente porque se abriu por aqui a entrada para inúmeras nações, sujeitas ao jugo da razão.

A fim de sustentar a nascente povoação, a construção de uma cultura escolar, cujo centro era a formação nos valores cristãos, serviu como eixo de gravitação do povoamento cristão no planalto. O jesuíta Pero Correia[*7], em uma carta datada de julho de 1554, escrita em São Vicente, ao discorrer sobre a schola legendi, scribendi et cantandi, a Casa de ler, de escrever e de cantar dos Meninos de São Paulo de Piratininga, elenca algumas atividades educacionais desenvolvidas na Casa de Meninos instalada no planalto: “en el mísmo lugar ay escuela de niños y um Hermano tiene cuydado de enseñarlos a ler y a escrevir, y a algunos dellos a cantar” (Leite, 1952b, p. 70).

Com algumas das primeiras informações acerca dos efeitos decorrentes do ensino catequético organizado na Casa de Meninos, em uma carta datada de março de 1555, escrita em São Vicente, José de Anchieta afirma que “estes nossos catecúmenos, de que nos ocupamos, parecem apartar-se um pouco dos seus antigos costumes, e já raras vezes se ouvem os gritos desentoados que costumam fazer nas bebedeiras” (Leite, 1952b, p. 194). Também o sacramento do matrimônio católico, tão violado no cotidiano colonial, começava a se definir em Piratininga:

Donde se segue que freqüentam mais a Igreja, sofrem com mais paciência repreensões e censuras, e alguns deles, casados em legítimo matrimônio, pedem-nos com grande empenho que lhes ensinemos o modo de viver bem (Leite, 1952b, p. 194).

Contudo, a povoação continuava sob o constante regime de penúrias. Ora originárias da vulnerabilidade às incursões indígenas, ora dos desafios impostos por uma natureza hostil – intempéries e pestes –, as inúmeras dificuldades contrastavam com os triunfos da atividade missionária. Sucessos que, stricto sensu, são indicados no trabalho de catequese, mas que também podem ser identificados em meio aos trâmites burocráticos que envolviam a Companhia, os jesuítas e a Coroa Portuguesa. Nesse sentido, em 1560, a povoação de São Paulo de Piratininga foi elevada à categoria de Vila. Era a coroação do processo de instalação missionária no planalto, uma vez que

Não tardou a verificar-se que a Vila de Santo André deperecia com economia precária, sem defesa capaz contra as investidas dos índios contrários, enquanto a Aldeia de Piratininga, melhor situada e farta de mantimentos, oferecia superioridade evidente para sede Municipal do Campo. Impunha-se a mudança dos moradores de Santo André (Leite, 1965, p. 70).

A fixação da Vila em torno da união das regiões de Santo André da Borda do Campo[*8] e de São Paulo de Piratininga ilustra o lugar central ocupado pela Casa de Meninos, de modo que esta galvanizou as linhas de força fundamentais para a fixação do povoado cristão no planalto. Serafim Leite (1965, p. 71) muito bem demonstrou que, no processo burocrático para justificar o ato de formação da Vila perante a corte, em Lisboa, foi proferido que a Vila de São Paulo fez-se ”para junto da Casa de São Paulo, que é dos Padres de Jesus”.

Como forma de representação, a Casa de Meninos era referência fundamental para sustentar o triunfo missionário na colônia por meio de relatos produzidos nos séculos XVI, XVII e XVIII. Foi nesses termos que o jesuíta Fernão Cardim, ao traçar um panorama da povoação de São Paulo de Piratininga, em 1585, escreveu que Piratininga

(...) é terra muito sadia, há nela grandes frios e geadas e boas calmas (...) A Vila está situada em bom sítio ao longo de um rio caudal (...) Os Padres os casam, batizam, lhes dizem as missas cantadas, fazem as procissões, e ministram todos os sacramentos, e tudo por sua caridade: não tem outra Igreja na vila senão a nossa. Os moradores sustentam seis ou sete dos nossos, com suas esmolas com grande abundância: é terra de grandes campos e muito semelhante ao sítio d’Evora na bôa graça e campinas (Cardim, 1980, p. 173).

A partir da Casa de Meninos, o núcleo embrionário da cidade de São Paulo já estava disposto. Qual o significado da ação jesuítica no planalto? Era a formação religiosa, que sustentaria a ocupação do sertão e a formação de um povoado de cristãos imerso em uma terra contornada pela barbárie. Movimento que representou, sobretudo, a ocupação de um espaço em que educação e catequese, necessariamente, condensavam-se em meio aos gestos e às sensibilidades dos transeuntes da colônia.

Educação e catequese eram dois termos que não se limitavam aos precários muros da Casa de Meninos. Eles eram projetados sobre as mais singelas atitudes daquela sociedade que se afirmava no planalto. Sociedade modelada conforme o bom regimento das matérias de fé, a boa ordem social que, desde a fundação oficial da Casa de Meninos, em janeiro de 1554, encontrou respaldo em um signo: São Paulo, a conversão do apóstolo Paulo. Educação e catequese compunham o ritmo do cotidiano daquele nascente núcleo populacional.

Palavras-chave: Brasil colônia; Educação colonial; Catequese; São Paulo; Jesuítas.

Referências bibliográficas

BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
CARDIM, F. Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.
HOLANDA, S. B. de. Piratininga: 1532-1560. Folha de S. Paulo, São Paulo, jan. 1954. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2007.
KUGEL, S. 36 hours in São Paulo. The New York Times, New York, out. 2007. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2007.
LEITE, S. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV centenário da cidade de São Paulo, 1952a. v. 1.
______. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV centenário da cidade de São Paulo, 1952b. v. 2.
______. História da Companhia de Jesus no Brasil – Tomo II (século XVI) : a obra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938.
______. Novas páginas de História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.
MORSE, R. Formação histórica de São Paulo. São Paulo: DIFEL, 1970.
NÓBREGA, M. da. Cartas do Brasil e mais escritos. Coimbra: Acta Universitatis Coninbrigencis, 1955.
TAUNAY, A. de E. S. Paulo nos primeiros annos (1554-1601) : ensaio de reconstituição social. [S.l: s.n], 1920.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Clique nas imagens para visualizá-las em tamanho maior.
Topo
Graduando em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) – campus de Franca. Membro do grupo de pesquisa do CNPq intitulado “Políticas públicas e democratização do ensino no Brasil: a implementação das propostas educacionais: mudanças e permanências”. Desenvolve pesquisas direcionadas à educação no Brasil do século XVI. Sob orientação do Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel.
“Altos edifícios cinzentos estiram-se pelo horizonte, o grafite cobre o centro da cidade, onde aqueles que podem comprar dirigem carros à prova de balas, e fios de alta tensão formam um emaranhado que parece bloquear o sol” (Kugel, 2007, tradução nossa).
Termo referente aos membros da Companhia de Jesus, considerada uma das mais importantes ordens religiosas do século XVI. A Companhia teve origem em 1534, com a reunião de estudantes – dentre eles, Inácio de Loyola –, e foi oficializada por Roma por meio da bula Regimini Militantis Ecclesiae, em 1540.
Nóbrega desembarcou na Bahia, em 1549, juntamente com a armada do governador-geral Tomé de Sousa. Foi um dos jesuítas de maior destaque nas missões do Brasil do século XVI.
As divergências entre jesuítas e o governo-geral acerca do povoamento do sertão foram várias. Sérgio Buarque de Holanda (1954) escreve que a formação do povoado de São Paulo de Piratininga “sugere problemas que transcendem o alcance de uma simples história regional”, já que, formar um assento populacional em meio ao sertão quebrava a lógica da colonização portuguesa, que acompanhava a orla marítima, em uma colonização litorânea, a fim de fortalecer e povoar as regiões costeiras.
Chegou ao Brasil com a armada de D. Duarte da Costa, em 1553. Anchieta foi designado para trabalhar com Manuel da Nóbrega, de forma que obteve papel de destaque na administração jesuítica no Brasil.
Para conferir as cartas escritas pelo jesuíta: Nobrega, M. da. Cartas do Brasil e mais escritos. Coimbra: Acta Universitatis Coninbrigencis, 1955.
Desembarcou no Brasil entre 1533 e 1534 e estabeleceu residência na capitania de São Vicente. Foi aceito na Ordem dos Jesuítas pelo Padre Leonardo Nunes, em 1550.
Povoação iniciada em 1550, que contou com a participação de jesuítas e do português João Ramalho, que já vivia entre os índios. A oficialização ocorreu em 1553. A Vila foi dissolvida em 1560, quando foi incorporada a São Paulo de Piratininga para formar a Vila de São Paulo.