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Artigo publicado na edição nº 28 de dezembro de 2007.
A Câmara da Vila de São Paulo como Manifestação da Sociedade Civil nos Séculos XVI e XVII

Benedito A . Prezia

Nem sempre se tem dado a devida importância a algumas instituições coloniais, como forma de organização da sociedade civil naquela época. O conselho ou câmara municipal destacou-se em São Paulo como uma organização forte, apesar de estar inserido num aparelho burocrático estatal um tanto pesado e autoritário, que pouca importância dava ao povo.

Numa colônia ainda inexplorada e de dimensões continentais, como o Brasil, a câmara municipal dará consistência às vilas no Brasil colonial, sobretudo na capitania de São Vicente, tornando-se a grande instância de poder, já que este se achava em Lisboa, a milhares de quilômetros, e também pouca força tinha o governador-geral, residente na distante Bahia.

Por uma limitação de espaço, analisarei apenas o período que vai da chegada dos jesuítas no planalto de Piratininga, em 1553, à sua primeira expulsão, em 1640, que coincide também com a restauração portuguesa, período em que a câmara paulistana mostrou uma grande autonomia.

* * *

O núcleo indígena de Piratininga, que se formou em 1553, ao redor da missão dos padres jesuítas, mais conhecida como Casa de São Paulo, tornou-se, em 1560, vila de São Paulo de Piratininga, ou simplesmente São Paulo.

Esta presença portuguesa no planalto remontava a Martim Afonso de Sousa, que ao passar pelo Rio de Janeiro, em 1531, enviou um grupo de portugueses à Piratininga, em busca de informações sobre o caminho para o Peru. Bem acolhidos pelo cacique, provavelmente Tibiriçá, estes portugueses retornaram ao litoral fluminense, acompanhados pelo cacique, que os acompanhou a pé. Voltando do Sul no ano seguinte, Martim Afonso deixou instalado nesta região dois núcleos portugueses: um em São Vicente, e outro, no planalto[*1].

Por esta ocasião deve ter se transferido para Piratininga João Ramalho, que vivia há muitos anos no litoral. Pouco se sabe de seu passado, devendo ter sido um degredado. Ao casar-se com a filha de Tibiriçá, Ramalho tornou-se grande liderança, respeitado pelos indígenas e apoiando estes primeiros povoadores, que devido ao isolamento, viviam mais à maneira nativa do que à moda portuguesa[*2].

Pela insegurança da região, que começava a ficar conflagrada pelo nascente tráfico de escravos, o governador Mem de Sá, em 1560, determinou que a vila de Santo André, que se formara com estes portugueses e suas famílias mestiças, se transferisse para junto da missão de São Paulo[*3].

A situação instável daqueles tempos obrigou a recém-criada vila de São Paulo a se preparar militarmente, como se pode ver nessa petição ao rei, pela qual seus moradores solicitavam armas para a defesa da vila, e que o produto do dízimo fosse gasto em fortificá-la, pedindo “que venham degredados para povoar a terra, contanto que não sejam ladrões”[*4].

Além das armas, a vila precisava de um baluarte de defesa. Depois do ataque dos Tupinikim, a 12 de junho de 1562, foi iniciada a construção de um muro de taipa. Em novembro deste mesmo ano foi nomeada uma comissão de 12 pessoas, para concluir a fortificação, sob pena de pagar uma multa de “cyncuo [cinco] tostois”[*5] . Desta forma vê-se que as ordens deviam ser cumpridas e de forma autoritária.

Com o passar do tempo, as hostilidades desencadeadas pelos indígenas foram cessando. Ao invés de proteger a vila, este muro dificultava as idas e vindas das pessoas para suas roças, surgindo aberturas de passagens que o deterioravam. Sem ter quem o reformasse, foi destruído pela ação do tempo[*6]. No final do século já não há mais referência a ele.

Apesar deste incipiente baluarte, poucos moradores viviam na vila, estando a maioria na zona rural. Esses homens rudes, muitos deles aventureiros e com uma família mestiça, optaram pelo isolamento rural, que lembrava a aldeia tupi. O sítio e a fazenda sobrepujaram a cidade. Poucas casas havia na vila, e eram usadas apenas para negócios de final de semana, por ocasião das festas religiosas e procissões e quando vinham participar das sessões da Câmara[*7].

Em 1585, 25 anos depois de sua fundação, o núcleo contava com apenas 120 portugueses, “com muita escravaria da terra”, como relata o Pe. Cardim, quando por aqui passou acompanhando o visitador dos jesuítas[*8]. A população era marcadamente mestiça, mamelucos ou “mamalucos”, como se dizia na época, e assim descrita pelo Pe. Jácome Monteiro, em 1610:

Os moradores são pola maioria Mamalucos e raros Portugueses; e mulheres [portuguesas] há só uma, a que chamam Maria Castanha [Castanho]. São esses de terrível condição; o trajo seu, fora da povoação, é andarem como encartados, com gualteiras de rebuço, pés descalços, arcos e frechas, que são suas armas ordinárias[*9].

Nestes primórdios do século XVII, a principal atividade dos paulistas já consistia em ir ao sertão escravizar indígenas. Apesar da boa terra para a lavoura, o tráfico de escravos passou a ser um comércio rentável, não só pelo lucro de uma venda certa para lavouras e engenhos de outras regiões, como também pela garantia da mão-de-obra local para os trabalhos domésticos e agrícolas.

No âmbito da justiça, e contrariando a tradição indígena, que, segundo Anchieta, desconhecia a tortura e os maus tratos[*10], a vila portuguesa, ao se constituir, impunha três instrumentos que eram elementos de repressão: o pelourinho, a forca e a cadeia.

Além de ser instrumento da justiça, o pelourinho foi o símbolo do município, tornando-se obrigatório levantá-lo no momento da criação de novas vilas. Como o descreve Garcia, “era uma coluna de pedra ou madeira, picota, a prumo, posta em alguma praça principal da vila ou cidade, à qual se atava pela cintura o preso que se expunha à vergonha, ou era açoutado; tinha argola, onde se podia enforcar e dar tratos de polé”[*11].

O primeiro pelourinho foi erguido apenas em 1587, 27 anos depois de a vila ter sido instalada, construído pelos vereadores Gonçalo Fernandes e Jorge Moreira, que na realidade o fizeram sob ameaça de “dous mill res [réis] de pena” que lhes impusera o ouvidor Antônio Bicudo, pois este instrumento estava demorando para ser edificado[*12]. Por ser um local de castigo, era pouco apreciado pela população, tendo sido queimado antes mesmo de ter sua ereção, como se vê numa das atas[*13].

A forca foi outro instrumento da justiça, pois na época havia pena de morte. Com uma população formada por aventureiros de toda espécie, deve ter sido usada com certa freqüência. Por isso foi levantada antes do pelourinho, em 1576. Não era bem vista pelos paulistas, que pouco interesse tinham em levantá-la. Naquele ano os vereadores pediam “q’ suas mercês mãdacen allevantar a forqua q’ estava no chão toda caída”[*14]. Em 1587, nova forca foi erguida, pois os vereadores se queixam de que não havia na vila tal instrumento[*15]. Foi levantada “fora da villa junto do rio tamendoati [Tamanduateí]”, como certifica o escrivão que a havia visto naquele dia[*16]. Em 1598, encontrava-se no outeiro de Tabatinguera, para incômodo dos carmelitas, cujo convento era próximo[*17]. Diante de suas reclamações, a forca foi removida para a saída sul da vila, “de fronte da cruz q’ está no caminho de [que vai para] birapoera [Ibirapuera, atual Santo Amaro]”, onde está hoje a avenida Liberdade[*18].

Até 1579 não havia em São Paulo uma cadeia. Em geral, esta ficava nos fundos da Câmara, ou no térreo, quando o edifício era assobradado. Em janeiro daquele ano, a sessão teve que se realizar na casa de Antônio Preto, pois “a caza do comselho q’ era toda hua [uma] e estar ocupada com hu prezo”[*19]. Por isso o juiz Antônio Bicudo, ao assumir o cargo, estranhava que um tal de Domingo Ruiz vagava pelas ruas da vila, embora fosse acusado de roubo. Prendendo-o, verificou que na cadeia, que funcionava nos fundos da Câmara, não havia carcereiro, nem ferros, nem cadeado e por isso o réu ficara em liberdade[*20]. Somente no século seguinte será construída uma cadeia de acordo com os parâmetros oficiais.

A Casa do Conselho ou da Câmara foi o primeiro edifício público a ser levantado na vila e teve sua construção iniciada por volta de 1574. Não há certeza quanto à data, pois as atas desse ano desapareceram.

Como outros locais públicos, sua construção foi igualmente lenta, pois, na sessão de 21 de março de 1575, os camaristas ameaçavam multar o construtor Álvares Annes em 500 réis para que “depois da festa [da Anunciação] acabase de fazer a casa do co. [Conselho], q’ era obriguado e a acabace de fazer ate quinze dias do mez dabrill, so [sob] pena de pagar a dita pena”[*21].

A casa era uma construção simples, de taipa de pilão e coberta de sapé. Por ser precária, necessitava de constante manutenção, o que não ocorria. Oito anos mais tarde não tinha condições de abrigar as sessões da Câmara, como indica a ata de 28 de julho de 1583 ao afirmar, que os conselheiros estavam reunidos na casa de Baltasar Gonçalves, pois o telhado da Câmara havia desabado[*22]. Somente em 1585 a vila terá sua nova Casa do Conselho, agora coberta de telha.

Sua localização não é muito precisa, mas é possível que ficasse também próxima à saída sul da vila. Mesmo com local precário para reuniões, o Conselho sempre funcionou e teve papel fundamental nesse início de colonização portuguesa no planalto.

Além da Câmara, o povo podia manifestar-se através das assembléias populares, como a que se realizou a 8 de dezembro de 1562, nas “pouzadas de Jorge Moreira” quando foi nomeado Salvador Pires para ir “ao mar” [a Santos] “requerer couzas q’ são necessairias” para a vila de Piratininga[*23].

Para protestar contra a imposto do peixe marinho, cobrado pelo almoxarife a pedido do donatário da Capitania, reuniu-se também, a 30 de setembro de 1575, “a maor parte do povo da dita villa, juntamente cõ os snres oficiaes da camara”. Como era uma ordem real, decidiu-se que se mandaria alguém a Santos para pleitear junto ao loco-tenente do donatário. Foi escolhido Antônio Bicudo, que deveria ficar lá “até aver acordo”. Como o caso poderia prolongar-se, pois a resposta viria de Lisboa, o indicado reclamou que não teria como manter sua família, exceto se recebesse alguma ajuda pelo trabalho. Decidiu a Câmara remunerá-lo com 20 cruzados, não em dinheiro vivo, pois a edilidade não o tinha, mas em espécies, como “couros e tousinhos e porcos e sera [cera]”[*24].

Outros assuntos exigiram a convocação do povo, como a construção da igreja matriz[*25]. A população foi também convocada para questionar a ordem do provedor da Fazenda, que obrigava os moradores de São Paulo ir a Santos registrar os indígenas Tupinikim capturados na guerra no Mbongi, na atual região de Mogi das Cruzes[*26].

E no final do século XVI e em outros momentos importantes no século seguinte, a população irá se manifestar. Assim foi quando o capitão-mor Jorge Correia, em 1592, determinou que todas as aldeias indígenas passassem para a responsabilidade temporal dos jesuítas. A ordem não agradou os moradores e por isso não foi cumprida. Para respaldar esse ato de desobediência civil, a Câmara pediu que a resposta fosse assinada não só pelos vereadores, como também pelos dois juizes da vila, pelo procurador do Conselho, e pelos 70 moradores que compareceram[*27].

* * *

As Câmaras foram inicialmente regidas pelas Ordenações Afonsinas, quando se definiram suas normas básicas, como sua composição, formada por juizes pedâneos e vereadores eleitos pelos homens bons, suas atribuições policiais e econômicas. Muitas das “posturas” ou resoluções, leis e decretos deveriam estar sujeitos à confirmação dos provedores[*28].

As Ordenações Manuelinas, de 1514, pouco alteraram sua estrutura[*29]. Maiores mudanças ocorreram com as Ordenações Filipinas, publicadas em 1603, por Filipe III de Espanha, durante a união ibérica. Estabeleceram-se detalhes sobre as eleições, embora vários procedimentos devessem ser regidos pelos “seus Foros ou costumes”, tanto das municipalidades, como dos senhores das terras[*30].

Competia às Câmaras nomear juizes, vereadores, almotacés, procuradores, tesoureiros, escrivão, juiz e escrivão dos órfãos, juizes dos hospitais. Todos esses membros recebiam o nome de oficiais da Câmara[*31].

Os juízes tinham como atribuição verificar o cumprimento das leis, punir os infratores, julgar as coimas, isto é, as multas referentes aos donos de gado, cujos animais estivessem pastando em propriedade alheia. Os almotacés deviam verificar os pesos e medidas, e aplicar os impostos sobre os alimentos. Os tesoureiros recebiam a sisa, que era o imposto de transmissão de bens, e avaliavam os bens penhorados. Os juízes de órfãos eram encontrados em vilas com mais de 400 habitantes. Suas atribuições consistiam em fazer o cadastro dos órfãos em livro próprio, assim como elencar seus bens móveis e imóveis, o nome de seus administradores, além dos inventários de pessoas com menos de 25 anos, dar o soldo correspondente e velar por seus bens e educação[*32].

Os vereadores eram eleitos, por sua vez, entre os homens bons, isto é, pessoas de recurso, devendo ser “nobres naturais da terra e descendentes os conquistadores e povoadores” como determinaram algumas cartas régias expedidas entre 1643 e 1747[*33]. Desde os primórdios da colônia não podiam ser eleitas pessoas de certas categorias, como as que tinham ofícios manuais, chamadas de mecânicos, comerciantes, mercadores (os mascates), gente da nação (judeus), soldados e degredados[*34]. Vê-se que o poder era exercido pela classe dominante.

A eleição, que ocorria a cada três anos, nas oitavas de Natal, como previam as Ordenações Filipinas, eram feitas por “grande eleitores” escolhidos entre os homens bons da terra. Era um processo complicado de listas elaboradas a partir dos nomes indicados e guardados em pelouros, que eram bolas de cera[*35].

A legislação seiscentista excluía, no caso do Brasil, os reinóis, isto é, as pessoas nascidas em Portugal. Essa exclusão explicava-se pelo desejo do rei de criar uma elite local que lhe fosse aliada. Tal cláusula foi contestada pela Câmara de São Luís, no Maranhão, no século XVIII, que não via sentido nesta determinação, “sendo todos vassalos” e colocando uma “odiosa a diferença (...) e que se pudessem eleger todos os domiciliários da cidade, ainda que não sendo naturais dela, uma vez que fossem idôneos”[*36].

Os oficiais da Câmara tinham muitos privilégios, como “não poderem ser presos, processados ou suspensos, a não ser por ordem régia ou pelo tribunal que as confirmava”[*37].

Para manter a independência deste processo eleitoral, era proibido assistir a essas eleições alcaides-mores, pessoas influentes e grandes proprietários, exceto se para isso tivessem sido autorizados[*38]. A legislação proibia “suborno, cabalas, sob pena de degredo, por dois anos, para um lugar da África, e não poder servir no triênio, ainda que fosse eleito”[*39]. Se houvesse suspeita de fraude, qualquer pessoa do povo podia impugnar a eleição, através de “embargo ou agravo, sem efeito suspensivo, salvo sendo o vício da eleição, ou defeito do eleito, provado in continenti por documentos”[*40].

As Câmaras se posicionavam não só sobre assuntos do dia-a-dia, sobre conflitos entre moradores, como também sobre questões políticas, como a escravização indígena, ou até mesmo sobre assuntos que extrapolavam seus poderes, como foi a expulsão dos jesuítas, em 1640.

Nos primórdios da colonização portuguesa no Brasil, tudo estava por se fazer, inclusive o preço dos alimentos e das medidas. Em 1585 foi estipulado o valor do tecido, sendo que quem denunciasse alguma irregularidade nos preços, teria uma recompensa[*41]. É interessante observar como o Estado estimulava a denúncia, recompensando pecuniariamente o delator, mesmo em situações de pouca gravidade, como no citado caso.

Os vereadores também se preocuparam com a limpeza pública[*42]. Além do mato havia os animais soltos pela rua, como porcos, como foi anotado na ata do dia 12 de fevereiro de 1594[*43]. Foram também rigorosos contra palavrões e desacato verbal contra o rei e autoridades, prática usual na época, com ameaça de açoites e degredo[*44].

Surgiam igualmente questões mais complexas como a questão de se ir a Santos para os trâmites eclesiásticos e, sobretudo, a escravização indígena, com o aumento das expedições ao sertão. Neste último ponto tão controverso, criava-se todo um arrazoado para justificar tal cativeiro, como se lê no requerimento de setembro de 1585, dirigido ao Cap. Jerônimo Leitão. Entre outras coisas dizia-se “q’ esta terra perece e está en mto risquo [risco] de se despovoar mais do q’ nunca esteve e se despovoa cada dia por causa dos moradores e povoadores della não terem escraveria do gentio dessa terra, como tiverão e com q’ sempre se servirão”[*45]. Depois de uma longa descrição da penúria e ameaças por parte dos indígenas, os camaristas concluíam, dizendo:

“(...) porque per hiren a abenturar suas vidas e fazendas e pollos em suas liverdades sera melhor não ir la e trazendo os e repartindo-os polos moradores como dito sera muito serviço de deus e de sua Mag. e ben desta terra porquanto o dito gentio vive em sua gentilidade, em suas terras comendo carne humana e estando ca se farão xpãos [cristãos] e viverão em serviço de deus”[*46].

A Câmara de São Paulo teve papel marcante na escravização indígena, como foi a articulação ocorrida no engenho de São Jorge dos Erasmos, em Santos, entre os procuradores das duas vilas, a 10 de abril de 1585, visando solicitar ao Cap. Jerônimo Leitão que autorizasse uma guerra contra os Guarani do litoral do Paraná, chamados de Carijó[*47]. Em junho, com a participação do vigário de São Vicente, do próprio capitão-geral e de representantes das Câmaras das duas localidades, decidiu-se pela guerra[*48].

Com o tempo, São Paulo foi se firmando como um grande entreposto de escravos[*49], e o tráfico de indígenas foi tal, que em 1604 não havia na vila mais que seis homens, pois os demais haviam partido para o sertão[*50].

Diante da escravização crescente, os aldeamentos jesuíticos passaram a ser um espaço de liberdade contra a prepotência dos colonos, como ocorreu no aldeamento de Nossa Senhora da Conceição dos Maramomis, mais tarde chamados de Guarulhos[*52].

No início do século XVII a Câmara registrava as reclamações de Diogo de Quadros, que se queixava que o capitão Maramomi lhe havia dado apenas oito índios, além de “mais dous da aldeya dos indios maramemis, q’ lhe fizeran tres arrobas de carvão, pela qual rezão deixou de fazer cantidade de ferro”[*50].

O conflito com os jesuítas crescia dia-a-dia, como se vê nas queixas que chegaram à Câmara para que “pusesen cobro nas tera [terras] da cuty [Cotia] e caraquabuiba [Carapicuíba] porquaoanto os reverendos padres da companhia querião usurpar as teras e não consentião que lavrasen os moradores de que se perdia muito e aos dízimos de sua magde pelo que lhes requerião pusesen cobro niso[*53].

Tudo era pretexto para pedir a expulsão dos jesuítas da fazenda de Barueri e para o confisco de seus indígenas, como de fato ocorreu no dia 21 de agosto de 1633. O motim, que resultou na depredação das instalações e no roubo dos indígenas, foi comandado por Antônio Raposo Tavares, fazendeiro de Quitaúna, auxiliado por Pero Leme, Manuel Pires e outros[*54].

É interessante notar que as atas da Câmara silenciaram sobre esse episódio. Tal ato mereceu a condenação e excomunhão dos invasores pelo vigário de Santana de Parnaíba, Pe. João de Ocampo y Medina, a cuja jurisdição pertencia Barueri. Os atingidos zombaram da condenação, rasgando a sentença[*55].

Este clima tenso em São Paulo coincidia com os ataques às missões jesuíticas do Guairá, no oeste do Paraná, então território paraguaio. Tais assaltos resultaram no protesto vigoroso dos jesuítas espanhóis junto às autoridades da Bahia, que não resultou em nada, já que elas compactuavam com este comércio.

Num longo documento elaborado pelos padres, além da descrição da violência dos paulistas, encontra-se um perfil dos moradores do planalto: “Toda la vida destos salteadores no es sino yr y boluer del serton, yr y traer captiuos con tantas crueldades, muertes, y latrocínios, y luego venderlos como si fueran cochinos”[*56].

O protesto dos jesuítas chegou a Roma. Sensível às denúncias, o Papa Urbano VIII promulgou, em abril de 1639, o breve Comissium nobis, retomando a bula de Paulo III, de 1537, que proclamava a liberdade dos indígenas, condenando a escravização, e ameaçando de excomunhão não só quem a praticasse, como também os clérigos e religiosos que não a denunciassem[*57].

Esse documento chegou ao Brasil somente no ano seguinte. Como era de se esperar, provocou grande tumulto no Rio de Janeiro. Na capitania de São Vicente a reação foi igualmente forte, pois seus moradores não queriam sua promulgação, que implicaria na excomunhão cristã, muito temida naquela cultura medieval.

Mesmo assim, o vigário de Santos, Pe. Pedro Albernaz resolveu lê-lo na matriz, no 13 de maio de 1640. A revolta foi tão grande, que os moradores chegaram a derrubar a porta do convento dos jesuítas, e os teriam linchado, caso o superior, Pe. Jacinto Carvalhais, não tivesse atirado sobre a multidão furiosa o documento, que foi destruído de imediato.

Em São Paulo, a promulgação ocorreu no dia 20 de junho. Houve grande reação após sua publicação, mas tanto o colégio, como os padres foram poupados[*58]. Depois de uma articulação com os moradores do Rio de Janeiro, que desejavam também sua expulsão[*59], a Câmara paulista convocou uma grande assembléia para o dia 2 de julho, exigindo a imediata saída dos religiosos. Estavam presentes, além dos camaristas, 130 moradores[*60].

Como os padres não concordaram em sair, foi feita nova sessão no dia 7 do mesmo mês, dando-lhes mais de três dias de prazo[*61]. Os jesuítas resistiam. No dia 10 de julho, vencido o novo prazo, foi notificado o superior do convento, Pe. Antônio Ferreira, para que os religiosos saíssem, “não no querendo fazer sem violência protestavão de não encorrer na ex-comunhão si quis suadente diablo”. Apesar deste final pouco compreensível para o leitor atual, davam a entender que não queriam ser excomungados[*62].

Na noite do dia 13, foi convocada, com o toque do sino, uma assembléia popular, quando compareceram mais de 200 pessoas – quase toda a população local –, como se vê pelas assinaturas da ata[*63]. Às duas horas da madrugada, na presença de todo o povo, foi lida a sentença de expulsão destes missionários de São Paulo. Invadindo o convento, a população os prendeu, mandando-os para Santos[*64]. No dia seguinte os camaristas ofereceram o aldeamento de Barueri para o Pe. Tomás Coutinho, do clero diocesano, que apoiou a expulsão. A Igreja oficial se posicionou contra aquele ato. Os franciscanos, que acabavam de chegar a São Paulo, tiveram grande participação no caso e por isso seu superior foi excomungado pelo prelado do Rio de Janeiro e teve que responder a um processo em Roma[*65].

* * *

Mesmo que se discorde das ações dos paulistas em vários pontos, como foi o tráfico de escravos indígenas, há de se reconhecer que esta população conseguiu grande coesão e articulação, embora sob o ponto de vista econômico a vila tenha ficado à margem do desenvolvimento colonial. Como escreveu Caio Prado Jr. durante muito tempo São Paulo foi apenas uma “zona de passagem” onde pouca coisa se cultivou e pouco se criou[*66].

É preciso reconhecer que aquela população estava dentro do projeto colonial português, que privilegiava o trabalho escravo e a economia extrativista, cujo auge ocorrerá com o ciclo da mineração.

A decadência da Câmara terá início com o fortalecimento dos clãs familiares, que a transformarão em “porta-voz de seus interesses”, formando, no dizer de Alves “o trinômio que constituirá o alicerce da vida colonial: o municipalismo, o patriarcalismo e o latifúndio escravocrata”[*67].

ABREVIATURAS

ACSP: Atas da Câmara da cidade de São Paulo.
HCJB: História da Companhia de Jesus no Brasil, Serafim Leite.
RIHGB: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro.

Referências Bibliográficas

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Mestre em Linguística Geral pela USP e doutorando em Antropologia pela PUC-SP. Autor de vários livros paradidáticos sobre a questão indígena, entre os quais Terra à vista, descobrimento ou invasão (Moderna, 22ª ed., 2007), e co-autor dos livros Esta terra tinha dono (FTD, 6ª ed., 2000) e Brasil Indígena, 500 anos de resistência (FTD, 2000), Povos Indígenas, terra é vida (Atual/Saraiva, 6ª ed., 2006).
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Em 1576 os vereadores reclamavam de que “os muros da vila estavam danificados e estavam caindo” e propunham que cada um consertasse a parte que lhe correspondia, isto é, a que ficava em frente de sua residência, “dentro de oito dias”. E quem não fizesse, “fosse condenado a uma multa de cem réis para o conselho” (ACSP, v.1, p. 94).
Além da procissão de Corpus Christi, as Ordenações Filipinas estipulavam mais duas: a de Visitação de Maria, a 2 de julho, e dos Anjos da Guarda, no 3º domingo de julho (ALMEIDA, Ordenações Filipinas, [1603] L. 1, tit. 66, 1957, p. 357).
Tratados da terra e gente do Brasil, [c.1590]1978, p. 214.
In: LEITE, HCJB, v. 8, p. 395.
“Naturalmente são inclinados a matar, mas não são cruéis: porque ordinariamente nenhum tormento dão aos inimigos, porque se os não matam no conflito da guerra, depois tratam-os muito bem, e contentam-se com lhes quebrar a cabeça com um pau, que é morte muito fácil, porque ás vezes os matam de uma pancada ou ao menos com ela perdem logo os sentidos. Se de alguma crueldade usam, ainda que raramente, é com o exemplo dos Portugueses e Franceses” (ANCHIETA, Informação do Brasil..., Textos Históricos, p. 60).
Ensaio sobre a história política... , 1956, p. 97. “Polé” era um tipo de tortura, onde o condenado ficava pendurado pelos pulsos, tendo aos pés pesos que o esticavam, o que levava a dores horríveis.
ACSP, sessão de 7.02.1587, v. 1, p. 309.
Id., sessão de 23.02.1587, v. 1, p. 310.
Id., sessão de 27.05.1576, v. 1, p. 98.
Id. sessão de 27.05.1587, v. 1, p. 315.
Id., sessão de 30.05.1597, v. 1, p. 315-316.
Id., sessão de 28.11.1598, v. 2, p. 48.
Id., ib. Neste lugar ela se manteve até o final do século XIX. Freitas traz um desenho de 1874, que reproduz o “morro da forca”, colina onde se erguia o patíbulo, próximo onde hoje está a Igreja das Almas, no bairro da Liberdade, que durante muito tempo foi chamada de Igreja dos Enforcados (Tradições e Reminiscências Paulistanas, [1921] 1978, p. 24-25).
ACSP, sessão de 24.01.1579, v. 1, p. 135.
Id., ib.
Id., sessão de 21.03.1575, v. 1, p. 68.
ACSP, v. 1, p. 215.
Id., ib., p. 18.
Id., p. 104.
Id., sessão de 7 de fevereiro de 1588, p. 345.
Id., sessão de 28.01.1595, v. 1, p. 107.
Id., sessão de 20.09.92, v. 1, p. 446-7.
Ordenações do Senhor Rey D. Affonso V, 1792, L. 1.
Ver Ordenações do Senhor Rey D. Manuel, [1514] 1797, L. 1.
Ordenações Filipinas [1603], 1957, L. 1, tit. 66, p. 351.
Id., p. 342-345.
Id., p. 343.
Ver GARCIA, Ensaio sobre a história política... , 1956, p. 103.
Id., ib.
Para detalhes da votação, ver as Ordenações Filipinas, [1603]1957, L. 1, tit. 67, p. 359-365.
Sessão 2.01.1720. Ap. GARCIA, id., ib.
GARCIA, id., p. 102.
Ordenações Filipinas, [1603] 1957, L. 1, tit. 67, p. 363.
Id., ib.
GARCIA, História política e administrativa do Brasil, 1956, p. 102.
“(...) por na terra aver pouco pano de algodão valese de oje [hoje] em diante o pano groso a ducentos res [réis] [a] vara e o pano delgado a duztos e quoarenta res [réis] a vara e que hun e outro pano tenha tres palmos e meo de largura e quen vender o dito pano em mayor preso [preço] perderá o pano a metade pera o concelho e a outra metade pera quen o acusar e mil res de pena por cada vez pa. o concelho” (ACSP, sessão de 14 de abril de 1585, v. 1, p. 264).
“Todos os moradores desta villa q’ tivere terras chãos pêra casa ao longo da villa fora dos muros della alimpe a longo do campo de cada vanda duas braças [braças] craveras pa. os caminhos estaren limpos e cumprão esta semana q’ vem he a semana santa e (...) pagara hun tostão pa. o concelho” (Id., v. 1, p. 263-4).
“Ãdavão nella [na vila de São Paulo] bãdos de porquos [porcos] que sujavão na igreja e casas o q’ não paresia ben” (Id., ib., p. 488).
“[Que não se dissesse contra] el rey nosso sor nen em suas justas [leis] nen [contra] o alcaide do forte sob pena de cem azoutes sendo pião [homem comum], e dez cruzados pera o concelho pagos da cadea, e sendo home de calidade pagará vinte cruzados na cadea pa o concelho e mais sera degradado por hun ano pa a fortaleza da Vertioga [Bertioga] e se for soldado do forte pa. que o castigue como lhe parecer justo (Id., sessão de 27 de abril de 1585, p. 266).
ACSP, Sessão de 1o.09.1585, p. 274-275.
Id., ib. p. 277.
Id., ib., p. 275-278.
Id., ib., p. 279-281.
MONTEIRO, Negros da terra, 1994, p. 100-128.
ACSP, sessão de 1.01.1604, v. 2, p. 144.
PREZIA, B. Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos: a frustrada missão... , 2007, p. 13-14.
ACSP, sessão de 15.02.1609, v. 2, p. 234-5.
Id., sessão de 18.08.1633, v. 4, p. 170-1.
SOUZA, Catolicismo em São Paulo... , 2004, p. 94.
Id., ib.
A vida inteira destes assaltantes é simplesmente ir e vir do sertão, trazendo indígenas cativos, com tanta crueldade, morte e latrocínio, e em seguida vendê-los como si fossem porcos” (MASETA & MACILLA. Relación de los agravios que hicieron los portugueses de San Pablo... 1629. In: BLANCO, Las “banderas” , 1966, p. 478).
In: BOXER, Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola... , 1973, p. 142-143.
HCJB, v. 6, p. 416-21.
BOXER, Salvador de Sá... , 1973, p. 149-150.
“Povo e câmera ao collegio da companhia de Jesus lhe fizerão a notificasão [...] ao reverendo pe. reitor nicollaho Botelho, que dentro de seis dias despejasen esta villa e se recolhesen no collegio do rio de janro. pa. seguransa de suas vidas onrras[honras] e fazendas contra os allevantamtos do gentio de que não viven seguros como a experiensia tem mostrado e pera seguransa e defensão de todas estas villas a que o enemiguo não tenha entrada nellas (...) e que sucedendo algua dezorden sera a culpa emputada a vosas reverensias por sua contumácia” (ACSP, sessão de 2.07.1640, v. 5, p. 25-26).
Id., ib. p. 30.
Id., ib. p. 33. A frase latina correta seria: “si quis suadente diabulo” (se alguém for induzido pelo demônio...) e faz parte do rito de excomunhão que rezava: “Se alguém for induzido pelo demônio a falar ou ensinar alguma coisa em contrário à doutrina da Santa Igreja Católica...., que seja excomungado”.
Id., ib. p. 34-35.
In: SOUZA, Catolicismo em São Paulo... , 2004, p. 97.
Id. ib., p. 97-98.
A formação do Brasil contemporâneo, 1945, p. 61.
O município. Dos romanos à Nova República, 1986, p. 63.