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Artigo publicado na edição nº 29 de janeiro de 2008.
A Gripe Espanhola[*1] de 1918 na Cidade de São Paulo:
Notas Sobre o “Cotidiano Epidêmico” na “Metrópole do Café”

Leandro Carvalho Damacena Neto

“Em meados de dezembro de 1918, com o declínio da moléstia, os cidadãos de São Paulo começaram a retomar sua vida cotidiana. Sem uma explicação, deixando todos ainda perplexos, de como começou, a gripe espanhola acabou”.
(Liane Maria Bertucci: 2003, p.115).

A epidemia de gripe espanhola chega ao Brasil trazida pelo navio inglês “Demeara”, que passou pelos principais portos de então, espalhando a influenza em cada parada. Após alguns dias de sua passagem nessas localidades, iniciam-se os primeiros casos de doença que irá se espalhar por todo território brasileiro.

Uma das hipóteses a respeito da chegada da gripe espanhola na capital paulista é a de que um estudante, vindo da capital federal já adoentado teria sido internado no Hospital de Isolamento vindo a falecer em 13 de outubro, constituindo-se na primeira vítima oficial registrada no município de São Paulo. Outra possível explicação estaria relacionada a um time de futebol amador, também proveniente do Rio de Janeiro que havia visitado São Paulo. (BERTOLI FILHO: 1986; BERTUCCI: 2003, p.107-108.)

Tudo parecia indicar que a moléstia epidêmica havia chegado à capital paulista através de pessoas que vieram infectadas com a doença do Rio de Janeiro. Altino Arantes, então Presidente do Estado de São Paulo no quatriênio 1916-1920, registrou em seu Diário Íntimo, no dia 17 de outubro de 1918, a informação sobre embarcações em quarentena no porto de Santos e a preocupação a respeito das condições sanitárias na localidade, demonstrando a possibilidade de que a influenza poderia ter percorrido uma outra rota até a capital, subindo através da Serra do Mar:

O commandante Nunes – chefe da nossa divisão naval ancorada em Santos –, fallando commigo pelo telephone, pediu-me que lhe facultasse [remeter] a guarnição de seus navios ao Hospital de Isolamento, enquanto se fizesse o expurgo dos barcos contaminados de ‘influenza espanhola’. Accedi promptamente, dando eu, em pessoa, ao Dr. Neiva[*2] as instrucções nesse sentido. (Diário íntimo de Altino Arantes: Arquivo do Estado de São Paulo (APESP). Arquivo Privado Altino Arantes, Vol. 9. [17/10/1918])

Apesar de todos os sinais de que a influenza espanhola havia atingido a capital, o Serviço Sanitário Estadual de São Paulo, pelo seu diretor Artur Neiva, somente decretou estado epidêmico no dia 15 de outubro de 1918[*3]. Iniciou-se então uma série de medidas profiláticas para debelar o surto: proibiu-se aglomerações públicas; o serviço de saúde determinou aos oficiais e praças que adotassem a continência, deixando o perigoso aperto de mão; entre a população civil, além da restrição às visitas, beijos e abraços passaram a significar, naquele momento, uma grande falta de educação (BERTUCCI: 2003, p. 113), algumas casas de jogos, cinematógrafos e teatros paralisaram suas atividades voluntariamente, outros pela ação policial.

O Serviço Sanitário Estadual pediu para a população isolar-se em suas casas, restringindo as saídas somente ao estritamente necessário. Outras medidas profiláticas adotadas pelas autoridades públicas foram os fechamentos de escolas e faculdades no município de São Paulo, sendo instalados nestes locais diversos hospitais provisórios para a assistência à população enferma, conforme nos informa Altino Arantes: “(...) Com este [Arthur Neiva] combinei também o fechamento dos Grupos Escolares da Capital, podendo os respectivos edifícios ser convertidos em enfermarias para os indigentes atacados de grippe”. (Diário Íntimo Altino Arantes: APESP, vol. 9. [17/10/1918])

As medidas profiláticas adotadas pela capital paulista durante a moléstia de gripe ocasionaram uma série de mudanças no dia-a-dia da população, estabelecendo uma espécie de “cotidiano epidêmico” no qual as pessoas procuravam seguir as prescrições médicas em um processo de reeducação. Mesmo assim em vários momentos as relações sociais e culturais resistiram ao flagelo desestruturador da epidemia de gripe e ao poder médico. (BERTUCCI: 2003, p. 113)

É interessante ressaltar que os primeiros dias da gripe transcorreram normalmente para a população, pois bares, teatros, cinemas, o comércio e a indústria continuaram funcionando. Somente após a decretação oficial da presença da epidemia de gripe espanhola no município de São Paulo que estes locais encerraram todas suas atividades. A circulação em espaços públicos como praças, parques e jardins, também foi restringida devido ao medo disseminado do contágio.

Os dias normais da população foram alterados com o “cotidiano epidêmico”, marcado pela suspensão das sanções sociais vigentes. Como vimos, mesmo com a constatação de que a epidemia gripal vinha fazendo suas primeiras vítimas na capital paulista, as autoridades inicialmente ignoraram as evidências deixando de precaver a sociedade. Em vez disto, o presidente de Estado Altino Arantes determinava o envio de médicos e farmacêuticos à capital federal para atender a um pedido do presidente da república Wenceslau Braz, conforme registra em outra passagem de seu diário:

Jantei, com o Álvaro, em casa do Gastão Vidigal e depois, já nos Campos Elíseos, conferenciei com o Dr. Neiva e com o Sr. J. Frederico Borba, director da Escola de Pharmacia, sobre a epidemia reinante de “influenza hespanhola” e sobre os meios de ser promptamente attendida uma requisição do Dr. Wenceslau Braz para/ que eu contractasse e fizesse seguir para a Capital da República, vinte práticos de pharmacia. (Diário Íntimo de Altino Arantes: APESP, vol. 9. [19/10/1918])

O envio de farmacêuticos à capital federal, mesmo quando a epidemia de gripe já estava presente em São Paulo, pode ser explicado por dois motivos. Em primeiro lugar, a assistência efetuada prontamente pelo governo paulista à solicitação de Wenceslau Braz, que talvez se relacione com a necessidade de Altino Arantes de obter o apoio político eleitoral à candidatura de seu padrinho, o Conselheiro Rodrigues Alves, à presidência da República. Este acabou vencendo a eleição, mas não chegou a tomar posse devido ao agravamento de sua saúde em virtude de ter contraído influenza espanhola no final de 1918, vindo a falecer no início do ano seguinte. O segundo seria o fato de os administradores paulistas manterem a imagem da “Metrópole do Café” moderna e salubre. Argumentavam que mesmo que a cidade fosse atingida pela epidemia gripal, esta não iria ter seu quadro sanitário agravado. Por este motivo, o Serviço Sanitário Estadual, durante os quinze primeiros dias epidêmicos, estabelece um discurso pelo qual parecia demonstrar estar em condições de assumir a responsabilidade do combate à crise sanitária. No entanto, no dia 28 de outubro, o mesmo órgão se contradiz quando, em pronunciamento de seu diretor, o médico Artur Neiva, anuncia a incapacidade oficial do S.S.E. de debelar a epidemia gripal que tomava a capital paulista, modificando radicalmente suas posições anteriores marcadas pela intransigência e arrogância.

Alguns dias antes do discurso de Artur Neiva, algumas instituições privadas (Companhia Antarctica, a Companhia Nacional de Juta, a Cristalera Itália, “Comissão Estado-Fanfulla”), filantrópicas (Cruz Vermelha Brasileira, Liga Nacionalista) e religiosas (Igreja Católica, Associação dos Pastores Evangélicos) se reuniram em solidariedade com aos enfermos, passando a prestar serviços de tratamentos aos mesmos – essas instituições iniciam as medidas profiláticas e de assistência aos enfermos principalmente após a declaração de ineficiência do Serviço Sanitário[*4].

O isolamento e a quarentena, medidas profiláticas mais adotadas pelos serviços oficiais em fases de epidemias no período, foram intensamente utilizados durante a fase mais aguda da pandemia gripal. Mas essa medida, geralmente polêmica, às vezes revelava a situação de desamparo vivida pela população. Um exemplo disto pode ser demonstrado através da denúncia publicada no periódico anarquista O Combate:

Ao entrar no quarto do casal, os dois japonezes haviam fallecido e já se achavam em completa rigidez cadavérica sob as cobertas de um humilde leito. Debruçada sobre o cadáver da mãe, sugando ambos os seios e a choramingar, estava uma criança de 8 mezes. Assim que deparou com os extranhos, a pequenina orphan arregalou os olhos e voltou-se para os mesmos, soluçando commoventemente. Estava abatida pela fome de muitos dias. ( “O Combate” apud BERTOLLI FILHO, op cit. , p.352)

O descaso do poder público se torna presente para as famílias carentes da cidade de São Paulo. As medidas de isolamentos literalmente são utilizadas para confinar a população em seus próprios lares reservando-lhes a morte, retirando assim do poder público o dever de cuidar destas. Os chamados “órfãos da epidemia” ficaram sob cuidados e tratamento fornecido por instituições controladas pela igreja conforme combinação efetuada com o Estado:

Com o Sr. Arcebispo D. Duarte, combinei a internação dos ‘órfãos da epidemia’, enquanto não se lhes encontre collocação definitiva, no Asylo da Sagrada Família, no Ypiranga, no Asylo Bom Pastor; na Casa da Divina Providência e Externato dos Irmãos Maristas, no Cambucy. (Diário Íntimo de Altino Arantes: APESP. vol.9. [3/11/1918])

Essa realocação dos “órfãos da epidemia” em diferentes locais ocorreu devido à interdição de um orfanato da igreja efetuada inexplicavelmente por um Juizado de Menores da capital, fato que obrigou as crianças a serem distribuídas por diversos internatos.

A epidemia difundiu o medo como um dos principais sentimentos que impregnou todo o tecido social, essas medidas de solidariedade realizadas pelas instituições privadas filantrópicas, religiosas e pela sociedade, apesar do medo e por causa dele, levou toda a sociedade a se mobilizar, através de atitudes individuais e coletivas de ajuda mútua.

A moléstia de gripe aumentava o número de vítimas no município de São Paulo, conforme o Relatório Oficial sobre a gripe espanhola no município de São Paulo redigido na forma de ofício (nº 477), expedido pelo então prefeito de São Paulo, Washington Luís:

(...) no dia 29 de outubro, o número de enterramentos ascendeu a 87 e chegou a cerca de 300 enterros por dia no auge da epidemia, sendo que a média normal anterior de enterramentos no ano de 1917 era de 27 enterros por dia, a média durante a epidemia foi de 178,6 enterramentos por dia. (Relatório Oficial nº 477, APESP, Arquivo Privado Washington Luís)

Conforme Bertolli Filho, a gripe espanhola foi responsável pela morte de aproximadamente 1% de toda a população paulistana em 1918, estimada então em 523.196 habitantes. Até hoje existem dúvidas a respeito do verdadeiro número de óbitos atribuídos à gripe, gerando crítica e desconfiança, tanto em relação à morbidade, quanto à mortalidade no período epidêmico em relação aos dados oficiais. (BERTOLLI FILHO, op. cit. , p.48 a 58 e p.115 a 125)

Com aumento considerável do número de óbitos, os sepultamentos passaram a ser realizados também no período noturno, sendo feitos muitas das vezes em valas comuns conforme denúncias publicadas pela imprensa da época, ( “O Estado de São Paulo” apud BERTOLLI FILHO, op. cit. , p.315.), ocorrendo falta de caixões e de coveiros para os enterramentos dos mortos.

O “cotidiano epidêmico” vivido pela população do município de São Paulo no ano de 1918 nunca será esquecido, pois, parafraseando Jacob Burckhardt, temos o sentimento do momento epidêmico: Cumpre, assim, supor que esse povo agonioso destituído de mal grado do cotidiano se deixava arrebatar pela epidemia[*5].

Palavras-chave: gripe espanhola; São Paulo; poder público; crise sanitária; medidas profiláticas.

FONTES:

Diário Íntimo de Altino Arantes: Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Arquivo Privado Altino Arantes (APAA). (Digitalizado)
Relatório sobre a Epidemia de gripe espanhola de 1918 no município de São Paulo: Oficio n. 477: Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). Arquivo Privado Washington Luís. (APWL).

BIBLIOGRAFIA:

BERTOLLI FILHO, Cláudio. Epidemia e Sociedade: a gripe espanhola no município de São Paulo. SP, 1986, 482p. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
BERTUCCI, Liane Maria. “Conselhos ao Povo”: Educação contra a Influenza de 1918. Cad. Cedes, Campinas, v. 23, n. 59, p. 103-117, abril 2003.
BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Um Ensaio. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das letras, 2003.
GOULART, Adriana da C. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist., ciênc., saúde. Manguinhos, vol. 12, n. 1, p. 101-42, jan.-abr. 2005.
HOCHMAN, Gilberto. A era do Saneamento: As bases da política de saúde pública no Brasil. SP: HUCITEC/ANPOCS, 1998.
SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. A medicina e a influenza espanhola de 1918. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro, n. 19, pp. 91-105.
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Graduado em História pela Universidade Estadual de Goiás, UnUCSEH- Anápolis – GO. Especializando no curso Formação Docente em História e Cultura Africanas e Afro-Americanas pela mesma Instituição e pelo CieAA- Centro Integrado de Estudos África -América. E-mail: lcdneto@yahoo.com.br
A Gripe Espanhola no ano de 1918 grassou em quase todas as localidades no mundo, com exceção de algumas ilhas no Oceano Pacífico e vitimou aproximadamente 20 milhões de pessoas por onde passou. A cidade de São Paulo não fora exceção. No presente texto, irei analisar o período epidêmico de gripe espanhola na “Metrópole do Café” como era chamada pelas elites paulistanas.
“Artur Neiva, ativo militante da campanha pelo saneamento do Brasil e diretor do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo de 1917 a 1920”.
Existem discussões sobre a demora do Serviço Sanitário Estadual de São Paulo reconhecer/ ou decretar estado de calamidade pública na capital do Estado. Iniciando as medidas profiláticas contra a epidemia tardiamente e, conseqüentemente aumentando o número de enfermos e óbitos. Ver BERTOLLI FILHO, op. cit. , 1986.
Sobre as discussões das medidas profiláticas adotadas pelas instituições privadas, filantrópicas e religiosas. Ver BERTOLLI FILHO: 1986, p. 223 a 252.
BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Um Ensaio. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das letras, 2003, p.351. A passagem no original: “Cumpre, assim, supor que esse povo fantasioso negligenciava de bom grado do cotidiano apenas para, então, se deixar arrebatar pelo extraordinário”.