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Artigo publicado na edição nº 30 de abril de 2008.
Crise partidária e labirinto político no Brasil Império

Antonio Marcelo Jackson F. da Silva

O período que vai de 1864 a 1868 conviveu com guerras distintas. No primeiro grupo de “guerras” estariam os conflitos com a Argentina, Uruguai e Paraguai, ou seja, com a política externa do Brasil, e que apenas citaremos quando se fizer necessário – dada à distância em relação ao tema a ser exposto; já no segundo grupo – que efetivamente nos interessa – estão as “guerras” intestinas que os liberais travavam desde, pelo menos, 1862. Neste aspecto, a fragmentação que o Partido Liberal experimentava refletia nos gabinetes que, em tese, deveriam servir de baluarte às propostas desse grupo político. Já no Primeiro Gabinete Zacarias (1862) a divisão ficara nítida com a queda do mesmo em apenas três dias por voto de desconfiança[*1]; e a seqüela foi o surgimento da Liga (denominada em 27 de maio do mesmo ano de Partido Progressista) reunindo alguns liberais e dissidentes do Partido Conservador.

Lamentavelmente, o problema não se restringia a isso. O fazer política de certas lideranças liberais também oferecia algum empecilho a qualquer chance de se apresentar e de se concretizar certas reformas. Esse era o caso de Zacarias de Góes e Vasconcellos que, segundo Joaquim Nabuco,

[era] metódico em toda a sua vida, minucioso como um burocrata em cada traço de pena, chamando tudo e todos a contas com a régua do pedagogo constitucional, ele foi o mais implacável, e também o mais autorizado censor que a nossa tribuna parlamentar conheceu. Sua existência política pode ser comparada à do religioso a quem são vedadas as amizades pessoais e que se deve dedicar todo à sua Ordem, obedecer só à sua regra.[*2]

E assim agindo, levando a ferro e fogo os princípios constitucionais, Zacarias acabava por abdicar de qualquer pretensão as ações mais contundentes como, por exemplo, uma reforma ampla nas estruturas do Estado. Tanto é que, ao liderar o grupo dos progressistas, postava-se como radicalmente contra qualquer mudança no sistema eleitoral – pela adoção de eleições diretas e universais – ou na Constituição[*3], e provocava em Tavares Bastos – uma das principais lideranças do Partido –, tempos depois (em uma reunião na casa de Bastos onde se procurava curar todas as feridas que separavam os dois grupos liberais), o seguinte comentário: “o progressismo subsiste. Com ele, nada se fará”.[*4]

Tal questão aparecia nitidamente no próprio programa do grupo:

a ênfase principal do programa, refletindo as preocupações do magistrado Nabuco [Nabuco de Araújo, um dos principais líderes progressistas], estava em problemas de organização e processos judiciários. Nabuco percebia, com outros conservadores, que o rigor da Lei de 1841 já se tornara desnecessário e que ela deveria ser reformada no sentido de separar as funções judiciais das policiais e de dar maior autonomia e profissionalização aos magistrados. Segundo ele, estas reformas proporcionariam maiores garantia e proteção aos direitos individuais. O programa repetia também as velhas demandas liberais por maior descentralização, mas sem sugerir mudanças importantes no sistema político.[*5]

Isso explica boa parte das divergências internas dos liberais. Por um lado os chamados históricos, fiéis defensores das reformas e do entendimento que o modelo político brasileiro naufragaria caso medidas urgentes não fossem tomadas; por outro, os progressistas, que transitavam aleatoriamente entre certos princípios liberais e certas teses conservadoras, entendendo que qualquer medida a ser tomada não poderia ferir os ditames expressos nas leis adotadas desde a independência, ou seja, antes de se reformar o modelo, era necessário conceber outras maneiras de se interpretar a legislação.

Somando-se a isso, a pura e simples existência do Poder Moderador já causava uma série de transtornos na elite política brasileira. Particularmente, a década de 1860 acabou por ver, ou acreditar que via, a materialização de boa parte desses temores. Em 1865, um panfleto publicado de forma anônima (posteriormente, descobriu-se que era de autoria de Sousa Carvalho), tinha como título O Imperialismo e a Reforma e introduzia no Brasil a expressão que doravante seria um sinônimo de “governo pessoal”, ou seja, a interferência abusiva do Imperador nos destinos políticos do país[*6]. Essa discussão, que, para o bem da verdade não era privilégio das elites brasileiras, tinha como cerne se saber se o rei reina e não governa[*7] ou se o rei reina e governa. Para José de Alencar, por exemplo,

nas Cartas de Erasmo, publicadas em 1866, o que se quer é que exerça, enfim, o imperador, as atribuições que lhe competem, isto é, tanto as do Poder Moderador, a ele delegado privativamente, como as de Chefe do Executivo e primeiro representante da nação. Todas se acham estatuídas, aliás, na constituição do Império e são esposadas pela fórmula de Itaboraí: o rei reina, governa e administra. O que está longe de ser autorizado pela constituição é a fórmula de Thiers, segundo a qual o rei “reina e não governa.

Em outras palavras, em termos constitucionais, não poderia haver nenhum constrangimento a qualquer ação de Pedro II no sentido de alterar o jogo político ou, como ocorrera em diversas ocasiões, derrubar a Câmara e convocar novas eleições, ou seja, transformar-se – ou ter o poder de se transformar – no único eleitor, de fato, em todo o território; o único em condições de ditar e/ou influenciar diretamente o jogo político. Esse modelo, que Tavares Bastos lutava a todo custo para alterar e que não podia contar com o auxílio da ala progressista, produzia toda a sorte de contradições no país, principalmente naquela década de 1860 em que o monarca passara a ter uma atitude mais incisiva nos desígnios da nação[*8]:

contradição entre o princípio moderno da soberania popular e o da sanção divina; entre um sistema nominalmente representativo e a carência de verdadeira representação; entre um regime de natureza aristocrática e a inexistência de aristocracias tradicionais; entre um liberalismo formal e a falta de autêntica democracia; finalmente entre uma carta outorgada, de cunho acentuadamente monárquico, e uma constituição não escrita que pende para o parlamentarismo.[*9]

E, com o Terceiro Gabinete Zacarias, a contar de agosto de 1866, essas contradições foram agravadas pela divisão dos liberais. O labirinto político, portanto, ganhara tons nebulosos.

A crise que se instaura no Terceiro Gabinete, para o bem da verdade, tivera início logo no primeiro momento. A ascensão de Zacarias fora possível por uma diferença de apenas três votos (3 de agosto de 1866) e a moção de desconfiança no ano seguinte que por muito pouco quase não o derruba partira de um liberal histórico, Franco de Almeida, o que configurava não apenas a “má vontade geral” do grupo histórico – nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda[*10] – como também indicava que, provavelmente, o maior desafio do progressista Zacarias estaria nas hostes de seu próprio partido. E a divisão era tamanha que mesmo a vitória liberal nas eleições municipais em 1867 pouco ou nada aplacou o cisma entre os grupos.

Esta oposição doméstica se confirmaria como o grande desafio em virtude da retração que sofrera o Partido Conservador à época: quase entrincheirados na província do Rio de Janeiro, e contando tão somente com a “liderança puritana”, conforme Raymundo Faoro, os conservadores viam com toda a parcimônia qualquer possibilidade de assumirem o governo (se a crise entre os Liberais fosse ampliada) por receio disto ocorrer por meio de uma ação absolutamente parcial do Poder Moderador ou mesmo do Conselho de Estado[*11]; somando-se ao fato de terem que administrar o ônus da Guerra do Paraguai que já se arrastava por um tempo maior do que fora publicamente assumido no início[*12]. Por essa razão, com os conservadores recolhidos em seu canto, a única oposição que efetivamente ocorria, tinha sua origem dentro do próprio grupo liberal.[*13]

Contudo, essa divisão do Partido de Tavares Bastos e Zacarias de Góes não se restringia apenas a estes dois segmentos. Observando com mais acuidade, os liberais, desde a formação do partido no início do Segundo Reinado, já se apresentavam em correntes distintas. De um lado, havia o grupo que acabaria se autodenominando histórico, defensor das reformas no Estado com o fim de se programar todas as reivindicações defendidas pelo partido. Era, portanto, aquele que procuraria sustentar a todo o custo as bandeiras partidárias e que tinha dentro de seus quadros, entre outros, Tavares Bastos e José Antônio Saraiva. De outro lado, um grupo mais radical, em parte seguidores de certos princípios defendidos na Revolução Praieira, de 1848 em Pernambuco, e que, através de uma prática mais jacobina, defendia que as reformas necessárias deveriam ser implementadas de qualquer maneira, independentemente do custo político que isso pudesse gerar. Desse, faziam parte Limpo de Abre u e Sousa Carvalho[*14]. Por fim, os chamados progressistas, fruto de uma coalizão entre conservadores dissidentes e liberais moderados, acreditavam nas reformas, porém, sem abrir mão dos princípios constitucionais e do modelo adotado, ou seja, todas as teses não poderiam passar dos limites determinados pela Carta de 1824. Neste grupo estavam Zacarias de Góes e Vasconcellos e Nabuco de Araújo.

Nestes termos, o Partido Liberal apenas se apresentava coeso em questões razoavelmente pontuais, como nas eleições ou no enfrentamento mais abrupto ao Partido Conservador.

De outro lado, o próprio Partido Conservador, quando observado mais de perto, também apresentava fissuras, ainda que não necessariamente de uma forma tão marcante quanto os liberais. De uma parte, havia o segmento mais autoritário, defensor intransigente da ordem estabelecida e do modelo monárquico brasileiro, e que possuía no Visconde de Uruguai e no Barão de Cotegipe seu paradigma; de outra, um grupo mais moderado, defensor de um equilíbrio entre os diversos setores políticos, como, por exemplo, o direito das minorias, tendo o Marquês de Paraná e José de Alencar como seus ideólogos.

Reunindo propostas e ações, escritos e práticas, a elite política brasileira não possuía a homogeneidade que tantas das vezes poderíamos crer, independentemente da formação intelectual que possuíam. De certa forma e até mesmo em virtude dessa fragmentação, os arranjos políticos eram instáveis em boa parte das vezes, transformando as decisões em movimentos pendulares, de idas e vindas – como fora o caso do sistema eleitoral –, ou então as retardando por um tempo desnecessário – como no exemplo do Código Civil. Assim também a interferência de Pedro II no parlamento via Poder Moderador apresentava-se de forma mais acintosa do que a ideal em virtude dessa fragmentação, ou seja, com a conseqüente fragilidade dos partidos, a ação do monarca tornava-se um mal necessário à máquina administrativa e política do país.

Não se quer dizer, com isso, que a atuação do Imperador tenha sido aceitável em todo o período ou, de outra maneira, que o modelo político fosse correto. O problema é que, frente a uma fragmentação partidária nos termos apresentados acima, o equilíbrio somente poderia brotar por meio da ação do monarca, fazendo com que fosse constituído o labirinto em que todos seriam aprisionados. E o próprio Pedro II reconheceria, em diversos momentos, essa dificuldade: “haja eleições como elas devem ser, e o Brasil terá certo o futuro e o monarca dias serenos”[*15] . Em outras palavras, fosse entendida como um "mal necessário" ou como parte corrente do jogo político, o fato é que essa intervenção do Imperador produzia mal estar em todos os atores.

Evidentemente, cabe a pergunta de se saber o porquê, então, de nenhuma medida ser tomada para se resolver o problema. A resposta reside na própria fragmentação. Qualquer um dos grupos – e não estamos falando aqui de partidos – que assumisse o poder procuraria sedimentar-se e, para isso, tanto na ascensão ao governo quanto na sua manutenção, necessitaria do apoio de Pedro II. A "construção da ordem", para usarmos a conhecida expressão de José Murilo de Carvalho, era também a "construção da desordem", pois o modelo que fornecia os alicerces para a manutenção do Império era o mesmo que roía, pouco a pouco, as suas bases.

Frente a isso, dois pontos ganham maior relevo. O primeiro, a conhecida doutrina Alves Branco, do Visconde de Caravelas, que defendia o princípio de que o funcionário público devia total fidelidade ao governo – ou antes, ao grupo político que estava no poder. Em função da presença marcante de funcionários públicos no parlamento, a doutrina tornava-se grave quando pensamos que essa "fidelidade" não estaria vinculada nem mesmo ao partido, mas sim, ao grupo que assumira o poder, tornando a dança das cadeiras no funcionalismo um ritual muito mais esquizofrênico do que se pode imaginar. Nesse sentido, Tavares Bastos defendia a necessidade de se profissionalizar o funcionário do Estado, não apenas para combater diretamente a doutrina Alves Branco (pois, desvincularia o empregado do grupo político vigente ao mesmo tempo em que daria autonomia a este quando, por acaso, atuasse dentro do parlamento), mas também, ofereceria uma modesta chance de se ate nuar o mal que esta fragmentação política causava na administração pública. Em outras palavras, Bastos procurava criar as condições necessárias para se separar a esfera política da administrativa, enquanto o Visconde de Caravelas as reunia sem nenhum pudor. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, este foi um dos principais fatores que distanciavam o Brasil de outros países à época, pois, ainda que o problema aparecesse em países como a França e os Estados Unidos, o mesmo era minimizado pela existência de uma classe média forte ou por uma trajetória histórica que defendia a autonomia dessa burocracia – e não era esse o caso do Brasil.

O segundo ponto a ganhar relevo neste quadro é o Código do Processo Criminal. Ainda que tenha auxiliado na paz imperial, principalmente nos anos saquaremas, esse código complementava o rígido controle que o grupo no poder poderia usufruir caso sentisse a necessidade – e quase sempre sentiam. Segundo Raymundo Faoro,

a lei de interpretação, ao retirar das províncias suas atribuições autonomistas, recebeu o complemento necessário como legislação do ano seguinte. O poder central atrela as influências locais, armadas com a polícia e a justiça, ao comando de seus agentes. Criou, no município da corte e em cada província, um chefe de polícia, com delegados e subdelegados a ele subordinados, nomeados pelo imperador e pelos presidentes. (...) As autoridades locais não desaparecem, senão que se atrelam ao poder central, isto é, ao partido que ocupa o ministério.[*16]

Esta observação torna-se fundamental quando lembramos o grau de interferência desta fórmula nas eleições. Prisões, julgamentos, convocações para se fazer parte da Guarda Nacional, tudo poderia ser feito no intuito de se impedir que o grupo – ou grupos – de oposição participasse(m) do pleito. Daí a violência ser uma das principais características eleitorais no Brasil Império. Daí, concomitantemente, a observação de Tavares Bastos ao lamentar que tanto o Partido Conservador quanto o Partido Liberal bebiam na mesma fonte: a "ausência de uma moral", que tanto este autor lastimava.

Assim dito, o quadro estava formado. A fragmentação política permitia a interferência marcante do monarca, exigia a fidelidade do funcionalismo e deixava toda a parte judiciária ao sabor dos ventos do poder. Atento a tudo isto, Tavares Bastos percebia que toda esta práxis desaguaria, inevitavelmente, na derrocada absoluta:

o que é incompreensível (...) é que o governo de um país livre se faça fora dos partidos. Alimentar partidos intermédios que embaracem os partidos legítimos, não é só uma ilusão, é um perigo. A história contemporânea dos países constitucionais mostra que esse sistema de governo ou é derrubado sempre que se substituem aos partidos reais os partidos teóricos ou oficiais. Com efeito, não há meio termo: ou o governo do autocrata com o vigor, o prestígio, a astúcia e a perseverança do napoleonismo, ou o governo francamente representativo e constitucional. No primeiro caso a responsabilidade pertence inteira ao príncipe que é o chefe de um partido; no segundo caso, a realeza está fora e acima das paixões políticas, e são os chefes de partido que assumem a responsabilidade. (...) Cumpre saber a lei em que vivemos.[*17]

Decerto que todos, ou quase todos, sabiam o que deveria ser feito. O problema era como fazê-lo frente a um cenário em que o fiel da balança era justamente aquele que, em tese, deveria manter-se alheio ao jogo político: o Imperador. Assim, como peças de um jogo em que todos sairiam perdendo, os movimentos continuaram, convivendo com a expectativa de que a qualquer momento o castelo de cartas poderia ruir, e, neste sentido, a Guerra do Paraguai tornou-se o pivô daquilo que já se esperava.

Bem antes de seu início, o conflito na região do Prata já se apresentava como favas contadas. Em 1862, Tavares Bastos atentava para o problema:

qual o estado das relações entre o governo imperial e o da república do Paraguai.
(...) qual o estado dos ajustes entre o império e a república acerca da demarcação dos respectivos limites.
(...) qual o estado das fortificações e meios de defesa aparelhados pelo governo imperial nas províncias do Mato Grosso, de São Paulo e do Paraná, e no rio da Prata, para o caso de romperem as hostilidades entre o Brasil e o Paraguai
.[*18]

Em outras palavras, era óbvio para boa parte das pessoas que, mais cedo ou mais tarde, explodiria uma guerra. Todavia, em virtude da conjuntura política, nenhuma ação mais contundente fora tomada no sentido de se precaver em relação ao conflito, e é mais uma vez Tavares Bastos quem descreve o desenrolar provável dos acontecimentos:

não vacilo acerca do resultado de uma luta entre o Brasil e o Paraguai. A natureza do terreno, a organização da república, a vida pouco fixa de seus habitantes, os recursos do interior, haviam de prolongar por muito tempo a guerra que desgraçadamente rebentasse entre os dois países; mas a facilidade que temos em armar-nos, os recursos e o crédito que dispomos dar-nos-iam por fim a vitória.[*19]

Sem acrescentarmos uma única linha, a Guerra do Paraguai desenrolou-se exatamente como ele havia previsto. Contudo, um fator acabou refletindo na política interna do Brasil. Como a aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai esbarrou inicialmente no dilema de se saber quem comandaria o conjunto das tropas, a vantagem inicial do Paraguai foi um tanto além do que se esperava, e assim, em caráter de urgência, em 1867 o Gabinete solicitou ao Marquês de Caxias que assumisse a liderança das forças: já famoso como comandante militar, era certo que resolveria a questão de forma mais rápida. Entretanto, um outro problema foi criado com isso e possuía uma natureza política: Caxias era um quadro nato do Partido Conservador e fora chamado por um gabinete liberal.

Em seu primeiro lance como comandante, o Marquês afirmou que, se tivesse o acréscimo de 10 mil homens nas tropas, mais suprimentos e munições, daria cabo da guerra em pouco tempo. Isto desaguou num aumento considerável nos pedidos de empréstimos do Brasil no exterior e a convocação maciça de homens para a guerra: ambas as medidas absolutamente antipáticas e perigosas.

Contudo, como os resultados esperados não ocorriam, as críticas paulatinamente foram surgindo: inicialmente, em jornais da corte; depois, em outros periódicos e, por fim, dos próprios ministros. Descontente com a situação, Caxias envia no primeiro semestre de 1868 um comunicado solicitando sua exoneração do comando, e a crise foi imediata. Brotara a dúvida se seria melhor – ou menos prejudicial – a demissão do militar ou queda do gabinete. Se a opção fosse a primeira, corria-se o risco do confronto com o Paraguai enveredar por um caminho sem fim; se a escolha fosse a segunda, desmoralizava-se um gabinete que, para o bem ou para o mal, representava a ascensão do movimento liberal (ainda que fragmentado) ao longo da década de 1860. Perante tal dilema, Pedro II solicita ao Conselho de Estado uma decisão. Em duas reuniões, o Conselho nada decide, sendo que, na última, o voto de Nabuco de Araújo provoca celeuma. Em seu parecer, o conselheiro afirma que a queda do gabinete é desacons elhável em virtude da crise política que poderia ser gerada com tal medida; contudo, também não concorda com a demissão de Caxias, ou antes, entende que a permanência de um ou outro seria gratuita[*20]. Por fim, o conselho adota uma solução tangencial: defenderia a permanência do Gabinete, muito mais por princípios do que por convicção, e sugeriria aos ministros um voto de confiança pública ao comandante das tropas.

Esta solução muito pouco agradou a Pedro II. Ainda que não tivesse apreendido a posição de Caxias como um ultimato ao Gabinete, percebera que, entre ficar com os princípios políticos e defender o comando do militar na Guerra, optaria pelo segundo, restando tão somente encontrar um motivo para determinar a queda de Zacarias. Para tanto, a eleição para a vaga de senador pela província do Rio Grande do Norte ofereceu o motivo. De acordo com a lei eleitoral do Império, os três candidatos mais votados formavam uma lista tríplice e a mesma era apresentada ao Imperador para que escolhesse um dos nomes e, com raras exceções, o escolhido era o mais votado. Entretanto, da lista tríplice apresentada neste caso, o Imperador escolheu o menos votado – membro do Partido Conservador. Zacarias recusa a indicação e cria as condições para que o monarca lance mão do Poder Moderador e, derrube a Câmara dos Deputados para impor o escolhido e, consequentemente, todo o Gabinete – coisa que efetivamente ele o fez.

Com isso, o rei estava nu. Toda a força investida nos termos constitucionais a Pedro II apresentava-se, agora, de maneira crua à política brasileira. A sensação era de que o monarca poderia doravante agir conforme seus ditames pessoais, e se não havia feito antes, era por motivos unicamente particulares. O país estaria, portanto, refém dos humores do Imperador. Configurava-se, plenamente, o labirinto.

De certa feita, o escritor argentino Jorge Luís Borges descreveu sua perplexidade perante o labirinto, pois, segundo ele, não havia nada mais assombroso do que a idéia de um edifício construído para que alguém se perca, “o símbolo inevitável da perplexidade”[*21]. E o “edifício político” do Brasil Império assemelhava-se, pelas condições apresentadas, ao labirinto borgiano. A crise de 1868 seria, num certo prisma, tão somente a conseqüência menos desejada de um modelo que se constituíra para produzir dilemas como este. Assim, não apenas a monarquia entraria em decadência, como também, todos os projetos políticos deveriam sofrer alguma espécie de reformulação – incluindo, aqui, o movimento republicano. Mas, isto é uma outra história.

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Bacharel em História pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Mestre e Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). Professor- pesquisador do UGB (Centro Universitário Geraldo Di Biase), da FACEV/FAA (Faculdade de Ciências Econômicas de Valença) e Avaliador de Cursos de Graduação do INEP (Instituto de Estudos e Pesquisas em Educação Anísio Teixeira). Autor, entre outros, dos livros Contos da Casa: a história e a história da Coleção Casa dos Contos )Brasília: Ministério da Fazenda, 1999) e Inventário da Correspondência de João Rodrigues de Macedo (Rio de Janeiro, Madri: Biblioteca Nacional, Fundaciòn Mapfre Tavera), além de artigos em periódicos científicos. e-mail: amjfs@yahoo.com.br
Joaquim Nabuco. Um Estadista do Império vol. I. Rio de Janeiro: Topbooks/Faculdade da Cidade, 1997 p. 440
Joaquim Nabuco. Um Estadista... vol. I p. 454
cf. “Programa do Partido Progressista”. In: Américo Brasiliense. Os Programas dos Partidos e o Segundo Império. Brasília, Rio de Janeiro: Senado Federal, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1979 p. 25 e ss.
Aureliano Cândido Tavares Bastos. “Memórias Políticas”. In: Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 4 de dezembro de 1925, folha 02. Divisão de Periódicos da Fundação Biblioteca Nacional, RJ, Rolo C PR.SPR 1(460)
José Murilo de Carvalho. A Construção da Ordem/Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 p. 206
cf. Sérgio Buarque de Holanda. História Gera da Civilização Brasileira Tomo II Vol. 5. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1997 p. 64
Sérgio Buarque de Holanda. História Geral... Tomo II Vol. 5 p. 65
A observação é de Lilia Moritz Schwarcz. As Barbas do Imperador. São Paulo: Cia das Letras, 1998 p. 295 e ss.
Sérgio Buarque de Holanda. História Geral... Tomo II Vol. 5 p. 68
cf. Sérgio Buarque de Holanda. História Geral... Tomo II vol. 5 p. 95 e ss.
Em tese, de acordo com a Constituição de 1824, o Conselho de Estado deveria abrandar a irresponsabilidade do Imperador, no sentido que em diversas situações, exceto na nomeação e demissão de ministros, o governante estaria sujeito à audiência desse órgão. Com isso, ainda que existisse o Poder Moderador, as ações do monarcas estariam limitadas, impedindo a existência de um modelo por completo despótico. Todavia, em muitos dos casos no Segundo Reinado, a atuação do Conselho ficou aquém do esperado, segundo os críticos à época.
cf. Raymundo Faoro. Os Donos do Poder 3ª edição. São Paulo: Globo, 2001 p. 505 e ss.
Parte dessa atrofia do Partido Conservador se deve também aos falecimentos em seqüência do Visconde de Uruguai (1866) e de Eusébio de Queiroz (1868).
Não se está, aqui, procurando criar nenhum anacronismo. Bem sabemos que os radicais surgiram na cena política apenas em 1869, após a queda do Gabinete Zacarias. Entretanto, pode-se defender que uma postura mais “radical” já existia antes do grupo assumir publicamente a prática. Assim como também, estamos reunindo neste mesmo grupo aqueles que se autodenominavam “Democráticos” com os “Herdeiros da Revolução de 1848”.
apud Sérgio Buarque de Holanda. História Geral... Tomo II vol. 5 p. 74
Raymundo Faoro. Os Donos... p. 383
Aureliano Cândido Tavares Bastos. “Câmara dos Deputados. Sessão de 9 de junho de 1868”. In: Discursos Parlamentares. Brasília: Senado Federal, 1975 p. 596 e 597
Aureliano Cândido Tavares Bastos. “Câmara dos Deputados. Sessão de 12 de maio de 1862”. In: Discursos... p. 68
Aureliano Cândido Tavares Bastos. "Câmara dos Deputados. Sessão de 17 de maio de 1862". In: Discursos... p.84
cf. Sérgio Buarque de Holanda. História Geral... Tomo II vol. 5 p. 103
Jorge Luís Borges. Borges Oral. Lisboa: Veja, s/d p. 67