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Artigo publicado na edição nº 30 de abril de 2008.
Quando o professor não tinha escola e a escola não tinha professor:
cotidiano das escolas joseenses no século XIX

Zuleika Stefânia Sabino Roque

É triste e desolador o espetáculo offerecido no cerne das escolas públicas desta cidade pela carência de mobília e mais utensílios próprios a estes estabelecimentos.[*1]

Na ata da Câmara Municipal, em sessão realizada em 12 de abril de 1824, na Villa de São José do Parahyba, houve o juramento da Carta Magna do Império, que “foi subscripta por 277 pessoas, sendo de salientar que 214 o fizeram de cruz”[*2]. O analfabetismo no Brasil era um grande problema a ser vencido.

A Lei Geral do Ensino determinava a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares populosos. Em janeiro de 1828, criou-se a primeira escola pública de São José, regida por Diogo de Araújo Ferraz, que já havia sido vereador e foi indicado por ser “homem sábio e dos de mais luzes destas paragens de São José”[*3]. Em 1829, o Mapa de Movimento elaborado pelo professor José Joaquim de Magalhães indicava a presença de 32 alunos matriculados, dos quais apenas 1 era do sexo feminino. No currículo estabelecido nesta época constava ler, escrever, fazer as quatro operações aritméticas com números quebrados, decimais e proporções. Também estava previsto o ensino de noções gerais de geometria prática, gramática da língua nacional, princípios da moral cristã e doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana. Para as crianças do sexo feminino, o ensino da matemática se restringia às quatro operações básicas e havia a inclusão de prendas domésticas.

O Governo Paulista em 1832, atendendo à Lei Geral do Ensino, estabeleceu o horário de aulas, dividindo-o em dois períodos de duas horas cada e previa castigos morais. Determinava ainda o envio de relatórios (Mapas de Movimento).[*4]

Mudanças de ordem política no Império refletiram na questão educacional. Após o Ato Adicional de 1834[*5], foram criadas as Assembléias Provinciais. São Paulo organizou seu primeiro censo geral e houve a criação de muitas Escolas de Primeiras Letras. A Villa de São José do Parahyba continuou com apenas uma escola.

Em 1851, mudanças na política da Província de São Paulo subdividiram o território paulista em 73 distritos[*6], tendo cada um deles um representante do Governo[*7], um da Igreja (vigário) e um do Município, que formavam juntos as Comissões Inspetoras. Essa lei que organizou a Instrução Pública refletiu de modo a sistematizar as escolas existentes e as que fossem criadas.

Um ano após essa reformulação, a Vila de São José ganhou dois professores, um para administrar a escola masculina e outra para a escola feminina, provavelmente leigos[*8]. Era um casal que chegou à cidade no ano de 1852; ambos já haviam regido escolas na Vila de Mogi, na Freguesia de São José do Paraitinga, estando os dois a serviço da Instrução Pública havia pelo menos dois anos.

No terceiro quartel do século XIX, segundo relatórios emitidos pelo Vigário, a única escola pública existente na Vila de São José possuía muitos alunos matriculados. A escola recebeu do Governo a mobília e os materiais escolares para o período de um ano[*9]

4 bancos de 20 palmos
8 bancos de 10 palmos
1 mesa de 5 palmos em quadra
1 cadeira sobre um estrado (para o Mestre)
8 mesas de 5 palmos de comprimento e 3 de largura
1 táboa de 4 palmos envernizado de preto (vulgarmente chamado lousa)
4 ½ resmas de papel almaço
450 penas
52 lápis
44 pautas
18 garrafas de tinta
25 pedras
8 réguas para cada mesa
exemplares de leitura em cartões
Catecismo

A rotina desta escola era dividida em dois períodos. No primeiro, as crianças entravam às 8 horas da manhã e iam com atividades até às 10h30m e aprendiam caligrafia. No período da tarde, as atividades começavam às 2 horas e se estendiam até as 4h30min, onde aprendiam algumas máximas e realizavam leituras de cartilhas e da doutrina cristã. A gramática não era ensinada pelo professor, devido à sua falta de formação, reconhecida por ele próprio conforme o relatório: “não ensino por não sabel-a perfeitamente, pois sou professor provizorio e não examinado para então ocupar a cadeira relacionada”[*10]. O método Lancaster, tão recomendado na época, favorecendo um ensino mútuo, era idealizado; mas, pela falta de material uniformizado, os professores ficavam impossibilitados de adotá-lo.

Originalmente, a escola e também casa do professor Escobar era bastante modesta, e a precariedade era descrita em seus relatórios, assim como as suas condições financeiras: “sou pobre e subzistome do mesquinho ordenado de professor”.[*11]

Sobre os alunos que freqüentavam a escola, de acordo com o Mapa de Movimento referente ao ano de 1852, estavam matriculados 60 alunos. O documento traz dados interessantes como a idade das crianças, a naturalidade, a filiação, a condição, a cor, a posição financeira e o número de faltas obtidas no referido ano. De acordo com essas informações, é possível traçar o perfil dessa escola, estando todas as crianças na condição de livres; apenas nove delas declaradas como pardas. Trinta e duas são classificadas como pobres e a maioria nascida em São José, sendo apenas uma estrangeira de Portugal e quatorze nascidas em outras cidades (todas do interior Paulista: Jacareí, São Carlos, São Paulo, Santa Branca e Paraibuna). O grupo era constituído por primos e irmãos, parentescos confirmados pelos sobrenomes existentes. Menos da metade dos alunos da escola eram reconhecidos pelo professor como pobres e a maioria das faltas existentes eram justamente desta parcela de alunos, assim como os desistentes faziam parte deste grupo. O volume de correspondências remetidas ao Governo solicitando material era grande e constante, pois a carência de materiais afetava as crianças da escola.

De início, os professores forneciam esse material por conta própria, mas a ameaça de “cortar” essa despesa foi uma constante em seus relatórios. Num dado momento tal promessa é de fato posta em prática pelo casal de professores da Vila e o número de crianças que deixam de freqüentar a escola é muito significativo. Os mapas de movimento seguem com ressalvas a essa falta de atenção das autoridades competentes.

Conforme o número de crianças aumentava, os materiais enviados, tornaram-se insuficientes e o professor alertava: “se a escola for interrompida não será minha culpa”[*12]. Em meio a essas correspondências que revelavam a pobreza dos alunos e professores, tomamos conhecimento inclusive de temporalidades diferentes no que concerne à escola daquele momento, ou seja, encontramos referências às férias escolares da Quaresma, na qual as crianças tinham aulas suspensas por cerca de quinze dias no período da Semana Santa e período que era marcado pelas procissões, missas e demais atividades promovidas pelo pároco.

Essa religiosidade presente dentro e fora da escola pode ser encontrada até mesmo nos Regulamentos das Aulas, os quais eram documentos emitidos pelos professores ao Inspetor Geral, em que deveriam constar o programa ensinado e a “liturgia” da escola. Até mesmo o pedido de licença para pagar promessas em Aparecida, Guaratinguetá, aparece em meio às correspondências emitidas pelos professores. Portanto a escola, se não vivia em função da Igreja, estava pelo menos lado a lado com ela. Até mesmo a maneira como os alunos deveriam se dirigir ao professor dentro e fora da escola, a obrigação de comparecer aos domingos na escola com a melhor roupa para irem juntos à missa, são algumas das revelações encontradas em meio a esses documentos.

Outra temporalidade mencionada na documentação diz respeito às estações do ano, o inverno e o verão alteravam a rotina escolar, o primeiro atrasava em meia hora as atividades da escola.

A disciplina era bastante rígida conforme os Regulamentos[*13] e para mantê-la os professores estavam autorizados a aplicar castigos. Na Escola Masculina fazia-se uso da palmatória e na Feminina, os castigos eram aplicados dobrando os afazeres. Em um de seus relatórios o Inspetor de Paróquia, referindo-se à Escola Feminina, relatou o seguinte: “até hoje não tem empregado a palmatória mesmo ao gênio pachorrento que tem”.[*14]

O ensino era pensado de acordo com o sexo das crianças e os regulamentos tratavam de esclarecer sobre a formação do bom cristão, que também seria excelente negociante para continuar o trabalho do pai. Para as meninas, a preocupação era a de formar excelentes mães e esposas que soubessem se comportar dentro e fora de casa. Os próprios pais enviavam as filhas para a escola e diziam o que queriam que lhes fosse ensinado. A disciplina “prendas domésticas” fazia parte da “grade curricular” da escola feminina.

O número de meninas que freqüentavam a escola era sensivelmente menor em relação à escola masculina. No ano de 1854, constava a matrícula de apenas 18, sendo que quatro delas não freqüentavam as aulas e uma havia sido expulsa pela professora “por ser-vos publicos que tinham comportamento immoral”.[*15]

A professora Josefina mostrava-se bastante indignada com a atitude dos pais que não enviavam suas meninas à escola: “querem ver suas filhas em brinquedos pelas ruas como moleques, do que mandarem receber o melhor dote que pode-se dar a uma filha: a educação”[*16]. O vigário, ao fazer referências à escola feminina, mencionava o aprendizado de costura, prendas próprias, reuniões, danças e maneiras de fazer visitas. Afirmava também que lá ganhavam merenda da professora e que muitas das alunas não desejavam voltar à casa paterna.[*17] Com tais exigências, cabia ao Vigário solicitar materiais próprios e decentes, pois as meninas com seus vestidos não podiam continuar sentadas em esteiras improvisadas, pelo desconforto e indecência da cena.[*18]

A adoção dos materiais pelos professores era reflexo do tipo de educação que ofereciam. A repulsa pelos periódicos era grande entre os primeiros professores joseenses. Os jornais eram vistos como perigos diante das mentes dos jovens “por levarem ao conhecimento dos alumnos as paixões púliticas”.[*19]

A fala dos professores culpava o Governo por não fornecer os subsídios necessários para que as escolas fossem mantidas e também sugeriam o estabelecimento do ensino obrigatório e a conscientização dos pais.

Gradualmente a questão da alimentação dos alunos começou a ser discutida. O turno até então era dobrado, constando de duas horas e meia pela manhã e o mesmo no período da tarde. Aliando o problema da distância da casa das crianças à escola, somada à falta de recursos, observou o professor: “muitos tomam só o café da manhã vem a aula e só almoçam das duas da tarde em diante! Alguns deles tem adoecido (...) cahio por falta de alimento no caminho”.[*20]

A escola era um local permeado também por tensões que muitas vezes eram resolvidas na paróquia ou nas praças públicas. As brigas entre os alunos colocavam os professores em situações complicadas. Quando não era pela falta de material ou pela distância da escola, os pais tiravam os filhos da escola pelos conflitos que ali aconteciam:

tendo resultado por isso alguns pais sem conhecimento ficarem contra o professor por não tolerar richas e turbulências entre os allunos tanto na aula como fora d’ella, alguns doas quaes tem tirado os filhos da aula.[*21]

Um caso interessante de “resistência” à escolarização, relatado pelo Professor Escobar, nos chamou atenção. O pai da criança quando indagado sobre o motivo pelo qual não estaria mandando seu filho à escola, surpreendeu e revoltou o professor, ao proferir as seguintes palavras: “não quero que meu filho saiba ler para que ele não sirva ao rei”.[*22]

As escolas particulares foram motivos de intensa disputa na pequena Vila de São José no final da década de 50 do século XIX, quando se deu início a uma série de pedidos de licença para abertura de escolas particulares. O primeiro deles era para uma escola masculina e o Vigário, responsável pela emissão dos atestados de capacidade, autorizou o pedido de João Evangelista do Carmo e Souza.

Acompanhando a trajetória desta escola, percebemos que um ano após sua abertura, funcionava com 16 alunos e já não era exclusivamente destinada aos meninos, como consta no relatório da Professora Josefina: “duas alumnas que sairão da minha escola”[*23]. Essa que parece ser uma simples informação rotineira em um relatório, já apresentava indícios das denúncias, envolvendo a única Escola Pública existente. Afirmações como as de que os alunos encontravam-se apertados, privados de aprender por pobreza ou por falta de acomodação, começaram a aparecer nos relatórios do Inspetor[*24]. Concomitantemente, pedidos de abertura de escolas particulares começaram a ser apresentados, algumas com proposta de funcionamento dentro de capelas, outras na residência de alguns moradores, como foram o caso respectivamente de João Pereira Bicudo e Antônio Joaquim de Sant’Ana. Algumas vezes, nesses trâmites, intermediários atuando como procuradores[*25] ou com suas cartas de recomendação, indicavam pessoas para exercer o magistério. Esse foi o caso de Dona Deolinda Maria de Andrade, que teve, além de sua conduta exemplar apontada como virtude, o fato de ser “viúva, maior de trinta, com filhos, pobre (...)”.[*26]

Um atestado emitido pelo Vigário bastava para que a aula particular fosse aberta, vez ou outra uma Banca Examinadora era convocada para atestar a capacidade dos candidatos à regência de Escolas Públicas. Constituía parte da prova conhecimentos da Doutrina Cristã, Leitura de manuscritos e de livros, Gramática, Definições de Aritmética e ditado com letras bastarda e cursiva. A formação dos professores leigos, quando avaliada, como no caso de Dona Deolinda, relatou que seus conhecimentos sobre as quatro operações eram sofríveis; em compensação, no quesito prendas domésticas, a candidata mostrou-se habilidosa na costura e em vários pontos de bordado. Esse primeiro “concurso” aprovou Caetano José de Souza e Deolinda Maria de Andrade para ocuparem as cadeiras de primeiras letras junto à Freguesia do Patrocínio.[*27]

A autorização de licença para ministrar aulas de latim foi apresentada por algumas pessoas como o Sr. Francisco de Paula Ribeiro.[*28] Alguns eram modestos em seus projetos, enquanto outros, como o Sr. Ovídio Borches, sinalizavam a pretensão de abrir uma escola secundária, e sua proposta era a de ensinar língua latina e francesa, além de aritmética e geografia para os alunos.

Mas como o número de alumnos que este município pode fornecer é muito limitado e por conseguinte pouco vantajoso, deseja mais acrescentar uma aula de ensino primário onde se aperfeiçoem os alumnos antes de passarem para o secundário.[*29]

Com quatro meses de existência, a escola de Borches contava com 12 alunos e 2 alunas, e seus planos não paravam por aí. Tratava-se da criação de um colégio, reunindo outras escolas particulares, mostrando-se assim um empreendedor da área do ensino:

requerendo como faço a V E.º a creação de um Collegio em lugar da aula, tenho junto com o Professor João Evangelista de Carmo e Souza, reunir os alumnos da sua aula primária a aceital-o como professor a desistir elle em favor de um moço habilitado que actualmente rege a mesma aula (...)[*30]

O movimento de migração dos alunos das escolas públicas, regidas pelo casal Escobar, foi se intensificando por vários fatores, entre eles a abertura de aulas particulares. Como vimos, a carência de materiais e a necessidade de trabalhar afastavam algumas crianças da escola, colocando-as em afazeres domésticos e colheitas. Outras razões, como boatos a respeito da conduta do professor, foram responsáveis por algazarras, e algumas inclusive culminaram em processos judiciais.

No Distrito do Buquira, a escola regida pelo Professor Manoel Antônio dos Santos Silva, ficou difamada, quando este, durante uma aula, foi “recrutado” por policiais e conduzido à Capital. Muitos pais começaram a ficar com medo de mandar seus filhos à escola. Reflexos puderam ser sentidos na Vila de São José a ponto do Professor Escobar remeter cinco cartas ao Distrito a fim de verificar a procedência dessas informações.

Em outro momento, um processo recaiu sobre o professor Escobar, depois que uma denúncia sobre a sua conduta abriu precedentes: uma avalanche que se arrastou por mais de um ano e culminou na remoção forçada do casal de professores e na redução drástica do número de alunos matriculados. No relatório de sua defesa, enviou um croqui de sua residência e relatou que, ao chegar na Vila de São José, na década de 1850, logo se espalhou sua fama de “adiantar bem os alunos”, o que começou a atrair, em sua modesta e pobre escola-casa, crianças das famílias mais abastadas: “vários meninos vêm para a minha casa, entre elles um netto do Barão de Santa Branca, enteado do Dr. Pereira Jorge, um filho do Dr. Daniel Augusto Machado”[*31]. Graças a esses e outros ilustres alunos, a escola do professor Escobar ganhou estrutura física. A escola “pública” nasceu dentro de um espaço “privado”:

não posso deixar de mencionar a ajuda do Dr Pereira Jorge, do Vigário e Inspetor, do Delegados João Honório Correa d’Abreu, do Subdelegado Francisco de Paula Diniz Galvão, dos Juizes de Paz, Tenente José Caetano de Mascarenhas Ferras, Fazendeiros Luciano José das Neves, Capitão Francisco Alves Fagundes, Capitão Manoel Joaquim d’Andrade, Major Luis Antônio da Silva Fidalgo, Victoriano José Leme e outros cidadãos para poder acabar minha caza com os commodos necessários para receber meninos morando comigo[*32]

Toda essa influência foi posta em cheque através da denúncia que apontava para a moral, os bons costumes e até mesmo a competência do professor para exercer o cargo. Uma outra face do professor Escobar é apontada na fala de Francisco Leite Machado, que se refere ao professor da seguinte maneira:

cuja conducta nada regula d’esde o principio tiveram muito tempo supportados porque pelo menos não se descuidava muito na instrucção intellectual dos meninos (...) tendo a classe pobre (bem numeroza) n’este município, o desprazer e sentimento de dó ao ver seus filhos sem princípios de leitura (...) expondo-os aos mâos exemplos (...)[*33]

O estopim da confusão em torno da escola/casa dos Escobar, deu-se por conta de uma relação extra-conjugal com uma mulata ex-escrava. O fato da criança gerada nessa relação freqüentar as aulas deixou perplexo o denunciante, que solicitou com urgência que o Inspetor Geral mandasse o Inspetor Paroquial averiguar o caso. O documento apresenta-se rico em detalhes que revelam o preconceito e a intolerância:

uma filha adultera na casa de sua mulher a qual não podendo tolerar tal infâmia obrigou a retirar esta prostituta de sua companhia (...) e seu honesto homem, digo, marido, continua finalmente a trazer o fruto d’esta segunda união de nossa espécie à sua casa (...) fazendo alarde da immoralidade (...) Será pois esta casa onde os homens honestos mandarão educar suas filhas em companhia d”esta criança, que para fazer numero de matricula, de nome e mais outro que faz muitos annos que já não estão na escola, e até algumas já casadas?[*34]

A denúncia segue, respingando inclusive sobre a esposa do professor, já que a escola feminina era apontada como uma “escola-fantasma”, atendendo somente às necessidades financeiras do casal, sendo um prejuízo aos cofres públicos: “onde se encontra a sua filha adultera, duas tuteladas de quem chupa os poucos bens e mais duas creanças de quatro annos, não tem de assistência quatro meninas, e nem terá no sucessivo anno”.[*35]

Embora o caráter do documento tenha tônica moral, outras denúncias com respeito às atividades extra-escolares do professor[*36], também estavam contidas no documento: “serve-se de todos os meios illicitos para conseguir seus fins e se alguns tem de fortuna tem adquirido estes mesmos provam de enganos e abusos da boa fé de pessoas idiotas que n’elle confião”.[*37]

Em resposta à denúncia quanto à sua conduta moral, nada mencionou de maneira direta, descrevendo que moravam em sua casa, que também era escola: “minha família: composta de 14 pessoas, minha mãe viúva e bastante idosa, uma irmã solteira, minha mulher, filha, sobrinhas e afilhadas xx”[*38]. Interpretou as críticas como mera perseguição por sua posição financeira e revelou mais um de seus negócios – hotelaria:

esta minha propriedade está dividida em 3 casas independentes e só comunicáveis pela rua ou pelos fundos (...) o que causa inveja de meus inimigos um pequeno jardim que não receio dizer ser o primeiro bem plantado que existe dentro da cidade (...) em março de 1866 foi que cedi a casa para estabelecerem-se o Hotel e desde esse tempo nunca me passou pela lembrança que isso incommodaria a meus desaffectos.[*39]

Croqui da casa-escola pública de São José dos Campos feito pelo professor Escobar

Portanto, da maneira como as informações se encontram nos documentos, a abertura do hotel era um fato, como dito na denúncia enviada à Inspetoria Geral. O resultado não poderia ser outro, a remoção que alimentou a “febre” de escolas particulares na cidade. A escola pública não se mostrava nada pública e a imagem do professor como empreendedor desagradava alguns grupos que faziam eco a essas críticas, travestidos e apoiados no discurso moralista e religioso.

Prova de que foram fortes os impactos dessas acusações, é que a escola pública da cidade (masculina e feminina) sob regência dos Escobar, somavam juntas no ano das denúncias, o total de 22 crianças. Enquanto que a escola particular do professor Evangelista funcionava com 21 alunos matriculados e o já mencionado Professor Borches, ensinava em sua escola, ao lado de sua esposa professora Etelvina Leite Borches, acolhendo os alunos que se afastaram da escola pública.[*40]

Aliviada, quase dois anos após o início da turbulência, a esposa do Professor Escobar desabafa:

no ano próximo passado não houve exame em minha escola talvez as intrigas que houveram foram para retirarem as meninas da escola; este ano pois estando tudo em paz, minhas alumnas se apresentaram (...) consta-me que fecharam as escolas particulares, e que os professores, marido e mulher servem particularmente em algumas casas.[*41]

Apesar das denúncias que recaíram sobre os regentes da escola pública, esta não foi fechada. Entre a Inspetoria Geral e a comunidade, havia a Inspetoria Paroquial, que avalizou o retorno dos Escobar e a manutenção da escola pública. O Vigário, em sua prestação de contas do ano de 1868, comunicou a inexistência de escolas particulares, e apresentou o total de 79 alunos matriculados, sendo 52 do sexo masculino e 27 do sexo feminino, afirmando que: “as escolas foram colocadas próximas da Igreja, todos os dias posso frequental-as, para melhorar é preciso o fornecimento de material aos pobres e mais mobília”.[*42]

No Mapa de Movimento do ano de 1878, percebemos o crescimento das atividades escolares no município, sendo 216 o total de matriculados, dos quais 148 eram do sexo masculino e 68 do sexo feminino, distribuídos na área central e na vila de Santa Cruz. Inclusive verificamos a existência da proposta de criação de aulas noturnas para crianças e adultos.[*43]

Enquanto as Províncias tentavam às suas próprias custas manter as cadeiras de primeiras letras, o ensino secundário era restrito, e a principal referência da época era o Colégio Pedro II. Outras iniciativas ficaram praticamente a cargo de ordens religiosas nas demais províncias, como observou Alessandra Schueller: as determinações legais acerca da educação pública, tomadas no coração do Império, eram progressivamente seguidas por outras regiões, com algumas variações e especificidades locais.

Em São José dos Campos, constatamos a existência de um ensino elementar, basicamente ler, escrever e contar. Uma prática do período era a admissão de preceptores para o ensino dos filhos das famílias mais abastadas: enquanto as classes privilegiadas mandavam seus filhos para Colégios e Liceus a escola pública e obrigatória era o espaço governamental destinado aos filhos das classes desfavorecidas. Foi instituída quando os professores foram convertidos em funcionários do Estado.

A indigência econômica daqueles que formavam a elite da cidade os impedia de arcar com as despesas de preceptores. Por isso, reivindicavam a escola para si, pois o professor era pago pelo Estado, podia instalar-se em qualquer lugar.

A escola pública joseense deste período era marcada pela precariedade; mesmo assim, o número de crianças que passavam por ela foi aumentando. Aqueles com melhores condições econômicas permaneciam mais tempo na escola. Mas, graças a essas “primeiras letras”, novos professores, leigos ou não, foram surgindo, assim como administradores de negócios, dinamizando a pacata São José, iniciando as atividades da imprensa, ocupando cargos públicos, enfim, marcando a transição de uma sociedade – onde pelo menos para os mais ricos ou aqueles cuja sorte permitia – engrossar o tímido exército dos letrados, da sociedade recém saída da escravidão. No ano da abolição da escravatura, São José dos Campos possuía mais de uma dezena de professores espalhados pelos seus bairros, vilas e distritos.

Bibliografia:

CALDEIRA, João Netto. Álbum de São José dos Campos. SP: Cruzeiro do Sul/ Gráfica Paulista. SP: 1934.
SCHUELLER, Alessandra F. Martinez. Crianças e escolas na passagem do Império para a República. In: Revista Brasileira de História. ANPUH SP: Humanistas Publicações, vol 19 n. 37, 1999.
MENEZES, Maria Cristina. A origem peculiar da Escola Brasileira. DM PUC-SP 1994.
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Bacharel em História pela Universidade do Vale do Paraíba (2001); Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007), Doutoranda em História Social pela PUC/SP. Atualmente pertence ao Quadro Efetivo da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e desenvolve pesquisas sobre as políticas públicas de Educação e Saúde nos anos finais do Império e primeira metade do século XX. É membro do Núcleo de Estudos Culturais Histórias, Memórias e Perspectivas do Presente (PUC/SP).
Conselho Municipal de Instrução Pública à Diretoria Geral em 15/01/1890 – APESP.
CALDEIRA : 1934, p. 72.
Idem, p. 73.
MARCÍLIO, p.59
A reforma na Constituição de 1824 ficou conhecida como Ato Adicional, pode ser sintetizada em uma tentativa de harmonizar as diversas forças em conflito no país na época. Estabeleceu uma regência uma e houve um avanço liberal na política brasileira.
A Vila de São José dos Parahyba pertencia ao 11º Distrito, de acordo com referência em manuscrito de 14/01/1852.
O Inspetor Geral da Instrução Pública da década de 1850 foi Diogo Mendonça, a partir de 1852 esse cargo foi ocupado por Joaquim Francisco de Moura.
Conforme correspondência, Francisco Escobar era Professor Provisório e passou a ser “Vitalício” com a emissão de um atestado do Inspetor de Distrito que reconhecia que o referido professor não possuía o grau de formação exigido. R.I.D de 08/1853. APESP.
O recibo de outubro de 1852 confirma esse envio de material, referenciado conforme a gramática atual para facilitar o entendimento deste manuscrito pelo leitor. APESP.
Relatório de Francisco Ribeiro d’Escobar – Professor da Cadeira de Primeiras Letras do sexo masculino da Vila de São José. Manuscrito datado do ano de 1852. APESP.
Idem.
Relatório de Março de 1853. APESP.
Os Regulamentos das Escolas regidas pelo Professor José Gonçalves de Moura Guimarães e Francisco Ribeiro d’Escobar encontram-se no APESP.
Relatório do Vigário Jacintho Manoel de Andrade 02/10/1855.
Relatório da Professora Josefina Cathaló d’Escobar 22/10/1854.
Idem.
Relatório do Vigário Jacintho Manoel de Andrade 02/10/1855.
Relatório da Professora Josefina Cathaló d ‘Escobar 02/08/1855.
Relatório do Vigário e Inspetor Municipal Jacintho Manuel de Andrade – 22/1/10/1854. APESP
Relatório do Professor Francisco Escobar. 01/10/1869.
Idem.
Relatório do Professor Escobar de 15/10/1855.
Relatório da Professora Josefina Cathaló d’Escobar. 05/10/1859.
Relatório do Vigário Jacintho. 28/06/1859
Francisco dos Anjos Gaia atuou como procurados de Joaquim Sant’Anna. 04/02/1863. A Família “Anjos Gaia” continuará como protagonista nas questões relacionadas à Educação até meados do século de XX gozando de concessões de cargos públicos durante um bom tempo, até pelo menos a década de 20, quando por quirelas com o Coronel e Prefeito da época sofre punições por questões políticas.
Correspondência de 01/12/1863.
Correspondência de 18/07/1861. Vigário e Inspetor Jacintho Manoel de Andrade.
Correspondência de 07/04/1864.
Correspondência de José Ovídio Borches. Agosto de 1864.
Requerimento de José Ovídio Borches de 08/11/1864.
Relatório de Francisco Ribeiro d ‘Escobar. 01/10/1858.
Idem.
Correspondência (Denúncia) de Francisco Leite Machado 01/02/1866). APESP.
Idem.
Idem.
Observamos que além de comerciante, Escobar era também escrivão do Juizado de Paz do Município. No início de sua múltipla carreira exonerou-se do cargo de Fiscal da Câmara por ter sido multado pelo acúmulo ilegal de cargo. Na ocasião alegou ignorância diante dos fatos justificando-se: “que não havia crime sem intenção de o praticar” (Correspondência à Inspetoria Geral em 22/05/1855). Num intervalo de pouco mais de dez anos, identificamos o Professor da Cadeira de Primeiras Letras em quatro atividades diferentes além do magistério, uma dessas atividades era um hotel que funcionava em sua residência/escola.
Idem.
Idem.
Idem.
Relatório do Inspetor Jacintho Manoel de Andrade. 08/10/1867.
Relatório da Professora Josefina Cathaló d’Escobar. 12/10/1868.
Relatório do Inspetor Pe Jacintho Manoel de Andrade. 01/10/1868
O Programa da Escola Noturna encontra-se na Caixa de Correspondências manuscritos APESP.

Croqui da casa-escola pública de São José dos Campos feito pelo professor Escobar.
APESP – Manuscritos Instrução Pública.
Correspondência (Denúncia) de Francisco Leite Machado 01/02/1866.