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Artigo publicado na edição nº 30 de abril de 2008.
A estratégia integralista oculta na crítica ao comunismo:
uma análise do semanário “o eco” na Segunda Guerra Mundial

Marcos Paulo da Silva

Introdução

O ano de 1941 foi essencial para o envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial. É neste período que Brasil e Estados Unidos fortalecem seus vínculos, sobretudo de cooperação econômica, como jamais haviam feito, demonstrando uma mudança decisiva na posição brasileira em face da guerra. No plano internacional, com a ofensiva alemã sobre a URSS, ocorrem os primeiros sinais de alinhamento entre soviéticos e ingleses na luta contra os países do “Eixo”. Neste contexto, marcado pelos acordos bilaterais do Brasil com os norte-americanos e pelos reflexos da aproximação dos russos com o ocidente, as notícias da guerra chegam ao país, ganhando também as páginas dos veículos do interior.

O presente artigo, que integra uma pesquisa mais ampla, tem como proposta debater as representações criadas neste período ao redor do imaginário do comunismo por um jornal interiorano paulista e confrontá-las, por meio da análise, com as estratégias do movimento integralista. Trata-se do caso do semanário O Eco, fundado em 1938, na região de Lençóis Paulista (cidade localizada a 300 quilômetros a oeste de São Paulo). O que chama a atenção na trajetória do semanário é sua ligação, via seu principal interlocutor, o jornalista Alexandre Chitto, com a colônia italiana local.

Neste sentido, pretende-se inicialmente contextualizar o jornal O Eco, focando suas características enquanto veículo de comunicação local e seu vínculo com o ambiente político do período. Num segundo momento, são avaliados os editoriais de capa que tratam da Segunda Guerra Mundial com foco no avanço do comunismo. Ao final, averigua-se a hipótese de um possível alinhamento entre o discurso do semanário e a estratégia do movimento integralista de embate aos comunistas.

O Eco: espaço de representação

O Eco, inicialmente chamado de E’cho, nasceu em um ambiente de relativa descrença com o jornalismo local na região de Lençóis Paulista. O semanário foi fundado em 6 de fevereiro de 1938 pelo jornalista Alexandre Chitto, o secretário Vicente de Paula Ferraz e o professor Alcides Ferrari, este último desligado do veículo antes mesmo da circulação da primeira edição. Apesar do envolvimento dos três colaboradores na fundação do jornal, foi Alexandre Chitto que ocupou desde o início o cargo de diretor do veículo, constituindo-se como o grande responsável pelos rumos do noticiário. Antes de sua fundação, todos os outros jornais que o antecederam na região de Lençóis Paulista tiveram duração máxima de um ano.

De modo geral, o semanário O Eco se manteve nos primeiros anos de atuação dentro das características do jornalismo local (Bueno, 1977; Lopes, 1998). Composto e impresso em tipografia própria, de maneira semi-artesanal, com uso de tipos e clichês, o jornal circulou ininterruptamente nos anos iniciais com edições que variavam de quatro a seis páginas. Neste período, com tiragem aproximada de 100 exemplares, o jornal conjugava em suas páginas notas informativas sobre os acontecimentos da cidade (alistamento militar, datas festivas, falecimentos, esportes, entre outros assuntos), notas sociais (núpcias, aniversários e festas), reproduções de poesias e outros textos assinados, editais oficiais e publicidade. Devido ao modo de composição das páginas na tipografia, o semanário não mantinha critérios estabelecidos de diagramação – característica comum a outras publicações jornalísticas do período. Desta forma, os poucos elementos com lugar fixo nas páginas eram a logomarca e o editorial, ambos ocupando sempre a primeira página.

Como todo veículo de comunicação que se articula como um espaço privilegiado de representações, o jornal O Eco desde o início de sua circulação também construiu identidades. Uma idéia propagada desde o editorial de estréia é a de isenção, com o semanário se auto-intitulando livre de vínculos políticos, religiosos ou ideológicos. No entanto, tomando como pressuposto básico a superação do paradigma da imparcialidade no jornalismo (idéia sustentada por muito tempo pelos manuais de redação), um olhar mais apurado às páginas do semanário O Eco torna clara a rede de vínculos sob a qual o veículo foi tecido desde o começo.

Diretor desde seu início e voz predominante nos destinos e na linha editorial do semanário, o jornalista Alexandre Chitto, assim como sua família, teve em sua trajetória de vida uma relação muito peculiar com a Itália. O percurso da família Chitto, com descendência em Lençóis Paulista, tem início em 1872, em Isola Dovarese, na província italiana de Cremona. Em 24 de novembro daquele ano, filho de César Chitto e de Anunciata Chitto, nascia Mauro Chitto, patriarca da família que anos depois teria influência no comércio, na política e na comunicação de Lençóis Paulista. Aos 15 anos, Mauro ingressou no serviço de telégrafo italiano e, aos 18, foi convocado para o exército, onde chegou à patente de sargento. Na última década do século 19, serviu na África Oriental, que a Itália tentava então colonizar.

Passada a guerra, condecorado pelos serviços militares, decidiu se mudar para a América. Escolhendo o Brasil como destino, viajou junto de um primo, deixando a família na Itália. Na época, Lençóis Paulista já possuía uma considerável colônia italiana, sobretudo das regiões de Treviso e Cremona. Em Lençóis, Mauro Chitto conheceu Santina Lazzari, uma imigrante da mesma cidade italiana da qual ele partira. Com ela se casou, fixando residência em um bairro rural formado essencialmente por imigrantes italianos, onde teve seus três primeiros filhos – entre eles, Alexandre Chitto.

Com o passar dos anos e a entrada dos filhos na adolescência, Mauro Chitto resolveu voltar definitivamente com a família para a Europa. Mas a Primeira Guerra Mundial, que eclodiu na Europa em 1914, influenciou a trajetória da família. Preocupada com uma possível convocação dos filhos adolescentes, Santina Lazzari teria convencido Mauro a voltar com a família ao Brasil. Os Chitto retornaram a Lençóis Paulista e passaram a residir no núcleo urbano da cidade, iniciando um representativo papel na comunidade local. Engajado na política da localidade, Mauro Chitto assumiu a presidência da Sociedade Italiana de Mutuo Socorso Stella D’Itália, criada no município pela colônia italiana como forma de mútua assistência aos estrangeiros e descendentes.

O Eco e integralismo: interfaces

As sociedades italianas foram no início do último século, ao lado das escolas e da imprensa, importantes instrumentos de propagação da cultura imigrante no Brasil, sobretudo no interior paulista. Conforme aponta Seitenfus (2003, p.43), a atuação das chamadas sociedades italianas, em geral, não conduziam a ações antibrasileiras. A propaganda ideológica empregava, sobretudo, instrumentos tradicionais, como conferências, bolsas de estudos a jovens brasileiros e a propagação das realizações fascistas por meio de publicações oficiais.

Por outro lado, registros do Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) levantados por Brusantin (2003) revelam que, antes de deflagrada a Segunda Guerra Mundial, as autoridades policiais identificaram pontos de encontro clandestinos de adeptos do Integralismo*1 camuflados pelo interior paulista. Em Bauru, cidade localizada a 60 quilômetros de Lençóis Paulista, por exemplo, há registro de uma Casa de Representações e Importações que armazenava armas para os integralistas distribuírem pelas cidades do interior. Em Lins, também no centro-oeste paulista, a polícia política registrou reuniões integralistas na sede da Congregação Mariana local. Em Rio Claro, a ação clandestina dos representantes do Integralismo foi identificada na Sociedade Italiana Fascista.

Com base nestes registros é possível afirmarmos que o Integralismo recebia apoio de diversos segmentos sociais, ainda que na ilegalidade. As idéias do Sigma facilitavam, até por uma questão de identidade ideológica, a colaboração entre distintos segmentos da extrema direita católica e fascista. Esse fato abre evidência das bases sociais de apoio ao movimento integralista, que manteve suas forças mesmo após a repressão pública do governo Vargas. (BRUSANTIN, 2003, p.87).

Não há registros identificados no Deops de ligação direta da Sociedade Italiana de Mutuo Socorso Stella D’Itália, de Lençóis Paulista, com o Integralismo ou com o fascismo italiano. Contudo, a Sociedade que durante um longo período de tempo foi o único clube da cidade, teve seus bens confiscados e foi fechada, a exemplo de outros centros de propagação da cultura italiana, exatamente após a tomada de posição do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Foi neste período, marcado pelos anos de 1942 e 1943, que Vargas foi pressionado a assumir sua posição contrária ao nazi-fascismo, mudando o caráter da perseguição aos integralistas enquanto inimigos do Estado.

Brusantin (2003) chama a atenção para a presença evidente de integralistas nas cidades do interior paulista. Conforme aponta a autora, o tom dado pela polícia política de Vargas em relação aos integralistas tangencia mais a “manutenção da ordem pública” do que de repressão propriamente dita. Pelo lado dos adeptos do Integralismo destacava-se a estratégia de ataque aos comunistas. “A ação propagandista (do Integralismo) era dupla, pois visava a divulgação das idéias do partido e o combate ao inimigo, fatos evidentes entre 1935 e 1938” (Brusantin, 2003, p. 83). Outro fato de destaque no período era o apoio dado aos integralistas pela imprensa nas cidades do interior, que muitas vezes funcionava para que o ideário do grupo se tornasse público. Brusantin afirma que a propaganda dos seguidores do Integralismo era garantida pelo apoio da imprensa local, facilitando o programa de doutrinação.

Em 1935, no auge do conflito entre esquerda e extrema direita brasileiro, o Integralismo, ainda que agindo legalmente, se utilizava da imprensa local para “construir” a imagem do mal dos movimentos aliancistas. Em nome de uma “encantadora” cidade paulista, o Sigma, articulado com os núcleos das AIBs regionais, propagava seus ideais anticomunistas. Fato esse que reafirma o cenário de conflitos político-ideológicos antes da decretação do Estado Novo.(BRUSANTIN, 2003, p.85, grifo da autora).

Embora não haja registros aparentes de apoio ao Integralismo ou ao fascismo italiano por parte do semanário O Eco, fundado em 1938, já sob a vigência do Estado Novo, algumas relações que envolvem o veículo e a Itália fascista devem ser consideradas. Parte dessas relações recai sobre a figura do patriarca da família Chitto, o italiano Mauro Chitto. Além de presidente da Sociedade Italiana de Mutuo Socorso Stella D’Itália, fechada e com seus bens confiscados após a tomada de posição do Brasil contrária aos países do “Eixo” na Segunda Guerra Mundial, Mauro Chitto foi ainda Representante Consular Italiano na cidade e vice-prefeito, eleito em 1922, ocupando o cargo de chefe do Executivo por quase um ano em substituição ao então prefeito Elias Rocha. Neste período, em 1924, recepcionou na cidade o General Pietro Badoglio, representante oficial de Benito Mussolini em visita ao Estado de São Paulo.

Segundo filho de Mauro Chitto, o jornalista Alexandre Chitto também manteve durante sua vida uma relação muito próxima com a Itália. Alexandre nasceu em fevereiro de 1901 no bairro italiano da Rocinha, em Lençóis Paulista, onde passou a infância e parte da adolescência. O jornalista não defendia explicitamente nas páginas de seu semanário nenhuma doutrina política que se opusesse ou contrariasse o Estado Novo de Getúlio Vargas, posição entendível quando considerado o fato de O Eco ter nascido já sob regime de censura. Contudo, ao abordar determinados assuntos e se calar perante outros, o veículo transparecia seu posicionamento – desde sempre velado.

Em uma homenagem póstuma a Virgílio Capoani, prefeito de Lençóis Paulista entre 1952 e 1954, publicada em uma edição comemorativa do semanário em 1972, Chitto ressalta a atuação do político – descendente de uma tradicional família imigrante – no Integralismo:

O sr. Virgílio Capoani, fazia parte da firma comercial Zillo Capoani Ltda. Na política fez parte do Integralismo, manifestando ardente inimigo do Comunismo. Como simples soldado conseguiu reunir um grupo de 400 integrais no Município. No governo do sr. Getúlio Vargas, tendo-se extinto o Integralismo, o sr. Virgílio Capoani ingressou no Partido Social Progressista, no qual ocupava elevado posto no Diretório Local. Candidatou-se à vereança pela legenda do PSP e foi eleito vereador, com larga margem de votos, no período de 1948 a 1951. Na eleição seguinte, o PSP elegeu-o prefeito municipal, orientando magistralmente os destinos de Lençóis Paulista de 1952 a 1954. (CHITTO, 1972, p.153).

O trecho evidencia alguns pontos importantes sobre a política local. Primeiramente, a atuação de um representativo número de lençoenses junto ao movimento integralista. Em seguida, ilustra a admiração de Chitto pelo desempenho político de Capoani. O fato de o jornalista ter colocado o ex-prefeito no posto de “ardente inimigo do comunismo” também deixa transparecer um posicionamento bastante evidente do semanário O Eco durante os anos que compreenderam a Segunda Guerra Mundial. Se, por um lado, o jornal nunca se posicionou claramente ao lado do fascismo italiano ou da AIB, por outro, usou de estratégia semelhante aos integralistas para desqualificar o comunismo, colaborando para a construção de uma imagem “do mal” da doutrina, sobretudo antes da tomada de posição do Brasil na guerra.

No âmbito local, a presença de comunistas sempre foi tratada de maneira silenciosa. Uma importante passagem na história de Lençóis Paulista que não mereceu destaque nas páginas do semanário O Eco é a perseguição feita pela polícia política de Vargas a um grupo de moradores da cidade considerados simpatizantes do comunismo. Tal perseguição se tornaria ainda mais oculta se não fosse a abertura dos arquivos do Deops referentes ao período do Estado Novo.

Em nenhum momento durante todo o transcorrer da Segunda Guerra Mundial, porém, o semanário O Eco reservou editoriais para tratar de informações sobre tais ocorridos. Muito se deve, evidentemente, à atuação da censura, que coibia o tratamento de assuntos que envolviam o comunismo no âmbito local. Por outro lado, a figura do vigário Salústio Rodrigues Machado, registrado no Deops sob o pseudônimo de João Brasil por delatar um suposto comunista da cidade, sempre figurou entre os personagens de destaque nas páginas do jornal. Nome de uma das principais avenidas de Lençóis Paulista, o vigário, como representante da classe religiosa local, teve embates com os supostos comunistas, entregando-os à polícia (Brusantin, 2003, p.50). Nos textos de Chitto, no entanto, Padre Salústio Rodrigues Machado era comumente retratado como um exemplo de dedicação às causas do município, conforme ilustra o trecho a seguir:

A 1º de janeiro de 1939, Padre Salústio Rodrigues Machado assumia a Paróquia de Lençóis Paulista, até findar sua existência. Pelo espaço de 16 anos, o Padre Salústio exerceu grande atividade, destacando-se não somente na religião, mas em todos os setores da nossa cidade. (...) O Padre Salústio Rodrigues Machado batalhou em prol da assistência, da instrução e da grandeza de Lençóis Paulista. Contribuiu fortemente pela emancipação jurídica lençoense, a criação da comarca. (CHITTO, 1972, p. 153).

Desta forma, dada trajetória pessoal e profissional de Alexandre Chitto, não deve ser descartada a proximidade entre o jornalista e a Itália e o relacionamento que manteve enquanto agente da imprensa local com personagens da política lençoense. Tais relações podem ser analisadas sob o ponto de vista das condições de produção*2 dos textos – ou contexto em que os textos foram produzidos, prática que assegura maior segurança à análise.

O enigma de Moscou: a crítica ao comunismo nas páginas do semanário

Entre os 14 editoriais de capa publicados pelo semanário O Eco entre janeiro e dezembro de 1941 tratando da Segunda Guerra Mundial, seis deles fazem críticas diretas ao comunismo ou demonstram apreensão com o avanço dos adeptos da doutrina. São eles:

Quadro 1 – Editoriais de capa publicados no jornal O Eco, em 1941, abordando o avanço do comunismo na Segunda Guerra Mundial (títulos com grafia original)

Ao abordar o comunismo, o jornalista Alexandre Chitto utiliza de diferentes recursos argumentativos, variando da ironia às críticas ríspidas. Em todos os casos, porém, os textos traduzem o clima de especulação sobre o envolvimento militar da URSS na Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, sobre um possível avanço dos comunistas frente aos demais países. Para o semanário O Eco, os brasileiros (que assistem de longe a “guerra de manchetes e notícias”) têm um motivo claro de preocupação com a possibilidade da entrada em guerra dos russos: o avanço do comunismo sobre os países não-europeus.

Outro elemento que chama a atenção no período é o fato de 1941 ser um ano marcado pela aproximação entre Brasil e Estados Unidos, resultando no fortalecimento dos vínculos entre os dois países e no distanciamento diplomático entre os brasileiros e a Alemanha nazista. Para Seitenfus (2003), a despeito da falta de tato manifestada pelo seu Departamento de Estado, os Estados Unidos caracterizaram-se durante a Segunda Guerra Mundial pela coerência política no que diz respeito à diplomacia, designando com clareza desde o início seu adversário no conflito: o nazi-fascismo. “A partir daí, toda a estratégia de aproximação com a América Latina, em geral, e com o Brasil, em particular, obedece apenas ao escopo de resguardar o Novo Mundo do perigo totalitário” (Seitenfus, 2003, p.307). No âmbito local, entretanto, o inimigo que merece destaque sob a ótica do semanário O Eco é o comunismo.

Mesmo antes da ofensiva nazista sobre os soviéticos (que se deu em junho de 1941), o jornal já publicara editoriais com críticas aos comunistas. Mas, vale destacar, o maior reflexo nas páginas do veículo ocorre mesmo após a consumação do ataque alemão à URSS, fator que incrementa ainda mais as negociações para cooperação de guerra entre soviéticos e países aliados. As influências da aproximação diplomática despontam no jornal em 20 de julho, poucas semanas após o início da ofensiva. O editorial “Efeitos de uma aliança militar” faz críticas incisivas ao comunismo e mostra preocupação com os acordos militares entre russos e ingleses:

Quando o credo moscovita, entre nós, tinha ampla liberdade de difundir idéias, saturando de teorias o pensamento da juventude, não deixou de haver ousados afirmando que o comunismo russo é a consumação inicial dos princípios deixados por Christo sobre a terra. Esta, já vamos dizendo, era a arma perigosa com a qual os oportunistas vermelhos ludibriavam a bôa fé, arregimentando partidários inconscientes do caminho que estavam sendo arrastados. Comparar, em principio, as teorias de Christo com as de Moscou? Que absurdo, que pequenez d’alma, que incompreensão filosófica e moral, que perversidade trazer os preceitos Christo e de Stalin em pé de igualdade. (...) Passou-se o tempo. E as circunstancias da guerra obrigaram, agora, a Inglaterra a uma aliança militar com a Rússia. O que dirão com esse acordo, os anglilofilos? Continuarão combatendo o comunismo ou passarão a defende-lo? Ou usarão aquela celebre expressão desculpatoria quando se lhes pergunta da guerra teuta-russa: “Vença quem vencer, para mim é indeferente”. Cuidado! As teorias de Moscou são as mesmas após a aliança militar com a Grã-Bretanha. Cuidado! Vencendo Stalin, depois não poupará nem mesmo o desejo dos seus simpatizantes e aliados.*3

Nota-se no trecho a adoção de um discurso simplista e mitificador ao apontar um dualismo entre os ditos defensores do bem e os defensores do mal. Tal recurso argumentativo vai ao encontro do que Kellner (2004) considera o discurso duplo orwelliano, que opõe dois lados de maneira não crítica.

O dualismo também está presente na relação que o veículo procura fazer entre o comunismo e o catolicismo. O editorial apresenta exemplos claros do esforço argumentativo desempenhado pelo jornalista Alexandre Chitto para opô-los. Neste mesmo sentido, chega às ruas de Lençóis Paulista no dia 19 de outubro de 1941 o editorial “Os católicos e o comunismo”. O texto, conforme demonstra o trecho a seguir, trata especificamente do posicionamento contrário dos católicos norte-americanos a uma possível aliança do país com a URRS:

De fato, ainda que o Sr. Roosevelt tenha razões de sóbra prestando socorros ao bolchevismo, a pretesto de que seu gesto só seria auxilio á Russia para salvaguardar as democracias e não defesa do comunismo, os católicos norte-americanos sentir-se-iam espiritualmente derrotados cooperando com o governo do seu país, levando armas e munições aos vermelhos russos. Os episódios históricos do bolchevismo estão repletos de passagens o que foi a luta dos comunistas contra a Igreja e contra todos os preceitos religiosos e espirituais. A bolchevisação da Russia foi um verdadeiro desastre para o catolicismo. Foram os comunistas que destruíram e incendiaram 22.000 Igrejas, transformando outras 8.000 em fábricas de “Wodka”, estribarias, casas de profanações e armazens. Foram os comunistas que, na Russia e na Espanha vermelha, profanaram conventos, depredaram imagens, assassinaram freiras e padres, submetendo-os antes a tristes e repugnantes torturas. Foram eles que desmantelaram os alicérces do lar, destruindo o sentimento santo e nobre entre progenitores e filhos.*4

Nota-se a tendência de considerar a Rússia um enigma, observando seu crescimento com apreensão. Os argumentos utilizados no convencimento do leitor – uma extensa lista de “pecados” contra o comunismo – são evidentes. É importante ressaltar que na época Lençóis Paulista se caracterizava como um município de forte tradição católica e pouco populoso (aproximadamente 14 mil habitantes, segundo o censo de 1940), apesar das grandes proporções territoriais.

Outro fator de que deve ser considerado na análise é a utilização de editoriais com conteúdos normativos. Segundo Luiz Beltrão (1980), os editoriais normativos são aqueles que “intentam convencer o leitor a atuar em determinado sentido, inspirando-o, encorajando-o, exortando-o por meio de sentenças e argumentos lógicos e incitadores” (Beltrão, 1980, p.57). Desta forma, ao abordar o conflito sob o ponto de vista local, o semanário dirige-se ao leitor com estratégias argumentativas que visam o convencimento. Apesar de não deixar claro seu posicionamento ideológico em relação à guerra, o jornal procura, via de regra, orientar seus leitores a atuar em um determinado sentido.

Qual seria, então, este sentido que cabe à análise desvendar? Em um primeiro nível, como é evidente, o jornal volta sua argumentação em oposição ao comunismo. A análise de conteúdo, no entanto, exige uma interpretação mais aprofundada na busca pelo sentido não-aparente retido nos editoriais. Ao tratar do comunismo, mesmo adotando uma posição crítica bastante delineada, o semanário O Eco não deixa de se ocultar frente ao principal problema (e gênese) da guerra: o avanço do nazi-fascismo. Mas, apesar do ocultamento, ao abordar determinados assuntos e se calar perante outros, o veículo deixa transparecer sua estratégia: adotando a temática do comunismo, opta por não tomar um partido definido no conflito.

Alguns pontos justificam tal opção. Em primeiro lugar, há o fato de o veículo ter no ocultamento de suas posições ideológicas um considerável subsídio para sobreviver no jogo de interesses que caracterizava o período (vale lembrar que os jornais que o antecederam na região de Lençóis Paulista não sobreviveram às primeiras edições). Em seguida deve ser levada em conta a atuação da censura do regime varguista (sob vigilância, os jornalistas contavam com um representativo obstáculo para delinear claramente seus posicionamentos na época).

Contudo, o relacionamento do jornalista Alexandre Chitto com personagens do contexto político local, bem como as demais condições de produção dos textos, dão respostas mais interessantes à pesquisa. Para Kellner (2001, p.149), são as exclusões e os silêncios que podem revelar à análise o projeto ideológico de um texto midiático. Desta forma, nota-se que a tônica anticomunista no conteúdo dos editoriais do O Eco nesta etapa da cobertura da Segunda Guerra Mundial assemelha-se do discurso movimento integralista. Conforme aponta Marilena Chauí (1978), a posição bem definida de contrariedade ao comunismo é um aspecto dos integralistas que não pode ser ignorado:

À primeira vista, esse aspecto pode ser tido como decorrência do caráter mimético da AIB face aos fascismos europeus, ou, ainda, como decorrência do espiritualismo católico do Chefe (Plínio Salgado) que, naquela carta (enviada em 2 de janeiro de 31 a Augusto Schmidt), afirma que haverá dois blocos opostos: “por Deus e contra Deus”. Se o lema “Deus, Pátria e Família” alimenta o catolicismo dos militantes e explica seu moralismo na crítica da democracia liberal que destrói os valores sagrados, esse lema também sustenta a atitude anticomunista, na medida em que marxismo, socialismo, bolchevismo e comunismo, sendo “materialistas”, são ateus, internacionalistas e destruidores do núcleo familiar. (CHAUÍ, 1978, p.76).

No caso do semanário O Eco, embora não haja um posicionamento delineado do veículo sobre o nazi-fascismo, tampouco sobre o integralismo, a categorização do comunismo como temática e a proximidade argumentativa entre os discursos do jornal e do movimento, apontam que nesta fase da cobertura da guerra houve um alinhamento entre o conteúdo dos editoriais e as estratégias da AIB. Não se trata de afirmar categoricamente se o jornal é ou não integralista, mas de reconhecer a proximidade argumentativa entre as propostas ante ao comunismo, ideário que se alinha também ao discurso da direita católica do período.

Portanto, é na interpretação de alguns dos principais episódios da Segunda Guerra Mundial (como a aproximação entre a URSS e os aliados) e em suas inúmeras correlações que os textos de Alexandre Chitto revelam – muitas vezes nas entrelinhas – as controvérsias que no âmbito local atingiam os projetos de uma classe média imigrante que sonhava com o progresso e temia o comunismo.

Bibliografia:

Referências bibliográficas

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Jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Bauru-SP. E-mail: silva_mp@uol.com.br
Movimento político com atuação no Brasil na década de 1930, o Integralismo, moldado sobre o fascismo, com adaptações nacionais, expande-se em nível nacional, colhendo a herança abandonada da direita nacionalista da década de 1920 (Faoro, 2001, p.783). Formatado sobretudo na AIB (Ação Integralista Brasileira), que enquanto organização política tem uma trajetória breve (iniciada em 1932 e extinguida em 1937, com a proibição da existência de partidos no Brasil).
Termo utilizado por Laurence Bardin (1977) em sua proposta teórica para a realização de uma análise de conteúdo.
O Eco, edição de 20/07/1941, p.1. (grafia original).
O Eco, edição de 19/10/1941, p.1. (grafia original).