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Artigo publicado na edição nº 30 de abril de 2008.
Imprensa e campo político:
concepções de democracia dos jornais liberais brasileiros durante a transição democrática (1945-1948)

Heber Ricardo da Silva

Após a queda do Estado Novo, as discussões acerca da democratização da vida político-nacional se avolumaram nas páginas da imprensa brasileira. Nesse período, os jornais paulistas O Estado de S. Paulo (OESP), Folha da Manhã (FM), Diário de S. Paulo (DSP) e os cariocas Correio da Manhã (CM), Jornal do Brasil (JB) e O Globo (OG) passaram a se posicionar politicamente e emitir pareceres favoráveis ao retorno da legalidade político-constitucional e atuaram como atores e produtores políticos com o intuito de universalizar interesses ideológicos e políticos e impor uma concepção de democracia particular como sendo geral. Dessa forma, as concepções de democracia defendidas pelos diferentes jornais analisados apresentavam diferenças, mas se assemelhavam em muitos pontos. Todos defenderam a queda do governo discricionário de Vargas, acreditaram que as novas condições políticas e sociais criadas internacionalmente exigiam uma nova condução política interna, eram favoráveis à anistia, à convocação da Assembléia Nacional Constituinte, eleições diretas, sufrágio universal e liberdade de imprensa, bem como se afirmaram como anticomunistas, embora em níveis e formas de enfrentamentos diferentes.

O regime democrático e o capitalismo eram entendidos pelos jornais OESP, DSP FM, CM, JB e OG como compatíveis com a dignidade dos indivíduos. Para as folhas, a construção da sociedade democrática estava baseada na eliminação do analfabetismo, educação política das massas, construção de uma nova consciência nacional, num governo baseado na ordem e harmonia social e eliminação do comunismo. Ao se referir aos comunistas, os periódicos asseguravam que não se poderia deixar a civilização e o progresso pacífico da humanidade à mercê de “elementos provocadores”, “demagogos”, “aventureiros que pretendiam frear a marcha democrática no Brasil”. As folhas concluíram que o comunismo não era compatível com os princípios democráticos, uma vez que se caracterizava pelo “uso da força, greves, insubordinações, desrespeito às liberdades individuais e por colocar o homem contra a religião”.*1 A democracia, assim, era entendida pela imprensa brasileira como um governo baseado na livre vontade da nação, subordinada apenas à vontade moral e ao sentimento de justiça, pois esse regime se caracterizava como o governo do povo, pelo povo e para o povo, princípios, que segundo as folhas, não eram observados no regime comunista.

Além da eliminação do comunismo, OESP, FM, DSP, CM, OG e JB asseguraram que a elite e os partidos políticos tinham papéis fundamentais no processo de fortalecimento da democracia após a Segunda Guerra. Dessa forma, concebiam que, para a modificação da estrutura e mentalidade política do país, as forças políticas democráticas deveriam se preocupar com as massas, as quais precisariam ser catequizadas e instruídas sobre os perigos de se relacionar com os comunistas, bem como necessitavam ser educadas para a democracia. Assim, os jornais pesquisados defendiam a realização de um trabalho junto às massas, coordenado pela elite e partidos políticos de cunho democrático e que pudesse “elevá-las culturalmente” e “oferecer-lhes valores democráticos” por meio da educação formal. Para os jornais, os comunistas atingiam os miseráveis, desempregados e analfabetos e, dada a condição social e pouca educação destes para viverem no regime democrático, conseguiam convencê-los a se engajar em seus “projetos provocadores”.*2 Sob o título “Triste Realidade”, os responsáveis pelo jornal OESP afirmaram na seção Opinião da Imprensa que “o índice de analfabetismo no Brasil atingia mais da metade da população brasileira em 1946”, e, desta forma, acreditavam que “isso representava uma barreira que impedia o desenvolvimento democrático do país, pois somente com a superação desses números era possível formar uma grande civilização e organizar o país dentro de um ambiente democrático”.*3

Como reflexo do objetivo “pedagógico” dos periódicos, OESP, assim como a Igreja Católica, apresentou propostas para afastar as massas da ação dos comunistas, bem como salvar o Brasil de suas ações extremistas. As propostas incluíam o fortalecimento econômico do país, investimento na esfera social e intensivo trabalho na área educacional. Para a folha paulista, para serem alcançados tais objetivos não bastaria apenas uma ação do governo na obra de eliminação dos comunistas, mas todas as classes sociais, e principalmente, a patronal, deveriam estar preparadas para enfrentar esse inimigo.*4

A partir do início de 1945, os Diários Associados passaram a defender o regime democrático e afirmaram que a democracia só poderia subsistir pela educação política do povo, pois o mesmo ainda não estava habituado a participar ativamente das tomadas de decisões políticas na sociedade. Para o diário, a partir da educação política “o homem poderia se transformar num novo cidadão, adquirir consciência para poder resistir às imposições e voltar seu pensamento para o bem comum”.*5 Para a FM, a participação política de um analfabeto é limitada pela própria ausência de conhecimentos, que o impede de realizar outras tarefas que não sejam braçais. Dessa maneira, a folha de Nabantino Ramos conclamou as elites a participarem de uma guerra inadiável contra o analfabetismo, pois acreditava que, somente assim, o Brasil poderia reencontrar os rumos do desenvolvimento econômico e a efetivação da democracia.*6 Já o JB e OG asseguraram que a elite brasileira tinha um papel histórico importante no processo de restabelecimento da democracia, pois sempre havia contribuído com a evolução política, econômica e mental da nação e, desta forma, deveria assumir o papel de assegurar às massas a possibilidade de serem educadas para a vida democrática.*7

Embora os jornais acreditassem que a educação das massas deveria ser conduzida pelas elites, como meio de afastá-las do perigo totalitário, e pela formação de um novo homem apto a viver no regime democrático, eles entendiam que a tarefa era longa e difícil, uma vez que existiam poucos partidos que desejavam a completa reordenação democrática nacional. Além disso, apontavam que um dos entraves para a reordenação democrática nacional era que o país havia saído, recentemente, de uma ditadura. Nesse período, a participação nas eleições passou a ser entendida como algo moralmente obrigatório, pois representava a contribuição de cada cidadão na tarefa de construir um “novo mundo” e de corrigir os erros cometidos pela ditadura. Para o jornal CM, por exemplo, o voto passou a ser visto como uma questão cívica, patriótica e de engrandecimento do regime democrático, porém tal direito deveria ser exercido de forma consciente e honesta pelas pessoas. Assim, o eleitor em geral era entendido como alguém que deveria ser educado para exercer seu direito, pois acreditava-se que ele não dispunha de consciência político-partidária para escolher os rumos políticos do país.*8

Conquanto reconhecessem a falta de habilidade das massas com a vida democrática, os jornais OESP e CM inferiam que o sucesso da democracia era determinado pela realização das eleições e da ampla participação popular nos pleitos eleitorais. Dias após o pleito de 1945, o CM publicou uma matéria bastante elucidativa acerca de seu posicionamento quanto à educação das massas; preconizando que esse processo educacional era determinante para a participação da população nas tomadas de decisões políticas nacionais. Embora tivesse manifestado satisfação com a realização das eleições, a matéria lamentava o resultado que estava se delineando, ou seja, a vitória de Dutra, candidato do PSD e ligado ao regime deposto de Vargas. Para a redação do jornal, o resultado das eleições poderia ser explicado pela falta de cultura e pelo analfabetismo da população, “pois não foi o ouvinte do rádio, o habitante esclarecido, o participante dos comícios populares que foram os fiéis da balança, mas os bisonhos habitantes do interior, a alma anônima das ruas”. Para o jornal de Bittencourt, o que se podia observar no pleito eleitoral de 1945 “era o espetáculo doloroso de verdadeiros rebanhos humanos, marchando pacificamente para as urnas, guiados pelas mãos dos prefeitos municipais, que exerciam uma grande dominação sobre as massas incultas da população”. Dessa forma, o jornal defendia a idéia de que, para que uma verdadeira democracia no Brasil pudesse ocorrer, eram necessárias medidas, como, por exemplo, a intensificação do processo de educação do povo brasileiro, a fim de formar eleitores conscientes.*9 Apesar de admitir que as escolhas eleitorais da maioria deveriam ser respeitadas, OESP acreditava que as massas ainda não estavam preparadas para escolher seus candidatos e nem viver dentro da legalidade constitucional. Como forma de superar esse despreparo, o jornal paulista avaliava que “a conquista das massas era o problema dos nossos dias”, pois deveriam ser educadas para a democracia e para o exercício do voto. Assim, definia que os “partidos políticos e as elites deveriam olhar para as massas” e, além disso, “as propagandas políticas deveriam convergir para esse público, desacostumado com a vida democrática”.*10 Desse modo, podemos afirmar, com Goldenstein (1987, p. 36), que a oposição liberal que se formara contra o Estado Novo e que se organizaria, sobretudo a partir de 1945, principalmente em torno da UDN, não aceitava o sistema de cotejamento das massas. Além disso, com um ideário de classe média tradicional, os liberais não reconheciam a cidadania das classes populares, embora não as entendesse como inimigas, mas como incapazes de tomar decisões políticas sérias, pois eram facilmente manipuladas pela demagogia dos políticos populistas. Sendo assim, para a elite liberal, a educação formal das classes populares era algo imprescindível para o desenvolvimento e amadurecimento do regime democrático no país, pois somente assim poderiam participar dos pleitos eleitorais e decidirem o futuro do país.

Com efeito, as propostas político-pedagógicas da imprensa brasileira, que previam a alfabetização das massas, não estavam vinculadas apenas ao objetivo de fortalecimento da democracia na sociedade brasileira. É possível considerar que os jornais, ao defenderem a alfabetização da população, estavam em busca de um número cada vez maior de leitores, com o intuito de conquistar mais consumidores de seus produtos jornalísticos e, conseqüentemente, poderem desfrutar de posições mais elevadas dentro do campo de produção jornalístico e político. Note-se que, na década de 1940, o rádio começava a alcançar a maior parte da população, em grande medida composta por analfabetos e se firmava como um dos grandes captadores de anúncios no mercado publicitário brasileiro. No entanto, até o final dos anos de 1940, os jornais ainda se despontavam como os maiores arrecadadores de verbas publicitárias, mas essa posição passaria a ser constantemente ameaçada com o progressivo desenvolvimento do setor radiofônico.*11

Contudo, a educação das massas configurou-se como um componente importante do pensamento clássico liberal. Para este, um dos principais benefícios do governo livre era justamente a educação da inteligência e dos sentimentos democráticos levados às classes populares quando estas eram chamadas a tomar decisões que afetavam os grandes interesses do país. Para os jornais analisados, era inadmissível a participação de pessoas que não soubessem ler e nem escrever no processo eleitoral, uma vez que eram tidas como não tendo consciência de escolher entre o certo e o errado.*12 O articulista Mário Pinto Serva, de OESP, afirmou que “a Revolução Russa de 1917 só ocorreu porque na época a Rússia contava com cerca de 90% de sua população em estado de analfabetismo, o operariado russo vivia em condições sociais sub-humanas, onde existia apenas um partido político, Deus era blasfemado e não havia liberdade de imprensa, nem respeito à propriedade particular”.*13

Para as folhas pesquisadas, a educação das massas representava o processo fundamental para equilibrar a ordem e o progresso e, além disso, era responsável pela adaptação gradativa, mudança psicológica, garantia da liberdade individual, além da efetiva implantação do regime democrático no Brasil. Desta forma, a centralização política, a política populista e o controle das massas por parte do Estado como elementos básicos da organização política nacional eram recusados pelos liberais da imprensa brasileira.

Além da tentativa de oferecer educação formal às massas com o intuito de fortalecer o regime democrático, o catolicismo representou um importante aliado das forças democráticas nacionais com vistas a incutir valores cristãos nos homens e convencê-los da necessidade de eliminação do que consideravam ideologias totalitárias, bem como da importância de se construir o regime democrático no país, contribuindo, assim, para a execução das propostas liberais.

Embora as propostas liberais para a educação preconizassem a existência de um estado laico, a substituição da fé pela ciência e a formação de uma moral independente, ocasionado, assim, o enfraquecimento político da Igreja e a perda do controle sobre a educação, havia algumas correntes liberais que valorizavam o protestantismo por seu apelo à razão e pela liberdade em interpretar os livros sagrados, proporcionando condições para a educação das massas, uma vez que o catolicismo negava a liberdade de pensamento (CAPELATO, 1989, p.153). É possível entender que historicamente a Igreja não defendia os princípios liberais, mas, no período analisado, uniu-se às correntes liberais e passou a agir conjuntamente na sociedade objetivando a eliminação do comunismo no Brasil.

A cristianização do país vinha sendo realizada pelos católicos desde a Primeira República, mas com o fortalecimento da ideologia comunista e a necessidade de construção de uma sociedade mais harmoniosa e livre dos totalitarismos, a imprensa liberal passou a dar maior destaque aos valores cristãos em suas páginas e, desta maneira, aliava-se ao pensamento católico, uma vez que na Igreja havia segmentos que se destacavam na luta contra totalitarismos e autoritarismos. Assim, a imprensa liberal alegou que, frente às decisões tomadas pela civilização ocidental, a fé era importante elemento para enfrentar o totalitarismo (nazi-fascismo) e o materialismo ateu (comunismo) que ameaçavam o Brasil e o mundo. Isso explica a grande quantidade de matérias e colunas de cunho religioso publicadas pelos jornais durante o período que compreende essa pesquisa. As folhas analisadas mantiveram colunas específicas e publicaram artigos e entrevistas de líderes religiosos mundiais, os quais divulgavam suas idéias religiosas e posicionavam-se politicamente, sobretudo a partir do momento em que as discussões acerca da Guerra Fria intensificavam-se. Vale ressaltar que OESP, CM, DSP, JB e OG apresentavam ligação com a religiosidade, especialmente o catolicismo, e publicavam seções, matérias e reportagens com a opinião de líderes católicos, que, além de exprimirem suas idéias acerca da religião, também opinavam sobre o atual momento político nacional. Em matéria extraída do jornal Observatore Romano, órgão oficial do Vaticano, e publicada no jornal Estado de S. Paulo, a Igreja apresentou-se como um dos agentes no processo de construção da democracia, pois se denominava piedosa e rebelde às duras leis que foram instituídas pelos homens, responsáveis pela escravização de inúmeros cidadãos. Assim, julgava-se também como a responsável pela formação da ordem social e pela formação da verdadeira democracia no Brasil.*14

De todos os jornais pesquisados, o JB e OG foram os que, por meio de seus proprietários, mantiveram relações mais próximas com a Igreja Católica e, sendo assim, foram os órgãos que mais publicaram conteúdo de líderes religiosos em suas páginas, os quais exprimiram sua repulsa ao comunismo e a defesa do regime democrático. O JB concebia que a democracia deveria começar em casa, passando os princípios de geração em geração, se a sociedade não quisesse perecer sob o fluxo de idéias falsas e más. Além disso, acreditava que todos os povos do hemisfério podiam ter diferentes línguas e raças, mas estavam presos pela unidade política, religiosa e pelos interesses econômicos.*15 O jornal carioca apresentava intensa relação com o catolicismo, uma vez que seu diretor-proprietário, Pereira Carneiro, nasceu em uma família de católicos e recebera do papa o título de conde do Vaticano em 1919, por ter participado de diversos trabalhos assistenciais realizados pela Igreja, além de ter doado 10 contos de réis para auxiliar no combate à gripe espanhola em 1918. Já OG concluía que, com o fim do Estado Novo, as pessoas deveriam ser evangelizadas, a fim de que o preço daquilo que adquirimos ou perdemos não fosse barateado pelas paixões políticas sem luz, somente assim não se perderia de novo a liberdade conquistada com o fim do Estado Novo.*16 Para o jornal, o aspecto religioso era a essência das motivações capazes de elevar o homem à dimensão de construtor da paz. Além disso, afirmava que os assuntos religiosos, notadamente os ligados à Igreja Católica, sempre receberam destaque em suas páginas, não apenas quando a religião era notícia, mas para torná-la notícia, levá-la aos homens e contribuir com a harmonia na sociedade.*17 Embora preocupada com a democratização da sociedade, a FM não esteve ao lado da Igreja Católica nessa tarefa, uma vez que Nabantino dispunha de formação religiosa protestante. Diferentemente de JB e OG, a folha paulista não se preocupou em publicar colunas específicas sobre religiosidade, matérias ou entrevistas de líderes da Igreja Católica com pareceres sobre o momento político nacional. Para Nabantino Ramos (1970, p. 219), “a rotina dos cultos é de escasso interesse jornalístico e não comportava seção. Mas se o jornal quiser tê-la, para ser imparcial perante os leitores, os quais se dividiam por várias religiões, deveria tratá-las com igualdade”.

Podemos afirmar, ainda, que a base do pensamento liberal de OESP e CM foi formada a partir do modelo liberal inglês. Ao estudarem e viajarem constantemente à Londres e manterem contatos com profissionais daquele país, os proprietários dos jornais, principalmente os dos referidos periódicos paulista e carioca, sofreram influências do ideário inglês e expressaram claramente sua simpatia por esse modelo. OESP evidenciou sua atração pelo modelo de democracia anglo-saxão. Para o jornal de Júlio de Mesquita, “o Brasil deveria se aproximar dos anglo-saxões, e seria ali que o país deveria buscar as raízes do regime democrático, pois representava respeito às garantias individuais, liberdade de expressão e existência de vida constitucional”.*18 Em entrevista concedida à emissora BBC e transmitida ao Brasil, Paulo Bittencourt deixou claro sua simpatia pelo modelo político inglês. Para o proprietário do CM, o espírito de sacrifício do povo inglês era exemplo de consciência política, senso social e patriotismo. Dessa forma, podemos concluir que o modelo liberal democrático e constitucionalista inglês determinou a concepção de democracia de OESP e do CM, uma vez que ambos, historicamente, defenderam a legalidade e a constitucionalidade.

Entretanto, apesar de diferentes concepções sobre a mesma base ideológica liberal, é correto afirmar que, com o enfraquecimento da ditadura Vargas, todos os órgãos analisados declaravam-se defensores da democracia e da extensão do direito de participação política a todos os cidadãos. Nesse período, os jornais uniram suas forças para derrubar o inimigo comum, mas, com a conjuntura política que se formara a partir da queda de Vargas e, principalmente, com a emergência do governo Dutra, as folhas posicionaram-se de forma particular em defesa de seus interesses econômicos e políticos mais imediatos, alinhando-se a grupos, partidos ou projetos políticos próximos aos seus interesses. Desse modo, o discurso democrático presente nas páginas dos jornais tinha interesses bem definidos: a garantia ou conquista de benefícios políticos e econômicos particulares, bem como a conquista de posições elevadas dentro do campo jornalístico e político, capazes de proporcionar aos jornais a condição de influírem nas tomadas de decisões e, assim, influírem mais amplamente no primeiro e segundo campos. Seguindo as orientações de Pierre Bourdieu (2003), podemos afirmar que os jornais estão em constante concorrência, que se configura por excelência em uma luta pelo poder simbólico, pois o objetivo das folhas é converter a visão de mundo e os interesses de um determinado grupo particular como sendo geral. Sendo assim, ao indicar um modelo de democracia a ser seguido ou um conjunto de idéias políticas a serem interiorizadas pelos seus leitores, os jornais buscam a mobilização do maior número de agentes para sua causa, com vistas a conquistarem posições elevadas dentro do campo jornalístico, capazes de lhes assegurar poder e distinção sobre seus concorrentes e, desta forma, a possibilidade de influir mais amplamente no campo político.

Contudo, embora os jornais da segunda metade da década de 1940 tivessem atingido um grau acentuado de organização e desenvolvimento, boa parte deles não se empenhou mais sistematicamente na conquista de sua autonomia em relação ao campo político; atuava e cumpria uma função complementar à política, agindo muitas vezes como porta-voz ou caixa de ressonância de partidos e/ou grupos políticos. O apoio ou a oposição de um jornal a governos constituídos eram importantes para garantir a sobrevivência do órgão, quer fosse por meio de empréstimos e incentivos, quer fosse pela publicidade oficial.

Cabe ressaltar que, com o fim do Estado Novo, a imprensa empunhou a bandeira da democracia e liberdade de expressão. Assim, os jornalistas e proprietários de jornais não estavam defendendo a supressão da censura e a completa democratização da sociedade, mas a eliminação deste como atributo exclusivo do Estado, podendo, pois, criar representações do mundo social e interferir com mais precisão dentro do campo jornalístico e político nacional, segundo interesses econômicos e políticos imediatos ou mais amplos dos proprietários de jornais e dos grupos econômicos aos quais as folhas estavam ligadas ou com os quais mantinham relações comerciais.

Ao defenderem a liberdade de imprensa, os jornalistas usam-na para imporem-se como segmento significativo do empresariado que, como os demais, almeja parcela de poder. Assim, estes profissionais procuram manter relações próximas com o Estado e conseguir espaço para seu produto no mercado geral capitalista, pois à medida que se formam os grandes conglomerados jornalísticos, eles passam a exercer um comportamento monopolista e impor uma visão particularizante de mundo (MARCONDES FILHO, 1986, p.96-101). Os jornais e jornalistas, na verdade, pleiteavam a censura para si, com o objetivo de silenciar os grupos oposicionistas que estavam por trás dos acontecimentos. A censura nas empresas de comunicação ocorre por motivos particulares de controle e dominação, manifestando-se, por sua vez, nas notícias que prejudicam interesses de seus anunciantes, que atentam contra setores governamentais que se relacionam com diretores e proprietários de jornais, ou que criticam posições ideológicas expressas no corpo editorial dos periódicos.

Entretanto, a censura não é apenas realizada pelo Estado em regimes de exceção ou pela própria empresa de comunicação, quando descarta a possibilidade de publicar textos ou informações que prejudiquem seus anunciantes, diretores ou até mesmo os governos simpáticos à linha editorial do jornal. Contudo, além disso, à medida que ocorre a concentração de poderes por parte da mídia e as relações entre governos e proprietários de jornais se intensificam, agentes opositores ao governo são censurados e impedidos de participarem das discussões e do próprio jogo político, uma vez que não têm a possibilidade de barganhar com o Estado e nem receber publicidades e anúncios estatais, empréstimos e cargos governamentais, e, dessa forma, a sua permanência no campo jornalístico fica comprometida. Assim, além da censura estatal e empresarial, podemos afirmar que existe ainda a censura realizada pelo próprio campo jornalístico, já que define os padrões e regras para a entrada e a atuação dentro do campo.

A partir do momento em que os jornais passam por um intenso processo de modernização e transformações técnicas, põem-se a determinar regras para a redação, adquirem aparelhagens mais sofisticadas e desenvolvidas, dão curso a um processo de divisão interna do trabalho e, no caso específico, obtêm padrões da imprensa norte-americana capazes de proporcionar maior dinamismo e objetividade em seus textos, as empresas jornalísticas se vêem na obrigatoriedade de se equipar e se modernizar para não perder sua posição dentro do campo ou, até mesmo, ser eliminadas dele; desta forma, a relação com o governo torna-se fundamental. De acordo com Bahia (1964, p. 108), há três pontos principais que explicam a fonte de receita da imprensa, quais sejam, a publicidade, os grupos econômicos e os leitores, sejam por meio de venda avulsa ou assinaturas. No entanto, é importante entender que, no momento pesquisado, os jornais, sobretudo OG, JB, DSP e FM, estavam vivenciando uma fase de consolidação no mercado, a publicidade despontava-se timidamente em nível nacional e as vendas avulsas e assinaturas não eram tão volumosas capazes de manter os jornais e lhes proporcionar condições de reestruturação de seu parque técnico e gráfico. Dessa forma, podemos afirmar que, além das fontes de receita apontadas por Bahia, as subvenções e ajudas governamentais foram importantes meios e instrumentos para manter o funcionamento e a estabilidade dos periódicos. Caso os periódicos não mantivessem essa relação política com o governo para obter anúncios e empréstimos oficiais, além da cobiçada propaganda de empresas particulares, dificilmente elas poderiam sobreviver no tão difícil e competitivo mercado jornalístico que se abria no pós Segunda Guerra. Assim, à medida que DSP, FM, JB e OG deixavam-se enredar na rede de dependências com os governos, eles abandonavam expedientes que pudessem lhes garantir ou ampliar sua autonomia com relação ao poder político. Dentro desse quadro, muitos dos assuntos e tratamentos jornalísticos sofriam restrições nas páginas dos quatro periódicos, sempre pautados pela autocensura dos seus proprietários com base na dependência do poder oficial.

Assim, a partir da década de 1940, o jornalismo brasileiro manteve a atuação junto com grandes forças econômicas e sociais e caracterizou-se por ser um canal de divulgação de idéias de grandes conglomerados econômicos, ou seja, o mercado publicitário que anuncia nos jornais e, de outro lado, de grupos políticos que almejam emitir suas opiniões subjetivas e particularistas. Dessa forma, o Estado e a imprensa são considerados instituições independentes e funcionam como organizações separadas, porém os agentes ligados a essas instituições, e que as operam, muitas vezes não se distinguem, pois suas proximidades vêm da origem da classe, da ideologia e dos interesses políticos, econômicos e sociais comuns. Embora sejam, pois, consideradas instituições independentes, caracterizam-se por objetivos e interesses comuns, os quais são às vezes defendidos e demandados por meio de concorrência e tensões (BOURDIEU, 1997, p. 30-31).

Referências bibliográficas

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CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920-1945). São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
GOLDENSTEIN, Gisela Taschner. Do jornalismo político à indústria cultural. São Paulo: Summus, 1987.
JEANNENEY, Jean-Nöel “A mídia”. In: REMOND, R. (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV/UFRJ, 1996.
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RAMOS, José Nabantino. Jornalismo: Dicionário Enciclopédico. São Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1970.
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SODRE, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
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Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, onde defendeu a dissertação intitulada A democracia impressa. Transição do campo jornalístico e do político e a cassação do PCB nas páginas da imprensa brasileira (1945-1948). É vinculado ao Núcleo de Pesquisa Interdisciplinares de Mídia e Linguagem e à Linha de Pesquisa do CNPq intitulada Mídia e Política na História do Brasil Contemporâneo sob a orientação do professor Dr. Áureo Busetto.
O Estado de S. Paulo, 07/03/1946, 07/07/1946, 07/01/1947, 23/08/1947, 16/11/1947. Correio da Manhã, 05/07/1945, 16/03/1946, 09/04/1946, 29/05/1946, 02/06/1946, 04 e 28/10/1946, 26/01/1947, 29/07/1947. Jornal do Brasil, 07 e 30/11/1945, 10/05/1947. Folha da Manhã, 22/09/1945, 05/05/1946, Diário de S. Paulo, 21/02/1946, 08 e 25/05/1946. O Globo, 06/05/1946 e 29/05/1947.
Diário de S. Paulo, 04/09/1945. O Estado de S. Paulo, 20/12/1945, 07 e 21/07/1946, 03/11/1946, Correio da Manhã, 16/12/1945, 12/04/1947, Jornal do Brasil, 07/09/1945, Folha da Manhã, 05/06/1945, O Globo, 29/05/1947.
O Estado de S. Paulo, 26/03/1946.
O Estado de S. Paulo, 22/06/1946.
Diário de S. Paulo, 04/09/1945.
Folha da Manhã, 26/02/1946.
Jornal do Brasil, 07/09/1945 e 30/11/1945. O Globo, 01 e 06/06/1946.
Correio da Manhã, 27/09/1945 e 04/12/1945.
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O Estado de S. Paulo, 11 e 14/12/45, 02/06/1946 e 21/07/1946.
Ver Anuário da Imprensa Brasileira, 1949.
Sobre o tema foram consultadas as seguintes obras: MILL, John Stuart. O governo representativo. Brasília: Editora UNB, 1981. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. TOURINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
O Estado de S. Paulo, 03/1946.
O Estado de S. Paulo, 04/09/1946.
Jornal do Brasil, 10/05/1945.
O Globo, 22/02/1945 e 01/06/1946.
Suplemento de Aniversário de O Globo, Rio de Janeiro, 29/07/1967.
O Estado de S. Paulo, 10/08/1947 e 02/09/1947.