Artigo publicado na edição nº 31 de junho de 2008.
IMPRENSA E POLÍTICA NO BRASIL:
CARLOS LACERDA E A TENTATIVA DE DESTRUIÇÃO DA ÚLTIMA HORA
Marina Gusmão de Mendonça
As origens da inimizade entre Carlos Lacerda e Samuel Wainer
Carlos Lacerda iniciou sua carreira jornalística pouco antes da Revolução de 1930, quando passou a trabalhar no Diário de Notícias, exercendo a função de articulista de uma seção dirigida por Cecília Meireles, e na qual publicaria, em 1931, seu primeiro artigo assinado. Logo depois, no princípio de 1932, juntamente com Fernando Correia Dias, Lacerda divulgaria um artigo no semanário Para Todos, iniciando suas ligações com a intelectualidade e o meio artístico do Rio de Janeiro da época. Foi também nessa ocasião que começaria sua carreira política, ao entrar na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, onde teve a oportunidade de vincular-se a um grupo liderado por professores marxistas.
Desde o princípio, tanto nas atividades jornalísticas como nas políticas, Carlos Lacerda se distinguiu não só pelo radicalismo como, também, pelo estilo virulento e ofensivo, os quais acabariam por constituir a marca de sua carreira, levando-o a angariar diversos adversários. Por outro lado, suas vinculações com a esquerda e suas ações temerárias diante da repressão o conduziriam, em várias ocasiões, à prisão. No entanto, o casamento, em 1938, acabaria por provocar a busca de maior estabilidade.
Dessa forma, e aproveitando-se do grande talento jornalístico de que já dera mostras anteriormente, começou a colaborar em várias publicações, além de assumir o cargo de secretário de redação de O Jornal, editado pelos Diários Associados, o império de comunicação construído por Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, no qual permaneceria até 1944. Ao mesmo tempo, valia-se de suas ligações com a esquerda, escrevendo para Diretrizes, a famosa revista lançada por Samuel Wainer, que se transformaria, na década de 1950, num de seus maiores adversários políticos.
Apesar de suas vinculações com a esquerda, na mesma época Lacerda iniciaria uma aproximação com grupos de direita, associando-se ao Observador Econômico e Financeiro, revista criada nos moldes da publicação norte-americana Fortune por Valentim Fernandes Bouças[*1], secretário do Conselho Técnico de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda, e dirigida pelo economista Olímpio Guilherme, presidente do Conselho Nacional de Imprensa e um dos diretores do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
No final de 1938, em comemoração ao primeiro aniversário da implantação do Estado Novo, o governo organizou uma exposição das diversas realizações de seus ministérios, entre as quais havia um setor inteiramente dedicado à vitória na luta contra o comunismo. Com o objetivo de dar maior publicidade ao evento, Olímpio Guilherme decidiu divulgar algumas matérias sobre a exposição no Observador Econômico e Financeiro, contando, para isso, com recursos do DIP. Assim, incumbiu Lacerda de redigir uma reportagem sobre a história do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a ser impressa num dos números posteriores da revista.
Para obter os dados necessários, Lacerda se valeria de sua intimidade com diversos militantes, que lhe devotavam grande consideração, especialmente considerando seus laços familiares com Mauricio, Fernando e Paulo de Lacerda[*2]. Dessa maneira, conseguiu de Eugênia Moreyra, mulher do escritor gaúcho Álvaro Moreyra, e de Astrojildo Pereira, dirigente do PCB, informações preciosas sobre a organização interna do partido. O resultado foi uma grande matéria intitulada A exposição anticomunista, na qual seu autor, pela primeira vez, assumia uma postura ferrenhamente contrária ao Partido e ao Movimento Comunista Internacional[*3]. A conseqüência seria sua expulsão imediata do PCB, dando origem a um ódio visceral aos comunistas que, ao lado do combate implacável a Getúlio Vargas, se transformaria, com o tempo, na tônica de sua atividade política.
Conforme versão que se tornou corrente na historiografia, Lacerda foi expulso do Partido porque, no artigo, revelara nomes e segredos do PCB, o que teria permitido a prisão e a tortura de diversos militantes. Isso, todavia, não corresponde à verdade, pois do texto não constam quaisquer referências a pessoas que fossem ainda desconhecidas da polícia do Estado Novo. Ao mesmo tempo, é difícil crer que o governo, depois de desencadear uma feroz perseguição aos envolvidos no levante de 1935, ignorasse qualquer dado sobre a estrutura e o funcionamento interno do Partido. De qualquer modo, e embora o artigo não contivesse nenhuma informação surpreendente, era, aos olhos do Partido, extremamente desrespeitoso em relação à doutrina e aos ideólogos marxistas, além de demolir os princípios em que sempre baseara a sua ação política. Ademais procurava desmoralizar suas mais destacadas lideranças, exatamente num momento em que estas vinham sofrendo com a ferocidade da repressão governamental.
A expulsão de Lacerda do PCB deu-se da forma mais humilhante, pois o Comitê Central mandou distribuir panfletos pelo centro do Rio de Janeiro, nos quais o acusava de ser um trotskista traidor, responsável pelo martírio de vários companheiros. Condenava-o ainda ao ostracismo, em virtude do que muitos de seus amigos passaram a evitá-lo e a repeli-lo, marginalizando-o por completo. Dias depois, ele seria preso como trotskista.
Esse episódio teria graves conseqüências para Carlos Lacerda: de um lado, seus adversários futuros iriam se valer da publicação desse artigo para impor-lhe a pecha de traidor, chegando mesmo a acusá-lo de ter recebido dinheiro para delatar os membros do PCB[*4]; de outro seria rechaçado por companheiros e colegas de trabalho, o que o levaria a uma vida de percalços financeiros, de isolamento e de falta de solidariedade.
Acrescente-se o fato de que os tempos eram árduos, pois a censura imposta pelo DIP reduzira consideravelmente o mercado de trabalho para jornalistas. Ao mesmo tempo, os encargos familiares de Lacerda haviam aumentado, especialmente depois do nascimento de seu filho Sérgio, em dezembro de 1938. Assim, os rendimentos que obtinha no Observador Econômico e Financeiro eram insuficientes para sustentar dois adultos e um bebê, tornando premente a necessidade de conseguir outros trabalhos.
Apesar do ostracismo a que havia sido condenado pelo Partido, Lacerda receberia, naquele momento difícil a valiosa ajuda do amigo Samuel Wainer, que o convidou para dirigir a seção literária de Diretrizes, então um periódico de grande prestígio[*5]. Entretanto, ao que tudo indica, Lacerda não se dava conta de que a expulsão do PCB mudara definitivamente sua vida: o fascínio que a capacidade oratória e o estilo arrogante e virulento outrora provocavam nos setores de esquerda havia se transformado em desconfiança, e seus colegas não pareciam mais dispostos a ter com ele a mesma condescendência demonstrada por Wainer. Dessa forma, conquanto necessitasse – financeira e, em certo sentido, emocionalmente – reintegrar-se ao meio jornalístico do Rio de Janeiro, não conseguia conter a agressividade, retomando, logo nos primeiros artigos escritos para a revista, o mesmo tom áspero que o caracterizara.
Assim, logo de início, investiu numa resenha contra o poeta Jorge de Lima. Nos números subseqüentes, em artigos extremamente desrespeitosos, atacou o pintor Cândido Portinari e o escritor Mário de Andrade. A reação de seus companheiros de redação, porém, não se faria esperar e, diante do desagrado demonstrado por todos – inclusive por seu primo, Moacir Werneck de Castro –, não restou a Wainer outra alternativa senão dispensá-lo.
Este, em suas memórias, admite que convidar Lacerda a colaborar em Diretrizes não fora uma boa idéia. Conforme recordou:
Jorge de Lima, além de grande poeta, era um homem extremamente bondoso. Médico, costumava tratar gratuitamente dos comunistas. As reações foram imediatas: “veja no que deu você trazer esse crápula para dentro”, disse-me Jorge Amado. Moacir Werneck de Castro ameaçou abandonar a revista. Resisti. O segundo artigo, tão violento e ressentido quanto o primeiro, teve como alvo (...) Portinari. Moacir pediu demissão. Com o terceiro artigo, chegou a vez de Mário de Andrade. Constatei, então, que Carlos Lacerda não se emendara. Eu havia imaginado que, com o episódio da expulsão do PCB, ele se tornaria mais tolerante, humilde, compreensivo. Nada disso acontecera, e tive de ceder às evidências: comuniquei-lhe que não havia mais clima para que ele continuasse a escrever em Diretrizes[*6].
Segundo Wainer, iniciava-se, nesse momento, uma inimizade que Lacerda cultivaria por toda a vida: “esse incidente com certeza contribuiu para antecipar a ruptura que ocorreria mais tarde – era mais uma semente do ódio que ele depois manifestaria em relação a mim[*7]”.
Com seu desligamento de Diretrizes, complicou-se a situação financeira de Lacerda, que não teve alternativa senão voltar-se para os amigos conservadores. O início da Segunda Guerra Mundial, entretanto, traria novas oportunidades de emprego, pois o governo norte-americano, empenhado numa campanha anti-nazista, passou a fornecer material para a Agência Interamericana. Lacerda foi, então, contratado como tradutor da empresa, em meados de 1940.
A atividade na Agência, contudo, não o livrava do ostracismo a que fora lançado pelos setores de esquerda do Rio de Janeiro. Assim, e com o objetivo de superar o isolamento, procurou construir um novo círculo de amigos em São Paulo, para onde passou a viajar com freqüência. Em 1941, enfim, Lacerda parecia adaptado ao ambiente paulista, conseguindo, inclusive, um trabalho razoavelmente bem remunerado como supervisor do Digesto Econômico, boletim publicado semanalmente pela Associação Comercial de São Paulo. A nova atividade levou-o a se mudar para a cidade em meados de 1942, logo após o nascimento de Sebastião, seu segundo filho. Todavia um desentendimento com a direção da entidade o faria abandonar o emprego pouco depois, retornando ao Rio de Janeiro naquele mesmo ano, onde aceitou a oferta de trabalho feita por Olímpio Guilherme, na época diretor da agência de publicidade ADA.
O emprego na agência, contudo, não duraria muito, pois logo recebeu convite de Assis Chateaubriand para dirigir a Agência Meridional, empresa telegráfica dos Diários Associados. Nesse período, conseguiu resolver sua situação perante o Exército – do qual havia desertado em 1935 –, aproveitando a anistia prometida pelo governo a todos aqueles que se alistassem.
Enquanto esperava a convocação, encontrou-se com Fernando de Lacerda, então membro do Comitê Central do PCB, e que acabara de retornar de uma longa estada na União Soviética. Ainda inconformado com seu desligamento do Partido, pediu ao tio que o ajudasse a ser readmitido. Este, então, incentivou-o a escrever uma matéria favorável à linha preconizada pelo Comintern, segundo a qual os comunistas brasileiros deveriam esquecer as desavenças com Getúlio Vargas e unir-se a ele em benefício do esforço de guerra. O resultado foi um artigo intitulado Os intelectuais e a união nacional, levado a Samuel Wainer para ser publicado em Diretrizes, uma vez que, embora não estivesse mais na revista, ainda não rompera com seu diretor.
Mas Wainer apoiava a linha defendida por Agildo Barata, que propunha a formação de uma frente política – a União Democrática Brasileira (UDB) –, de caráter menos abrangente. Por isso, consultou os comunistas da redação, e todos se opuseram à publicação. A matéria, que acabou editada pela Revista Acadêmica, de pequena circulação, não foi suficiente para apaziguar os ânimos em relação a Lacerda que, assim, não pôde retornar ao PCB, carregando ao longo da vida a pecha de traidor e delator.
De todo modo, a negativa de Samuel Wainer[*8] reacendeu o ressentimento provocado pela saída de Diretrizes, e Lacerda esperaria a hora certa para se vingar, que viria com o chamado “Caso Última Hora”, durante o segundo governo Vargas. E, assim como fez em relação à sua expulsão do Partido – divulgando a versão de que decidira romper com os comunistas por não poder admitir suas práticas –, Lacerda passaria a dizer que deixara Diretrizes “por discordar da linha de pactuação com os nazistas, seguida (...) por ocasião do pacto germano-soviético”[*9].
A criação da Tribuna da Imprensa
Impossibilitado de retornar ao PCB, em 1943, só restava a Lacerda se limitar às suas atividades na Agência Meridional. Contudo, em breve teria uma desilusão no trabalho, pois esperava ser designado correspondente de guerra na Europa. Mas Chateaubriand preferiu enviar o renomado jornalista Joel Magno Ribeiro Silveira. Lacerda, então, teve de se contentar em cobrir as atividades militares no Nordeste, nessa época transformado em base norte-americana.
Em 1944, de retorno ao Rio de Janeiro, Lacerda se engajaria na luta contra o Estado Novo, ao mesmo tempo em que, profissionalmente, passou a acumular, juntamente com o cargo de diretor da Agência Meridional, as funções de secretário de O Jornal, principal publicação dos Diários Associados. Entretanto, essa atividade não duraria muito, pois além da dificuldade em se adaptar ao exercício de tarefas burocráticas, não conseguia se sujeitar ao comando de Chateaubriand. Assim, após alguns incidentes, pediu demissão, ficando novamente desempregado. Começaria, então, no final de 1944, a trabalhar como jornalista free lancer no Correio da Manhã, onde passou a escrever uma coluna intitulada Na Tribuna da Imprensa, e no Diário Carioca.
Contudo, nessa luta contra o Estado Novo, Lacerda parecia não conseguir se desligar das esquerdas. Tanto que tentou uma aproximação com outros setores socialistas não vinculados ao PCB, defendendo as posições preconizadas pela Esquerda Democrática (ED), que apoiava a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes para as eleições presidenciais de 1945. Todavia, os membros da ED acabariam por rejeitá-lo, tendo João Mangabeira chegado a declarar que ele não era bem vindo à agremiação[*10].
Rejeitado por todos os setores de esquerda, Lacerda se filiaria à UDN – nesse momento ainda uma frente de oposição organizada com o objetivo de combater Getúlio Vargas e o Estado Novo –, juntando-se, com todas as forças, à campanha de Eduardo Gomes, que acabaria derrotado pelo Marechal Eurico Gaspar Dutra, Ministro da Guerra e candidato apoiado por Getúlio Vargas.
A partir desse fato, Lacerda voltaria todas as suas baterias contra Getúlio e as pessoas e forças que, de uma forma ou de outra, tivessem qualquer vinculação com o ex-presidente. Com esse objetivo, e após se engajar em várias frentes, iniciou, em 1948, por ocasião dos primeiros debates em torno da exploração dos recursos naturais brasileiros, uma campanha contra a concessão de refino de petróleo a dois grupos privados nacionais: Soares Sampaio-Corrêa e Castro, titular da Refinaria e Exploração de Petróleo União S/A, de São Paulo, e Drault Ernany-Eliezer Magalhães, proprietário da Refinaria de Petróleo do Distrito Federal S/A.
Ao mesmo tempo, defendia, ardorosamente, a participação do capital estrangeiro na exploração de petróleo. Tanto que passaria a usar sua coluna no Correio da Manhã para ataques à família Soares Sampaio[*11]. Os artigos, contudo, provocariam grande constrangimento a Paulo Bittencourt, proprietário do jornal e amigo íntimo dos Soares Sampaio, e Lacerda acabaria demitido, embora conseguisse manter os direitos sobre o título de sua coluna, Na Tribuna da Imprensa.
A perda do emprego, no entanto, seria imediatamente compensada pelo surgimento da maior oportunidade de sua carreira profissional, pois os amigos Aluísio Alves, deputado pela UDN do Rio Grande do Norte, e Luís Camilo de Oliveira Neto logo o convenceram da viabilidade de fundar seu próprio jornal, o que foi conseguido por meio da mobilização de grupos empresariais vinculados ao capital externo, que forneceram os recursos necessários.
Desse modo, o vespertino Tribuna da Imprensa, editado pela primeira vez em 27 de dezembro de 1949, caracterizar-se-ia, desde o início, como um veículo de divulgação de teses anti-nacionalistas e anti-populares, e que teria como principal objetivo, a partir de 1950, a liquidação de adversários, investindo sobretudo contra o getulismo e a política populista. Com isso, Carlos Lacerda, que iniciara sua carreira política como uma promissora liderança de esquerda, obtinha a maior vitória contra os antigos companheiros do PCB, pois ao transformar o jornal num instrumento para violentas campanhas de eliminação de opositores, alicerçava em sólidas bases a carreira política, deixando a nu, a partir desse momento, sua face de grande tribuno dos interesses burgueses ligados ao capital internacional[*12].
O segundo governo Vargas e o fantasma da Última Hora
Os debates sobre a sucessão do Marechal Dutra começariam ainda em meados de seu mandato e, para quase todos, a grande incógnita era a posição a ser assumida por Getúlio Vargas que, embora deposto, mantinha enorme prestígio, não só perante os trabalhadores urbanos, como, também, nos setores agrários articulados em torno do Partido Social Democrático (PSD). Dessa forma, as pretensões de Vargas eram fundamentais para qualquer definição do jogo político com vistas ao pleito de 1950, em que PSD e UDN, à semelhança do que ocorrera em 1945, provavelmente voltariam a se defrontar nas urnas.
Na verdade, Vargas estimulava as especulações em torno de seu retorno e, no início de 1949, concedeu a Samuel Wainer – então repórter de O Jornal – uma entrevista em que dizia:
Eu não sou propriamente um líder político. Sou, isto sim, um líder de massas. Minha posição atual é a de um simples observador. (...) Pessoalmente estou pronto a conversar com quem quer que venha me procurar. Mas, uma condição preliminar torna-se necessária para isso: que o seu programa dirija-se antes de mais nada à defesa dos trabalhadores brasileiros dentro dos princípios de uma socialização progressiva das fontes nacionais de riqueza (...). O meu pensamento (...) está todo voltado para os trabalhadores do Brasil[*13].
As declarações vinham corroborar as suspeitas de que o ex-ditador efetivamente considerava a possibilidade de se candidatar. Contudo, para além disso, indicavam que Vargas estava disposto a mobilizar as massas populares com o objetivo de angariar apoio para o desenvolvimento de uma política voltada para os interesses dos trabalhadores, o que acendia os temores das camadas dominantes.
A entrevista foi interpretada como uma declaração de que Getúlio pretendia, de fato, concorrer à Presidência da República em 1950, e que o lançamento oficial de sua candidatura era apenas uma questão de tempo. Este fato imediatamente mobilizou todas as forças anti-getulistas que, a partir de então, tentariam, de todas as formas, impedir seu retorno ao poder. De todo modo, Samuel Wainer se tornaria, ao longo da campanha, o jornalista mais próximo do ex-ditador, transformando-se, depois da posse, no virtual porta-voz do novo governo.
Essa proximidade com o poder acabaria por propiciar-lhe os recursos necessários à criação de seu próprio jornal[*14], um vespertino que, desde o lançamento, em junho de 1951, obteve imediato sucesso de público, ultrapassando, em apenas seis meses, as vendagens de todos os concorrentes. Tamanho êxito logo atrairia contra Wainer a ira da grande imprensa, prejudicada pelo volume de recursos publicitários que passaram a ser destinados ao novo periódico.
De fato, o lançamento da Última Hora fora um golpe no mercado jornalístico, então dominado por algumas poucas empresas que controlavam não só o noticiário, como também quase todos os investimentos publicitários, indispensáveis à sobrevivência financeira dos órgãos de imprensa[*15]. Afinal, não se pode esquecer que a leitura de jornais era um hábito restrito ao pequeno contingente letrado da população, e os periódicos não poderiam sobreviver apenas com os recursos advindos da venda em bancas e de assinaturas. Por outro lado, a televisão, implantada no País no ano anterior, constituía-se ainda num luxo inacessível à maioria dos brasileiros, motivo por que as agências de publicidade dedicavam grande parte dos investimentos à imprensa escrita.
Samuel Wainer não hesitaria em se valer da proximidade com os membros do novo governo para realizar o sonho de todo repórter, que é conseguir editar o próprio jornal. Por seu turno, Vargas, cuja base de sustentação política era frágil, precisava contar com o apoio popular, o que seria mais fácil se pudesse obter uma divulgação favorável à sua administração, neutralizando, assim, a oposição da grande imprensa ao seu retorno à Presidência. A Última Hora nascia, portanto, da confluência dos interesses pessoais de Samuel Wainer com as necessidades de ampliação das bases de apoio do novo governo.
Contudo, o jornal se transformaria num dos principais alvos da campanha de desestabilização política de Getúlio, pois, embora não haja "nenhuma prova de que o Presidente eleito houvesse determinado a fundação de Última Hora ou sequer providenciado os recursos necessários ao seu lançamento"[*16], a proximidade de Wainer com o centro do poder lhe abriu portas que, de outra maneira, estariam fechadas.
Esse fato seria amplamente utilizado pela oposição, notadamente por Lacerda que, sem qualquer hesitação, passou a acusar Getúlio de manipular recursos públicos em benefício de Wainer. Para tanto, contaria não só com a Tribuna da Imprensa, mas também com ampla cobertura dos principais órgãos de imprensa, que aderiram integralmente à campanha. Na verdade,
ao incentivar e favorecer a criação do inovador jornal de Samuel Wainer, Vargas interviera diretamente no mercado, (...) não apenas privilegiando a ação de um jornalista particularmente bem-dotado, como subvertendo as regras de acesso ao fechado clube dos proprietários de jornal, dos fazedores de notícia.
Conseqüentemente, "ao dar a Wainer as condições para desequilibrar inteiramente o jogo de forças do mercado jornalístico, o presidente forneceria também aos seus adversários um alvo através do qual poderiam (e tentariam) atingi-lo"[*17].
Para Lacerda, ambicioso e vaidoso, o sucesso da Última Hora seria de difícil aceitação, tanto mais que, sendo este um vespertino, concorria diretamente com a Tribuna da Imprensa, muito pobre em vendagem. Por outro lado, há tempos ele nutria ressentimentos contra Samuel Wainer que, como já se viu, além de não oferecer a ajuda esperada quando de sua expulsão do PCB, também não se dispusera, em 1942, a publicar o artigo Os intelectuais e a união nacional, que escrevera por recomendação de seu tio Fernando, com o intuito de conseguir voltar ao Partido.
Além disso, naquela ocasião Lacerda já mantinha estreitas ligações com os grupos empresariais vinculados ao capital internacional, haja vista as circunstâncias que levaram à criação da Tribuna da Imprensa. Dessa forma, veria ele, no lançamento da Última Hora, a grande oportunidade para apontar todas as baterias contra os dois grandes inimigos: Getúlio Vargas e Samuel Wainer.
A campanha contra a Última Hora teve início logo após o seu lançamento. Assim, já em 27 de julho de 1951, Lacerda publicou um editorial intitulado Golpe contra a imprensa independente, em que, a pretexto de comentar o empastelamento dos periódicos La Prensa e Vanguardia, e a prisão dos jornalistas de El Intransigente, determinada pelo governo argentino, lançava suspeitas de que a violência constituía parte de uma estratégia articulada por Perón com o objetivo de acabar com a liberdade de imprensa. De acordo com a matéria, tratava-se de um verdadeiro "complô", com ramificações na imprensa brasileira[*18].
Lacerda procurou dar impulso à campanha durante a VII Conferência da Associação Interamericana de Imprensa, realizada em Montevidéu, em outubro de 1951. Denunciando o envolvimento do governo na obtenção dos recursos para o lançamento da Última Hora, fez um apelo para a criação de mecanismos que impusessem um severo controle sobre os subsídios governamentais a órgãos de imprensa, de modo a impedir a concorrência desleal. Porém, é preciso assinalar que, ao condenar essa prática, ignorou o fato de que quase todos os periódicos brasileiros costumavam recorrer aos cofres públicos para conseguir empréstimos privilegiados, como eram os casos de O Globo, de propriedade da família Marinho, e dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, grandes devedores do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal[*19]. Ademais, o próprio fornecimento de papel para a imprensa era sistematicamente subsidiado pelo governo, o que beneficiava inclusive a Tribuna da Imprensa[*20].
Mas as vendas da Última Hora cresciam rapidamente: a tiragem chegava a 150.000 exemplares nas segundas-feiras, e 100.000 nos demais dias da semana. Diante disso, Lacerda passou a acusar Samuel Wainer da prática de "dumping", uma vez que este conseguira reunir um grupo de renomados profissionais oferecendo-lhes remuneração superior aos salários pagos pelos demais jornais. Porém, não se tratava de prática deliberada de “dumping” . O sucesso da Última Hora atraía verbas publicitárias cada vez mais vultosas, o que proporcionava à empresa rendimentos suficientes para cobrir uma grande folha de pagamentos.
Assim, o objetivo da campanha de Lacerda era, de fato, eliminar um concorrente a cada dia mais incômodo, cujo sucesso expunha o fato de seu jornal constituir um retumbante fracasso editorial. Aliás, deve-se ressaltar que, dentre os principais periódicos do Rio de Janeiro, a Tribuna da Imprensa ocupava o último lugar em vendagem. O problema se agravaria com o naufrágio da revista Bamba, lançada em junho de 1951, por sugestão de D. Hélder Câmara, e que vinha substituir o suplemento infantil da Tribuna da Imprensa. Os prejuízos foram de tal ordem que a publicação foi suspensa cerca de um ano e meio depois.
Os repetidos fracassos transformaram a Tribuna da Imprensa no alvo preferido dos adversários de Lacerda, que a ridicularizavam como o "lanterninha" da imprensa. Isso espantava os anunciantes, perpetuando-se, portanto, a situação deficitária da empresa. O jornalista rebateu o apelido jocoso, utilizando a lanterna de Diógenes — símbolo da eterna procura por um homem honesto — como marca do vespertino. Assim, em 29 de junho de 1953, a lanterna apareceu, pela primeira vez, nas páginas da Tribuna da Imprensa. Mas Samuel Wainer e seu vitorioso jornal — bem como a defesa que fazia de Getúlio Vargas — permaneciam como espectros a rondar as ambições de Carlos Lacerda, estimulando-o a atacá-los com toda a fúria de sua pena.
O ressentimento e a inveja seriam exasperados quando o proprietário da Última Hora lançou a revista Flan, em abril de 1953. A publicação também atingia diretamente o monopólio do mercado de revistas, controlado inteiramente pelos Diários Associados, responsáveis pela edição do semanário O Cruzeiro. Por outro lado, deve-se considerar que as grandes empresas jornalísticas, sempre deficitárias e dependentes de subsídios, tinham que se conformar, agora, em dividir créditos e verbas publicitárias com um concorrente cada vez mais poderoso[*21]. A Tribuna da Imprensa passou então a se dedicar à publicação de manchetes sensacionalistas contra Samuel Wainer e todos aqueles que, de alguma maneira, haviam contribuído para o erguimento da Última Hora.
No artigo de 21 de maio de 1953, intitulado O que é a Érica, Lacerda denunciava o favorecimento do Banco do Brasil na concessão de empréstimos a pessoas próximas ao governo:
A 'Érica', empresa que edita a 'Última Hora' e 'Flan', é (...) presidida pelo ex-embaixador nos Estados Unidos, Carlos Martins Pereira de Souza, parente do sr. Getúlio Vargas. Seus sócios são os srs. Luís Fernando ('Baby') Bocaiúva Cunha, genro do ministro da Educação; Dinarte Dorneles, parente do sr. Getúlio Dorneles Vargas; Adolfo Alencastro Guimarães; Raul Amaral Peixoto, irmão do governador Amaral Peixoto; Carlos de Souza Gomes (...). Assim, o Banco do Brasil emprestou a pessoas ligadas por parentesco ao presidente da República Cr$ 64 milhões sobre uma propriedade. Além dessa hipoteca, há letras e títulos vencidos, que perfazem um total de cerca de Cr$ 150 milhões.[*22]
Nesse mesmo dia, em editorial intitulado Estourou a felipeta da imprensa, novamente acusava Wainer de ter se aproveitado de dinheiro público para montar a empresa"[*23]. Por fim, a Tribuna da Imprensa publicou reportagens em que afirmava ter o Banco do Brasil nomeado o advogado Herófilo Azambuja para o cargo de interventor na Érica, editora da Última Hora. O objetivo seria investigar os empréstimos concedidos à empresa, durante a gestão de Ricardo Jafet naquela instituição[*24]. Uma das matérias, de autoria do jornalista Natalício Norberto, baseava-se em supostas declarações de Azambuja, feitas numa entrevista. Diante disso, a direção da Última Hora, além de mover uma ação contra a Tribuna da Imprensa, exigindo vultosa indenização, decidiu contratar Norberto que, de imediato, declarou ter sofrido pressões de seu antigo empregador para forjar a entrevista.
Vendo-se acuado por Samuel Wainer, Lacerda redobrou os esforços na tentativa de destruir seu desafeto. Para isso, passou a publicar acusações cada vez mais graves contra o proprietário da Última Hora[*25], chegando a proclamar que estava "provado o 'dumping' com a carta de um anunciante"[*26]. Procurando também atingir figuras próximas de Getúlio Vargas, a Tribuna da Imprensa dava a entender que as mesmas mantinham vinculações escusas com Samuel Wainer. É o que se vê da manchete Última Hora integrada no esquema peronista que João Goulart prepara, de 8 de julho de 1953. O artigo era um resumo da entrevista concedida por Lacerda, na véspera, à Televisão Tupi de São Paulo.
Segundo ele, Jango, recém-nomeado Ministro do Trabalho, estava tentando "criar no Brasil uma nova CGT, do tipo Perón", para o que preparava um golpe
no estilo boliviano. Não se trata do fechamento do Congresso como em 1937, e, sim da sua dominação pela massa de manobra de um sindicalismo dirigido por 'pelegos' visando reformar a Constituição e estabelecer uma ditadura no país. (...) O papel da 'Última Hora' em tudo isso é histórico mas miserável, já definido por Rui Barbosa, como o papel da 'imprensa dos capões'. (...) Não há dúvida de que a 'Última Hora' está integrada ao esquema do golpe peronista que o sr. João Goulart prepara.[*27]
Nesse ínterim, e estimulada pela pena do jornalista, a oposição conseguiu angariar número suficiente de assinaturas para a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), criada, afinal, pela Resolução n. 313, de 3 de junho de 1953, sob a presidência do deputado Carlos Castilho Cabral. Tinha, como objetivo expresso, a apuração dos empréstimos concedidos pelo Banco do Brasil à Última Hora.
Ao que tudo indica, a idéia original da CPI partira do próprio Samuel Wainer, inspirado nas investigações promovidas pelo Comitê de Atividades Anti-americanas do Congresso dos Estados Unidos. Como revelou em suas memórias, esperava que a maioria governista no Parlamento pudesse "neutralizar as espertezas da oposição udenista" e, assim, "concluídas as investigações, que fatalmente penderiam pela absolvição da Última Hora, seria difícil a Lacerda insistir nas denúncias"[*28].
Contudo, a oposição, comandada pela "Banda de Música" da UDN, não pouparia esforços para utilizar a CPI como mais um instrumento da campanha contra Getúlio Vargas, criando um tal clima de desconfianças em torno do Presidente que pudesse, afinal, fornecer condições para a instauração de um processo de impeachment. Para tanto, recebia assessoria jurídica do Escritório de Advocacia Monsen, do Rio de Janeiro, famoso por suas estreitas ligações com grandes empresas estrangeiras, entre elas a Standard Oil, e que contava em seus quadros com o conhecido advogado Fernando Veloso, genro de Valentim Bouças e, sabidamente, amigo pessoal de Lacerda.
Em 14 de julho de 1953 a campanha atingiu o auge, quando Lacerda, em pronunciamento na televisão, declarou bombasticamente ter provas de que Samuel Wainer não havia nascido no Brasil, o que, de acordo com o artigo 160 da Constituição, lhe vedava o direito de ser proprietário de empresa jornalística. Segundo ele, a denúncia, feita a partir de um telefonema anônimo à redação da Tribuna da Imprensa, havia sido confirmada pela consulta a documentos do Ministério da Educação, realizada por seu amigo, o deputado Armando Ribeiro Falcão, do PSD, e por David Nasser, jornalista de grande prestígio nos Diários Associados.
De acordo com os dados referentes ao ano de 1927, e constantes dos arquivos do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, o proprietário da Última Hora teria, na verdade, nascido na Bessarábia. Com o início da Primeira Guerra Mundial, sua família emigrara para o Brasil, onde chegou quando Wainer tinha apenas dois anos. A informação fundamentava-se nas declarações feitas à diretoria da escola por Artur, irmão mais velho do jornalista, cuja intenção teria sido livrá-lo do serviço militar obrigatório.
Todavia, existem indícios de que há muito Lacerda sabia da questão em torno da nacionalidade do proprietário da Última Hora. Na realidade, ele conhecia intimamente a família Wainer, de cuja residência fora assíduo freqüentador na juventude. Dessa forma, ali ouvira, certa vez, uma indiscrição da mãe de Samuel que, durante um almoço, inadvertidamente revelara ter o filho nascido na Bessarábia. Lacerda, então, teria se aproveitado do fato para atingir seu desafeto[*29]. E foi com esse intuito que, em 15 de julho de 1953, sob a manchete Wainer não é brasileiro, a Tribuna da Imprensa ofereceu, com estardalhaço, as provas de que o proprietário da Última Hora "fez declaração falsa de nacionalidade brasileira". Segundo a matéria,
Chaim Wainer, ou Jaime, pai de Samuel Wainer, ao tirar a carteira de estrangeiro, em S. Paulo, (...) a 2-8-43, declarou-se nascido em Edenitz, na Rumânia, tendo chegado ao Brasil, pela primeira vez, em navio cujo nome não se lembra, em 1920. Dora Lerner Wainer, mãe de Samuel, ao tirar a Carteira de Estrangeiro (...), em S. Paulo, declarou ter chegado ao Brasil, pela primeira vez, em 1915, pelo 'Valdívia'. Sua declaração é de 18-9-1942. A 27 de janeiro de 1942 ambos se casaram, para poder tirar essa carteira de estrangeiro, pois antes não possuíam documentos de identidade válidos perante as leis brasileiras. A 17 de fevereiro de 1922, Samuel Wainer compareceu a cartório, no Rio, e declarou (...) ter nascido em S. Paulo a 16 de janeiro de 1912, sendo primeiro filho, e legítimo, de Jaime (Chaim) e Dora Wainer. Assim, Samuel teria nascido no Brasil três anos antes de chegarem ao Brasil seu pai e sua mãe[*30].
Ainda nesse dia, comentando a veemente contestação da denúncia, publicada em edição extra da Última Hora[*31], a Tribuna da Imprensa afirmava: "Wainer não provou que é brasileiro". Por fim, sob o título de Wainer deve ser expulso do país, informava ser esta a opinião de "parlamentares sobre a revelação em torno da nacionalidade do diretor da 'Última Hora'"[*32].
A acusação tinha como finalidade exclusiva atingir Samuel Wainer, pois, como ressaltou Nelson Werneck Sodré, o texto da Constituição de 1946 era extremamente ambíguo no tocante à questão da nacionalidade dos proprietários de empresas jornalísticas[*33]. Se, de um lado, a legislação vetava taxativamente essa possibilidade a estrangeiros, de outro, concedia brechas ao capital externo, que se aproveitava amplamente do fato, principalmente no que concerne às agências de notícias, não mencionadas no corpo da lei, o que oferecia oportunidade para interpretações dúbias. Salienta ainda Nelson Werneck Sodré que "revistas dirigidas por estrangeiros, de propriedade de estrangeiros e até impressas no estrangeiro começavam a circular em nosso país, ferindo frontalmente o dispositivo constitucional"[*34].
Ignorando esse fato, a Tribuna da Imprensa passou a dar imenso destaque ao caso, publicando, quase todos os dias, manchetes sensacionalistas a respeito, tais como: Novos documentos oficiais confirmam que Wainer não é brasileiro, Pedidas informações sobre os Wainer ao Ministro da Justiça, Encaminhado à Comissão de Inquérito o dossier sobre a nacionalidade de Wainer[*35], Nasceu mesmo na Bessarábia[*36], etc..
A acusação caía sobre a Última Hora como uma bomba. Movidos, cada um deles, por razões diferentes, Lacerda, Assis Chateaubriand e a oposição udenista desencadearam uma ofensiva irresistível contra Samuel Wainer. Para o dono dos Diários Associados, tratava-se de eliminar, a qualquer custo, um concorrente que ousara desafiar seu monopólio na edição de revistas semanais. Para a UDN, a questão principal era provar que a Última Hora recebera, de fato, um tratamento privilegiado do Banco do Brasil, o que lhe permitiria vincular Getúlio e todos os seus correligionários ao "mar de lama". Finalmente, para Lacerda, essa era a grande oportunidade de se vingar, simultaneamente, de dois grandes inimigos políticos.
A CPI da Última Hora se arrastou por meses e, a despeito de as provas terem demonstrado que praticamente todos os órgãos de imprensa, inclusive a Tribuna da Imprensa, mantinham estreitas relações com as agências financiadoras estatais[*37], a oposição logrou êxito na tentativa de convencer a opinião pública de que, ao fornecer recursos para o jornal de Wainer, o Presidente se envolvera, de fato, num gravíssimo caso de favoritismo[*38].
Os anti-getulistas conseguiam, com isso, uma oportunidade de explorar os preconceitos da classe média a respeito de moralidade e corrupção administrativas, sentimento difundido também no seio das Forças Armadas. Além disso, atingindo fundo o imaginário popular, na época extremamente sensível a apelos nacionalistas, lançava dúvidas sobre o patriotismo de Samuel Wainer, tornando-o, portanto, um alvo mais vulnerável.
No curso das investigações, Wainer e seu irmão José teriam ainda que se defender da denúncia de falsificação de documentos. Com efeito, em julho de 1953, José vasculhou os arquivos do Ministério do Trabalho com o objetivo de achar alguma anotação que comprovasse a chegada da família ao Brasil antes do nascimento do jornalista. Encontrou um rol de roupas datado de 1905, obtendo, com isso, declaração de um funcionário do Ministério, na qual este informava terem os Wainer desembarcado no País naquele ano. Contudo, o documento, publicado pela Última Hora logo depois, desencadearia nova onda de reações por parte de seus adversários.
Acompanhado de David Nasser e Armando Falcão, Lacerda se dirigiu ao Ministério do Trabalho para investigar os papéis encontrados por José Wainer. Após examinar o rol de roupas, um grafólogo especialmente contratado emitiu laudo, onde afirmava ter havido falsificação das datas: o ano de 1920 teria sido, na realidade, adulterado para 1905.
A notícia apareceu com estardalhaço na Tribuna da Imprensa, que passou a apresentar manchetes diárias a respeito, tais como: Falsificado um documento no Ministério do Trabalho; Enviada à perícia do DFSP a lista de passageiros adulterada no Ministério[*39], Impressão geral no Ministério de que a lista foi adulterada[*40]; Falcão denuncia Wainer como criminoso comum[*41]; Já foi identificado o falsificador da lista[*42]. O escândalo, que deu origem a um novo processo, acabou provocando a condenação de Samuel Wainer e de seu irmão a um ano de prisão. Porém, a pena não chegou a ser cumprida e, no julgamento da ação sobre sua nacionalidade, em novembro de 1955, o jornalista seria absolvido no Supremo Tribunal Federal (STF) por unanimidade.
Lacerda aparentemente atingira seu objetivo: a Última Hora, apesar de conseguir manter as vendagens, passaria a enfrentar graves dificuldades financeiras, decorrentes da debandada dos anunciantes em direção a outros jornais. Por sua vez, o governo, a cada dia mais acuado pela oposição, não se mostrava disposto a socorrê-la e, assim, no início de 1954, o Presidente da República determinou a execução imediata das dívidas da empresa perante o Banco do Brasil[*43].
Valendo-se de estreitas ligações com Luiz Fernando Bocayuva Cunha, genro de Ernesto Simões Filho, Ministro da Educação, Wainer logrou reunir os recursos necessários para saldar o débito. Porém, no dia do vencimento só chegou à sede do Banco após o encerramento do expediente, e o pagamento acabou sendo efetuado, de fato, depois de oficialmente expirado o prazo. O dinheiro foi recebido por ordem de Oswaldo Aranha, Ministro da Fazenda, em atendimento a um pedido de Simões Filho. Como não soubesse que Wainer havia conseguido quitar a dívida, a Tribuna da Imprensa chegou a noticiar o fechamento da Última Hora. E, ao tomar conhecimento da atitude do Ministro, Lacerda investiu furiosamente contra ele.
Na realidade, poucos dias antes, Aranha divulgara nota oficial em que justificava a decisão de autorizar o Banco do Brasil a vender, para a Imprensa Nacional, o lote de papel que, na condição de fiador da Última Hora, pagara a uma empresa fornecedora estrangeira. Aproveitando-se disso, em 5 de março de 1954 Lacerda proclamou ter o Ministro "transformado o Banco do Brasil em vendedor de papel para não ter que levar a 'Última Hora' à Justiça".
Resumindo a questão, Lacerda informava:
A 'Última Hora'-Wainer obteve com Jafet a fiança do Banco do Brasil para um contrato de papel (...). A 'Última Hora'-Wainer deixou de cumprir o contrato, não pagando o vendedor. O Banco do Brasil passou a pagar, honrando a fiança. Aranha, que tem em Jafet um de seu íntimos, não tomou qualquer providência para responsabilizar Jafet pelo negócio. Dantas[*44] requer a Aranha que dê ordem à Alfândega para que o Banco do Brasil retire esse papel sem pagar os impostos a que estaria obrigado. Aranha CONCEDE ESSA AUTORIZAÇÃO, sob pretexto de que no Banco 'predominam os interesses da União'. A lei não cogita desse predomínio. (...) Dantas, então, passa a vender ao Tesouro Nacional o papel que a 'Última Hora' não pagou. Com isso, deixa a 'Última Hora' descumprindo o contrato sem que nada lhe aconteça. O devedor relapso encontra no Banco do Brasil mãe carinhosa que se ocupa dos seus interesses, vende para ele a mercadoria que comprou e não pagou[*45].
Nas edições que se seguiram, Lacerda continuou a lançar duríssimas acusações contra Aranha[*46]. Porém, dessa vez sofreria fisicamente as conseqüências, pois, dias depois, Euclides Aranha, filho do Ministro, o atacou a socos num famoso restaurante do Rio de Janeiro[*47].
Apesar da campanha, a Última Hora conseguiria sobreviver ainda por alguns anos. As dificuldades cresceriam, porém, com o golpe militar de 1964. Por fim, em 1972, o jornal seria vendido para um grupo liderado por Mauricio Alencar, que então assumira o controle do Correio da Manhã.
Bibliografia:
Fontes:
Arquivo Castilho Cabral – CPDOC/FGV
Correio da Manhã
Maquis
Observador Econômico e Financeiro
O Semanário
Tribuna da Imprensa
Última Hora
Livros e artigos:
ABREU, Alzira Alves de, LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Fechando o cerco: a imprensa e a crise de agosto de 1954 In: GOMES, Ângela Maria de Castro, org. Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
BELOCH, Israel, ABREU, Alzira Alves de, org. Dicionário histórico-biográfico brasileiro. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001.
DULLES, John W. Foster. Carlos Lacerda: a vida de um lutador (1914/1960) . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, v. 1.
FRANCIS, Paulo. Trinta anos esta noite: o que vi e vivi. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LACERDA, Carlos. A exposição anti-comunista. Observador Econômico e Financeiro. v. 3, nº 36, janeiro/1939.
MENDONÇA, Marina Gusmão de. A criação da Tribuna da Imprensa e a defesa dos interesses conservadores no Brasil. Revista de Economia Política e História Econômica. ano 1, nº 1, setembro/2004.
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SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
SODRÉ, Nelson Werneck. Memórias de um soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
WAINER, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter. Rio de Janeiro: Record, 1988.
WAINER, Samuel. O debate da sucessão presidencial não poderá ser mais contido In: LACERDA, Carlos et al. Reportagens que abalaram o Brasil. Rio de Janeiro: Bloch, 1973.
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