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Artigo publicado na edição nº 32 de agosto de 2008.
Os índios em Mato Grosso no governo de Antônio Rolim de Moura (1751-1765)

Loiva Canova

O contexto das minas do Cuiabá e do Mato Grosso

A colonização da região de São Paulo, diferente da de outras áreas no litoral, teve na mão-de-obra indígena a base de sua formação econômico-mercantil, e os colonos responsáveis pelo projeto deram as costas ao intenso comércio negreiro que acontecia em outras partes da colônia portuguesa. Essa história consolida-se na ocupação da região de São Paulo, no ano de 1553, tempo em que se abriu uma espécie de porta de entrada para uma vantajosa atividade econômica: a preação de índios. Nessa perspectiva, o sertão representava uma fonte segura de mão-de-obra cativa.

Vemos que, com o passar do tempo, a preação tornou-se uma atividade de especialistas e, nas viagens rumo ao interior, os sertanistas enfrentavam distâncias maiores, nos avanços em direção à sociedade dos Guaicuru e dos Paiaguá, até alcançar o oeste da colônia portuguesa daquelas terras até então “sem dono certo”. Essas viagens deram-se no início do século XVII, quando sertanistas partiam de São Paulo apresando índios em terras onde poderiam auferir minério, desejo acalentado pelos colonos mais próximos do litoral brasileiro, os paulistas[*1].

Segundo Holanda, desde o ano de 1622, vários grupos de sertanistas provenientes de São Paulo iam para as terras mato-grossenses incumbidos do exercício da preação de índios. No ano de 1648, “Raposo Tavares atravessa a região de Vacaria, sobe o Paraguai, para ganhar os rios da Bacia Amazônica”, e, seguindo esse exemplo, muitos outros o sucedem. Nessas viagens, nas últimas duas décadas do século XVII, as terras ao oeste do Brasil começam a ser efetivamente devassadas e povoadas pelas ações dos sertanistas. Ao explicar a história das monções, o autor diz que “principiam a aparecer” quando as bandeiras já entravam em declínio e “aparecem servidas por instrumentos diferentes, guiadas por métodos próprios e movidas até certo ponto por uma nova geração de homens”[*2].

Em 1719, Paschoal Moreira Cabral descobriu ouro junto a um afluente do rio Cuiabá, chamado de Coxipó-Mirim. Ele e sua expedição andavam atrás da preação de índios da região. Nesse lugar, o alvo eram especialmente, os Coxiponés. Passados três anos, as minas do Cuiabá entram nesse cenário, a partir de 1722, quando o ouro é encontrado à flor da terra pelo sertanista Miguel Sutil. Essas minas são descritas pelo Capitão em 1732, como as de “mais larga extensão do domínio da Coroa”, e, sobre a sua localização, “ficam no mais interior de todo o estado do Brasil”[*3].

Foi no esforço para fundar a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, no ano de 1726, que Rodrigo César de Meneses aplicou todo “cuidado, indústria, e com despesas” de seus soldos investiu no envio de “muitos moradores” para aquelas terras, com objetivo de produzirem mantimentos. Porque de muito precisava ser dilatada a fronteira naqueles “desertos indecisos pela linha imaginária”[*4].

Só na monção de 1726, em que viajou Rodrigo César de Menezes, chegaram ao porto do rio Cuiabá cerca de três mil pessoas, entre negros e brancos, num comboio com mais de 300 canoas. Mas o ouro desse lugar escasseou em menos de uma década, e as minas tão famosas se tornaram pouco atrativas. As dificuldades daí advindas suscitaram o anseio de novos achados. Por esse motivo, houve o deslocamento de muitos mineradores para o oeste da Vila Real de Cuiabá e essas mais novas minas foram encontradas nos ribeirões Sararé e Galera, afluentes do rio Guaporé[*5].

Assim, a região do Mato Grosso, conhecida pelos colonizadores desde o início dos anos trinta do setecentos, no vale do Guaporé, constituiu em uma nova frente de colonização, que determinou uma nova ocupação na bacia daquele rio, em direção à Amazônia.

A consolidação da colonização, através da fundação da Vila-Capital na fronteira do Guaporé empregou à Coroa Portuguesa uma significativa máquina jurídico-administrativa e diplomática para fundamentar uma geopolítica de ocupação territorial que lhes garantisse a fixação, cujo prólogo foi a criação da Capitania de Mato Grosso[*6]. Estas terras se integrariam, como espaço de fronteira ainda indefinida, entre as possessões espanholas e lusitanas na América, o que levou o Conselho Ultramarino português a determinar que se fizesse da Capitania de Mato Grosso o antemural da colônia[*7]. A coroa portuguesa nomeou para tal fim um nobre ilustrado para governar a mais nova capitania, criada em 1748. Antônio Rolim de Moura, na margem direita do rio Guaporé, em 1752, fundaria a Vila Bela da Santíssima Trindade, a primeira capital da capitania de Mato Grosso. Antes, porém, permaneceu por um ano na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, onde decidiu políticas administrativas sobre a capitania e especificamente executou ações instrutivas em relação aos índios considerados mansos.

Os índios no governo de Antônio Rolim de Moura

Nas instruções régias que Antônio Rolim de Moura recebeu da rainha de Portugal para governar o Mato Grosso, estão meticulosas orientações sobre o tratamento às nações indígenas; uma política clara de preservação e incorporação enquanto vassalos do rei, com os mesmos direitos e prerrogativas, como se brancos fossem. Ou seja, a política indigenista posta como componente do conjunto de ações destinadas ao objetivo final, a ocupação do território e a demarcação das fronteiras, que deveriam assegurar dos mais próximos conquistadores da América, os espanhóis.

Para explicitar essa idéia, vemos que, em 19 de janeiro de 1749, Antônio Rolim de Moura, depois de nomeado primeiro governador e capitão-general da Capitania de Mato Grosso, viaja para cumprir sua missão no Mato Grosso. Além da responsabilidade de definir as fronteiras da Capitania do Mato Grosso, foi-lhe incumbido a instrução de proteger os índios mansos. Sobre esse assunto, assim orientou a Majestade portuguesa:

(...) Pelo que toca aos índios das nações mansas, que se acham dispersos servindo aos moradores a título de administração, escolhereis sítios nas mesmas terras donde foram tirados, nas quaes se possam conservar aldeiados e os fareis recolher todos ás aldeias, tirando-os aos chamados administradores, e pedireis ao provincial da Companhia de Jesus do Brazil vos mande missionários para lhes administrarem a doutrina e sacramento. Igualmente lhes pedireis para se descubra, não consentindo que se dissipem os Índios ou se tirem das suas naturalidades, ou se lhes faça dano ou violência alguma, antes se appliquem todos os meios de suavidade e industria para os civilizar, doutrina em tudo como pede a caridade cristã[*8].

Ao seguir as orientações ditadas pela rainha, Antônio Rolim de Moura fazia conhecida sua “desaprovação” à escravidão dos índios mansos. Desde o início de seu governo, em bandos publicados em locais públicos, “proibiu” a escravidão que continuava pelos sertanistas aos índios de modo geral. No documento que segue, vemos claramente a persistência dos preadores de índios em manter as práticas escravistas. Da parte do governo, vale ressaltar as ameaças de punição àqueles que insistiam em levar para fora da Capitania de Mato Grosso os escravos sem sua autorização. Entretanto, percebe-se com nitidez uma política de proteção traiçoeira e, acima de tudo, pérfida, uma vez que nas palavras do capitão há um discurso concessivo à saída de índios da então Capitania:

(...) Por quanto me consta que muitas pessoas desta capitania saiem em bandeiras a buscar gentio ao mato ainda daquelas nações que sua majestade não tem mandado dar guerra, e trazendo-os violentamente das suas aldeias, com morte e ferimentos de muitos, o que he tanto contra as ordens de S. M., que proibe expressamente e contem a mesma lei divina: ordeno e mando que daqui em diante pessoa nenhuma vá a tal diligência sob pena de ser castigado. Conforme as ordens de sua Majestade e de lhe serem tirados não somente os índios que trouxer, mas também o que eles tiverem de baixo de sua administração: outro sim ordeno também que pessoa alguma possa levar para fora da capitania. Indios nenhum de qualidade que sejam mos apresentar primeiro a tirar licença minha por escrito, e o que ao contrário fizer serão tomados os ditos indios e prezo e castigado aos meus arbitrio e para que venha a notícia de todos se lançará este bando a som de caixas, e se fixara na parte pública desta vila (...).[*9]

A política de proteção e conservação dos índios precede a publicação das leis que constituiriam, posteriormente, o Diretório[*10], tendo como objetivo fundamental a civilização dos índios, transformando-os em vassalos da Coroa portuguesa, com os mesmos “direitos e prerrogativas” que os brancos. Sobre esse tema, ilustra Perrone-Moisés:

A catequese e a civilização são os princípios centrais de todo esse projeto, reafirmados ao longo de toda a colonização: justificam o próprio aldeamento, a localização das aldeias, as regras da repartição da mão-de-obra aldeada, tanto a administração jesuítica quanto a secular, escravização e o uso da força em alguns casos.[*11]

Em conjunto com outros poderes administrativos, a Igreja trabalhava seu espaço de conquista religiosa e formava dupla importante no contexto de formação de uma história ocidental marcada pela conquista do europeu sobre as múltiplas sociedades americanas.

Aldear índios, ensinar-lhes a língua portuguesa e mantê-los sob a orientação de missionários jesuítas asseguraria o domínio lusitano destas partes da América. Subtrair as distâncias e estabelecer procedimentos que identificassem o poder de Portugal em terras da América eram os objetivos a serem alcançados. As instruções da Coroa determinavam a fundação de aldeias para os índios. Em se tratando da história da Capitania de Mato Grosso, lugares, aldeias e vilas tiveram acentuada presença da população nativa[*12].

Perrone-Moisés afirma que aos “índios aldeados e aliados é garantida a liberdade ao longo em toda a colonização” e significava a “realização do projeto colonial”. No entanto, a liberdade não era respeitada. A legislação prescrevia que os índios deveriam, quando requisitados, trabalhar mediante o pagamento de salários e deveriam ser bem tratados; porque deles dependia, também, a defesa do território. Seguindo as explicações da autora, a legislação “indígena é tradicionalmente considerada como contraditória e oscilante por declarar a liberdade com restrições do cativeiro a alguns casos”[*13].

Tal análise encontra sustentação em carta do capitão-general e governador da Capitania de Mato Grosso ao rei D. José I, na qual há a confirmação de que foi enviada às minas do Cuiabá ordem real para formar aldeias que servissem ao recolhimento dos índios mansos, aqueles que se encontravam “dispersos em poder dos chamados” administradores. Os pedidos deveriam ser feitos e encaminhados ao Provincial da Companhia de Jesus do Brasil e aos missionários. Conseguindo enviar este pedido e sendo atendido, Rolim de Moura levou para a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá dois missionários da Companhia vindos do Rio de Janeiro, que compraram, na dita cidade, os materiais precisos para a fundação da primeira missão na Chapada dos Guimarães. Ao chegar nas minas do Cuiabá, buscou logo o governador um sítio para fins do aldeamento, para nele mandar “plantar os frutos necessários, levantar Igreja e fazer casa”[*14]. Em função da demora do envio das finanças por parte do Provincial do Conselho da Companhia de Jesus e atendendo à necessidade de fundação de um local para destino de índios que fugiam aos maus tratos e rigores dos administradores, usou logo de comprar por oitocentas oitavas as benfeitorias de um sítio que se achava sem carta de sesmaria, tendo na terra bons matos para plantar[*15].

A situação de muitos índios era lastimosa: índios “miseráveis”, vivendo em condição de “abandono”, sob “o mando dos seus administradores”, e em “sua maior parte andavam inteiramente nus”. As doenças eram motivos de muitas mortes e em nada eram assistidos por seus administradores. Para mediar os problemas do descaso e da falta de provedoria aos índios mansos, Rolim de Moura escreve da necessidade do recolhimento e que era preciso “acudir a muitos, com alguma cobertura e curá-los, das queixas que padeciam sem remédio”. Em razão do pouco rendimento da Provedoria e dos gastos tidos no trato com estes índios, antigos projetos de levantamento de igreja e mais obras “para o cômodo dos missionários” foram protelados.

Todo este distrito de Cuiabá (...) os achados de gentios de que hoje não há mais do que uns pequenos restos com que se acham na mão dos administradores que me parece não chegaram seiscentos. Precisamente assim havia de ser porque desde que estas terras se descobriram sempre os sertanistas andavam em busca deles. Chegando a alguma aldeia depois de atenderem o poder de fogo metiam em correntes as mulheres e homens que podiam ter em serventia ou para a consciência ou para o serviço das roças e o que era inútil passavam a colhe-lo ordinariamente como também os que no caminho mostravam qualquer repugnância recolhidos as suas casas os vendiam aos pretos e chegando a remetê-los publicamente até as terras de João Gonçalves Pereira que serviu de ouvidor e por isso algum cobro porém ficaram sempre até a minha vinda fazendo as mesmas vindas ou ocultas ou paliadas (...).[*16]

Há, no texto, um jogo de forças sócio-políticas na qual emerge a disputa entre o poder do Estado e os colonos pelo controle da população indígena. Existia, evidentemente, a “tendência dos colonizadores em desrespeitar as condições de utilização da mão-de-obra aldeada”[*17].

Os documentos que tratam sobre a construção de missões no espaço colonial mostram intenções da convicção da possibilidade de transformar os índios mansos em civilizados. O aldeamento defendido pelos agentes cristãos e pelos homens do poder público na Capitania de Mato Grosso tem por objetivo “a realização do projeto colonial, pois garantia a conversão, a ocupação do território, sua defesa e uma constante reserva de mão-de-obra para o desenvolvimento econômico da frente colonizadora”.

Antônio Rolim apropriou-se do método comparativo e hierarquizador usado pelo Estado para discriminar as diferenças entre o europeu e outras sociedades. Essa observação é elucidada em sua correspondência de 1758, na qual firma suas posições, em análise que conceitua os índios e os negros como povos inferiores:

A brutalidade, que de ordinário se vê nos índios, causa naturalmente uma desconfiança material de que lhe não aproveitem para civilizarem, e reduzirem a uma vida racional meios alguns. Porém verdadeiramente para isto não há outro fundamento mais de que uma redução tirada do que neles se observa a qual para fazer prova necessitava, se tivessem experimentado as diligências, que vossa Excelência põem em prática, sendo que pelo contrário todos até aqui, como de mão comum tem concorrido para os conservar na mesma estupidez, em que são (...) na sua terra[*18].

Continua sua avaliação e estende sua posição aos negros:

Não se pode negar, que os índios tem pior disposição para efeito, que as outras nações; pois vemos, que os pretos que chegam boçais (...) suas terras, dentro de pouco tempo se aladinam e adquirem (...) para se governarem; o que não sucede de ordinário aos índios (...) também não se pode dizer, que essa má disposição seja invesível (...) havendo ainda aplicado diligência especial a esse (...) casos se contam deles, que indicam uma grande falta de (...) mas também me constam outros ao contrário[*19].

Ampliando o quadro de análise, percebemos posições assumidamente etnocêntricas sobre os índios e os negros, que foram avaliados e definidos pelos portugueses, na maioria das vezes, como indivíduos sem-razão. Foram classificados e excluídos por cristãos que os reduziam às categorias de sujeitos socialmente imaturos, incapazes de integrar a identidade do homem europeu. Nessa perspectiva, lemos no discurso a representação de um edifício cultural que promoveu padrões de normalidade e de exclusão social com o objetivo de fazer com que o índio fosse obrigatoriamente enquadrado na cultura do colonizador, com este último decidindo o que lhe faltava.

No entanto, suas considerações aos padrões sociais na formação da identidade colonial em relação aos índios Paresi, por exemplo, superaram os dos negros que, segundo o capitão-general, ocupavam o estágio da “estupidez”. O capitão registra que nas minas do Cuiabá e do Mato Grosso houve exemplo de conduta social que assegurava a aspiração dos administradores coloniais. Nesse sentido, há casos avaliados pelo Capitão em que os Paresi articularam uma imagem integrada ao pensamento do homem “civilizado”: “(...) nestas minas se acha um índio Paresi casado, que vive sobre si com roça, e criações, sem ter, nem necessitar de administração de ninguém”[*20].

Esses exemplos tornam explícitos os argumentos postos em forma de Lei no Diretório, onde ficava estabelecido o reconhecimento de que nas povoações, índios e brancos teriam nas administrações locais “as representações da Justiça e da Fazenda, e teriam do direito de gozar cargos públicos. O trabalho agrícola, o comércio e demais atividades econômicas sugeridas pelo ambiente de cada povoação”[*21].

O governador usa desse exemplo para atestar que os índios, através de reduções, “possivelmente” viveriam como “homens racionais, principalmente aplicando-lhe os meios aptos para esse fim com tanta discrição, e atividade, e zelo”. Estas palavras estavam, à época, em conteúdo de correspondência dirigida ao governador da Capitania do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado.

Em síntese, definidos de acordo com um sistema de classificação que opõe índios e não-índios, barbárie versus civilização, índios mansos versus índios bravios. Os dóceis interagem com os colonizadores num jogo de sedução e dominação, que ora os condena ao sacrifício da escravidão e das mortes provocadas pelo processo de conquista, ora lhes acena com a proteção da Coroa, interessada em fazê-los súditos de Sua Majestade, o rei de Portugal.

Apesar de existir certa uniformidade na política da Coroa para suas terras na América Colonial portuguesa, observa-se que esta nem sempre prevaleceu quando se tratava dos povos indígenas, uma vez que a localização mais ou menos estratégica de suas terras, do ponto de vista da política de expansão portuguesa, e a condição de mansos ou de bravios em que eram categorizados estes povos, entre outros aspectos, criava diferenças nas ações, na legislação e nas soluções relativas a eles.

Nota-se que houve um ziguezague da política em relação aos índios na colônia. Essa situação pode ser atribuída à conjuntura política e econômica em que vivia a metrópole. E, para equacionar o problema, extremamente complexo, a solução passava no fundo pela “desindianização”, perda da identidade étnica.

Com base nos estudos de Ângela Domingues, entende-se que houve dificuldades da parte da Coroa em fixar uma linha contínua de atuação do relacionamento entre os colonos e os índios, mesmo após a declaração das leis do Diretório. Estas leis nunca se concretizaram na prática. Domingues, como Almeida, afirma que a legislação aplicada no território luso-brasileiro mostrou que o estatuto indígena variou entre a liberdade absoluta e o cativeiro legal. Os valores, neste período, estavam “assentados na idéia da salvação da alma e da europeização dos índios”, havendo, ainda, o interesse pelo “melhoramento civilizacional dos índios”[*22].

É possível verificar, através da documentação, que a contradição não foi apenas característica da legislação indigenista e, nesse sentido, o comportamento de um preador de índios merece atenção, na medida em que deixa parte de um legado patrimonial, em testamento, aos índios por ele escravizados:

Senhor nestas minas há anos Fernando Dias Falcão, um dos grandes sertanistas que houve extraio bastante indio (...) se usava com violencia servindo-se dele como cativo. Estando para morrer teve muito que lhe abrisse os olhos manifestando-lhe o encargo com que se achava, pelo que tornou a resolução e deixar no seu testemunho vinte mil cruzados para cativos, (...) e declara assim seu filho, o testamenteiro José Paez Falcão, que foi o próprio que o aconselhou o seu pai.[*23]

Nesse caso, o preador de índio lançou mão de seu patrimônio na tentativa, talvez, de aplacar a consciência. A doação tinha, neste caso, um sentido de remissão, um lenitivo misericordioso para com aqueles a quem teve por escravos durante a vida. A situação torna-se mais aguda quando esses sertanistas se encontram à beira da morte, momento, talvez, de invocação dos santos e pedidos de perdão para as falhas cometidas durante a vida.

A restituição paga pelo sertanista ficou sob a responsabilidade da Real Fazenda das minas do Cuiabá, sob as ordens de Antônio Rolim de Moura, sendo que essa parte do inventário caberia aos investimentos “nos aumentos das aldeias, na consideração dos poucos meios que para isso tem a fazenda real desta capitania”.

Essas descrições, ora apresentadas, tencionaram ressignificar algumas práticas políticas desenvolvidas no governo de Rolim em território de fronteira. Certo é dizer que o representante do governo português em Mato Grosso contou com a população ameríndia para tornar efetivo o processo de colonização.

Dessa forma, a temática em questão, teve por objetivo apresentar alguns elementos da política portuguesa no governo de Antônio Rolim de Moura e a execução dessa política pelo seu governo. Aqui fica um caminho para futuras discussões que, de início, apontou fragmentos dessa história imensamente rica na fronteira luso-brasileira e em específico, a atuação do índio na parte mais central da América do Sul e na sua margem mais dilatada, o Mato Grosso.

Referências bibliográficas

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Licenciada e Bacharel em História pela Universidade Federal de Mato Grosso, em 1990. Especialista em “Semiótica da Cultura” pela Universidade Federal de Mato Grosso, em 1996. Especialista em “Metodologia da Pesquisa em História: A Capitania de Mato Grosso-Temporalidades e Espacialidades” pela Universidade Federal de Mato Grosso, em 2001. Mestre em História na área “História, Territórios e Fronteiras”, pela mesma universidade em 2003 e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integra o corpo docente efetivo do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) desde 1994. E-mail: loiva.c@terra.com.br
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 75 e GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas representações sobre Mato Grosso. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 43.
Sérgio Buarque de Holanda assim define monções: “Qualquer das expedições que desciam e subiam rios das capitanias de São Paulo e Mato Grosso, nos séculos XVIII e XIX.” (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 2000, pp. 43-44).
CORRÊA FILHO, Virgílio. História de Mato Grosso. Várzea Grande, Fundação Júlio Campos, 1994, pp. 199-203.
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Nas palavras de Rita Heloísa de Almeida, o Diretório significa “um documento jurídico que regulamentou as ações colonizadoras dirigidas aos índios, entre os anos de 1757 e 1798 (...) um instrumento jurídico criado para viabilizar a implantação de um projeto de civilização dos índios na Amazônia”. ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de civilização no Brasil no século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p.14.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras : Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992, p.122.
SILVA, Jovam Vilela da. Op., cit., p. 27.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Op., cit., p. 116.
CORRESPONDÊNCIA enviada pelo governador e capitão general da capitania de Mato Grosso Antônio Rolim de Moura Tavares ao rei D. José. Vila do Cuiabá, em 11 de julho de 1751.CT: AHU-ACL-CU-010, cx.06, doc.355. APMT.
Idem.
Idem, ibidem.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Op., cit., p. 121.
OFÍCIO enviado pelo governador e capitão-general da Capitania de Mato Grosso Antônio Rolim de Moura ao governador e capitão-general da Capitania do Grão Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Vila Bela da Santíssima Trindade, em 14 de dezembro de 1758. CT: AHU-ACL-CU-010, cx. 10, doc.596.APMT.
Idem.
OFÍCIO enviado pelo governador e capitão-general da Capitania de Mato Grosso Antônio Rolim de Moura ao governador e capitão general da Capitania do Grão Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Vila Bela da Santíssima Trindade, em 14 de dezembro de 1758. CT: AHU-ACL-CU-010, cx. 10, doc.596.APMT.
ALMEIDA, Rita Heloísa de. Op., cit., p. 14.
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações e Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 27.
CONTA. Vila do Cuiabá, em 30 de junho de 1751. Livro de Registro, provisões, cartas, requerimentos e bandos / Fundo: Secretaria do Governo. Governo de Antônio Rolim de Moura Tavares, (1750-1767). APMT.