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Artigo publicado na edição nº 33 de outubro de 2008.
As letras subversivas:
expulsão, panfletagem e notícias oficiais na diocese de Mariana

Patrícia Ferreira dos Santos

1. O discurso de Clemente XIII à época da Expulsão dos Jesuítas

No ano de 1760, um ano após a expulsão dos padres da Companhia de Jesus dos domínios lusitanos, o Papa Clemente XIII dirigiu-se ao bispo de Mariana, Dom Frei Manoel da Cruz, através da seguinte Bula:

A todos os fiéis Cristãos que virem as presentes Letras, saúde e Bênção Apostólica. Chegamos a conhecer alto e profundo do mar; e para que a tempestade das ondas nos não soçobre, soprando os ventos contrários, clamamos a Deus com inenarráveis gemidos para que no ofício do Apostolado, por nós recebido e em satisfazer a este gravíssimo emprego, muito desigual às nossas forças, se digne copiosamente conceder-nos a ajuda e socorro de sua eficacíssima graça, e receba benignamente as orações que neste dia da nossa tribulação freqüentemente fizemos. Quem, pois, com todo o entendimento e membros não tremeria? Quem no maior tormento do seu terror se não angustiaria? E quem por causa da tristeza totalmente não desmaiaria? Tendo diante dos olhos e ponderando diligentemente a funesta face da Religião Católica, e desta Sé Apostólica? Quem finalmente não choraria continuamente tão horríveis danos e ruínas feitas, assim na fé e doutrina, como nos nossos direitos apostólicos?[*1]

A Expansão Ocidental promovida pelo Reino de Portugal, sob a égide da Igreja, nos remete à interdependência entre os dois gládios, mas também a momentos como esse, da expulsão da Companhia de Jesus, momento de impasse entre as hierarquias de Roma e do Reino. A Expansão, acelerada no século XVI, foi fenômeno bifronte: demandou incorporação territorial e espiritual. A configuração do mundo de antanho, sem contigüidade territorial e cheia de “espaços inimigos” – protestantes, muçulmanos, gentios –, estimularia esse projeto comum entre Estado e Igreja[*2]. O encontro com as populações de diferentes lugares demandava um projeto racional e permanente para o mundo ultramarino. Envolveria corpos de ações e políticas, principalmente em meio ao duplo desafio da Reforma e do descobrimento dos novos territórios na América[*3].

A aliança Estado-Igreja seria planejada tendo em vista esse macro-panorama do tabuleiro mundial e contemplando as pretensões universalistas da Igreja e econômico-mercantis da monarquia portuguesa. Uma convergência de objetivos, planejada do alto. O plano mais específico, local, territorializado, encontraria semelhante precisão? A interdependência entre a Fé e o Império se revelaria sofrivelmente amigável – seriam muitos os desafios e impasses que se apresentariam. Nesse artigo, pretendemos detectar, nos discursos reais e papais acerca da Expulsão dos Padres Jesuítas, uma dessas situações de impasse e de negociação entre as diretrizes nem sempre convergentes da Fé e o Império.

Esse foi o caso da extinção da Companhia de Jesus, adiada até 1772, com a firme resistência do papa Clemente XIII. Ascendendo, porém, Clemente XIV ao Pontificado, as seguintes Letras seriam publicadas e comentadas pelo rei de Portugal em carta ao Bispo de Mariana:

[folha 1:] Aos 9 de fevereiro de 1772 se registrou uma carta de Sua Majestade, que Deus Guarde, feita ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Bispo sobre a extinção e supressão da Companhia de Jesus, do teor e da forma seguinte: Rdo. Bispo de Mariana, amigo. Eu vos envio muito saudar. O Nosso Mui Santo Padre Clemente XIV ora Presidente na Universal Igreja de Deus pela sua Bula expedida em forma de Breve, que principia “Dominus Ac Redemptor noster Jesus Christus”, dada em Sta. Maria Maior, debaixo do anel do Pescador, no dia 21 de julho deste ano 5º de seu Feliz Pontificado, suprimiu todos e cada um dos seus ministérios, ofícios casas, escolas, colégios, hospícios, residências, com todos os seus Estatutos, Constituições, Decretos, usos, costumes, Privilégios Gerais, e especiais, absolvendo-os dos votos todos os indivíduos da mesma Companhia: e transferindo nos respectivos Ordinários a jurisdição que sobre eles teve até agora o seu abolido geral, por ficarem reduzidos ao Estado Clerical os que tiverem ordens da [eras?]; como tudo mais amplamente consta do sobredito Breve Apostólico , que com esta será. E porque para a execução dele, tendo acertado o meu Real Beneplácito e régio auxílio, recomendado por Sua Santidade, como vos fará presente a lei que sobre este importante negócio mandei publicar na minha chancelaria: me pareceu participar-vos o referido; não só para que antes de tudo fôsseis render a Deus Nosso Senhor as mais solenes graças pela especial providência, e iluminação, com que visivelmente inspirando, e guiando todas as disposições do mesmo Santo Padre desde o primeiro dia, em que tão dignamente subiu à cadeira de São Pedro até o dia 21 de julho deste corrente ano e destinou para empreender com iluminada compreensão, prosseguir com singular prudência, e confessar com apostólica Constancia uma obra de que dependia todo o sossego e Paz da Igreja Universal, e tranqüilidade// [folha 2] publica de todas as monarquias, soberanias, e Povos das quatro partes do Mundo descoberto: e não só para que no que vos pertencer hajais de executar, e fazer executar as sabias, prudentes e paternais disposições do referido Breve; mas também para que fazendo-o registrar com esta nos livros, a quem tocar sejam os exemplares de hum e de outro, guardados em cofre de três diferentes chaves, para perpétua memória de todos os séculos futuros. Escrita no palácio de Nossa Senhora da Ajuda, em 9 de setembro de 1773 = Rei = Para o Bispo de Mariana[*4].

2. A Fé como um socorro dos Monarcas Cristãos

O Papa representava o socorro internacional dos monarcas cristãos em seus descobrimentos e avanços: “doutores tem a Santa Madre Igreja, que está em Roma e poderá suprir e tirar os escrúpulos” – afirmara um Autor Anônimo do século XVIII[*5]. Por outro lado, os reis poderiam proceder com violência contra os eclesiásticos se ficasse constatado crime de lesa-majestade[*6].

O Reino, salientava o Anônimo, fora fundado para propagar a Santa Fé Católica, enlaçando definitivamente o sucesso da conquista à Missão: “levem pregadores evangélicos que conquistem o gentio para Deus, e Deus vos dará todos os bens temporais dessas conquistas que venham para nós”, sendo essa sentença de “eterna verdade, que estabeleçamos primeiro o reino de Cristo e logo ficará estabelecido o nosso reino”, e “cansa-se debalde quem tratar as conquistas por outro caminho”[*7]. Os jesuítas se celebrizariam por um intenso trabalho em prol deste ideal. Um melindroso equilíbrio de forças, por outro lado, se revelaria um imperativo da prudência e da própria viabilidade do Pacto Estado-Igreja.

Tal pacto atribuía ao Rei de Portugal a honrosa condição de Defensor da Fé, concedendo-lhe o Título de Grão Mestre da Ordem de Cristo. Esta qualidade e autoridade régia sobre a Igreja Ultramarina seria fartamente evocada, nas dioceses ultramarinas, pelo monarca, funcionários, clero e camaristas das vilas coloniais. Também as populações das conquistas viam-se estimuladas a se identificar, juntamente com os costumes da nação portuguesa, com uma obrigatoriedade religiosa: “somos cristãos-católicos, não desmintamos nossa própria profissão”[*8].

A orientação metropolitana rezava, nessa ordem de coisas, que se mantivessem em comum acordo os representantes pertencentes à hierarquia secular e eclesiástica. A grande maioria desses representantes era letrada – comumente, versados em Direito, como o Ouvidor e os Juízes de Fora. Por sua vez, encabeçava a hierarquia eclesiástica o bispo, que representaria, sob o regime do padroado, um importante papel, porta-voz que era da palavra, ora do papa, ora do rei. Esse primeiro prelado da diocese mineira registrara grande veneração pela Companhia de Jesus. Isso pôde ser detectado textualmente, em suas cartas públicas e particulares, bem como em suas ações. Dom Frei Manoel procuraria direcionar a diocese para um adensamento da disciplina religiosa tridentina, com exercícios espirituais como a Oração Mental, e meditações sobre os sacrifícios de Jesus. A Companhia, no entanto, a um só tempo emprestara seus serviços a Roma e ao rei: jesuítas teorizaram o pacto entre reis e papas, na Segunda Escolástica; contribuíram para a catequização e difusão da Fé Católica em larga escala. Por outro lado, vieram representar, em mais de um momento, uma ameaça concreta ao Pacto Estado-Igreja. Como já se afirmou, a Companhia possuía uma organização teocrática, por sua imensa fidelidade ao papa[*9]. Tudo teria levado os Jesuítas a uma organização teocrática[*10].

3. O impasse internacional e a repercussão local

Embora a expulsão dos jesuítas de Portugal e domínios houvesse ocorrido, oficialmente, em 1759, veremos que sua punição e dissolução, em 1773, inseria-se em um tenso e intrincado processo de lutas, travadas no território das Missões, entre os seus padres, os colonos e diferentes autoridades seculares – Governadores, Ouvidores e até Bispos. O velho dissídio da Companhia por outra autoridade que não fosse a do Papa acabaria por se manifestar de maneira acintosamente contrária aos interesses da Coroa Portuguesa[*11].

Alguns episódios emblemáticos dar-se-iam na Província do Grão Pará e Maranhão, que, no século XVIII, dividia-se em Missões confiadas a diferentes ordens regulares: jesuítas, franciscanos, mercedários, carmelitanos. Tal região tornara-se um alvo estratégico de políticas de povoamento por parte da Coroa Portuguesa, por volta da assinatura do Tratado de Madri, em 1750. A necessidade de controle impunha-se a Portugal, tendo em vista a forte tensão dominante no cenário internacional, e a concorrência de várias potências européias em torno das novas possessões. Desta forma, algumas iniciativas implantadas pela Coroa circunscreviam estratégia de povoamento e defesa daquela porção. Por atingir diretamente as Missões e sua população, no entanto, tais políticas modificavam pactos e feriam concessões de jurisdição temporal aos religiosos, que remontavam à época de Dom João V. Talvez o descontentamento dos inacianos fosse inevitável, porém, o vigor de seus protestos mostraram-se taxativos demais para as pretensões concentradoras de um ministro que, à essa mesma altura, ganhava do rei Dom José a rara honra de ser nomeado “seu principal comissário e plenipotenciário com amplíssimos e ilimitados poderes”[*12].

A hostil reação da Companhia e dos indígenas sob seus cuidados à recepção, nas aldeias, às expedições demarcadoras de limites da região Norte da América Portuguesa, contrastava vivamente com a boa acolhida oferecida pelos franciscanos. Os jesuítas teriam negado canoas, indígenas e mantimentos para auxiliar nas expedições, e promovido a deserção dos que as acompanhavam. Paralelamente, era nomeado e empossado, em 1751, para o Governo da Capitania do Grão Pará e Maranhão, o irmão de Sebastião José de Carvalho e Mello, então Conde de Oeiras e futuro Marquês de Pombal. Este dignitário protagonizaria vários conflitos com o Provincial da Ordem dos Jesuítas, e levaria a cabo várias represálias da Coroa a seu afrontoso dissídio. Gradativas ordens régias foram cassando antigos benefícios anteriormente concedidos aos inacianos. A Coroa intervinha mais, fiscalizava mais os aldeamentos; e ameaçava mais. Um duro golpe fora desferido em 1755, quando três diplomas régios eram sancionados, de forma a estimular o casamento com as índias, restituir aos índios a liberdade sobre suas pessoas, bens e comércio. O diploma de 7 de junho de 1755 pareceria terrível aos inacianos: a Coroa recolocava em vigor uma Lei de 12 de setembro de 1653, que vedava às ordens religiosas o exercício da jurisdição sobre os indígenas, aprovando o estabelecimento de governo e justiças seculares para as aldeias[*13].

Os conflitos sucessivos dos jesuítas com colonos e dignitários seculares, em contexto tão pouco favorável, lograriam um ápice dramático com a sua Expulsão do Reino de Portugal e domínios. Reduzidos às ordens sacras, os padres estariam novamente submetidos a uma autoridade eclesiástica ora apreciada, ora combatida: os bispos. Havendo, portanto, sido expulsos os padres jesuítas em 1758-1759, em 9 de fevereiro de 1774, Dom Frei Manoel da Cruz se dirigira aos seus diocesanos na cidade episcopal de Mariana, apresentando a notícia da extinção da Companhia de Jesus:

Aos 9 de fevereiro de 1774 se registrou uma de lei de El Rei Nosso Senhor, que Deus guarde, pela qual manda munir com a Sua Real autoridade a execução da Bula com que Sua Santidade suprimiu, extinguiu inteiramente a Companhia denominada de Jesus, a qual é do teor e forma seguinte = Dom José, por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além Mar, em África Senhor de Guiné e da Conquista, Navegação, e Comércio da Escócia, Arábia e Pérsia, e da Índia, vos saúda. Aos vassalos de todos os Estados dos meus reinos e senhorios, saúde. O nosso antecessor Sto. Pe. Clemente XIV, ora presidente na Universal Igreja de Deus, tendo observado, examinado e combinado desde a eminência do supremo apostolado com as suas claríssimas luzes; [...], com a sua Pastoral mansidão, e com a sua Apostólica prudência não só todos os fatos concernentes a fundação, ao progresso, e ao ultimo estado da Companhia denominada de Jesus em ordem à Igreja Universal, e às Monarquias, Soberanias, e Povos das quatro partes do mundo descoberto; mas também todas as revoluções, tumultos, e escândalos, que nelas causou a sobredita companhia todos os remédios/[folha 3]/ com que não menos que 24 Romanos Pontífices dos Predecessores haviam procurado acorrer a aqueles grandes males, ora com os benefícios, ora com as cominações ora com as correções, e ora com as coações sem outros efeitos que não fossem os de se ter-se manifestado de dia em dia mais freqüentes as queixas, e os clamores contra a referida Companhia, e os de se verem abortar ao mesmos tempos [sic] em diferentes Reinos e Estados do Mundo, sedições, mortes, discórdias e escândalos perigosíssimos; q. destruindo e quase acabando de romper o vínculo da Caridade Cristã, inflamarão os ânimos dos fiéis nos espíritos de divisão, de ódio, e de inimizade até chegarem a fazer-se tão urgentes os referidos insultos, e os perigos deles, que os mesmos Monarcas, que mais se tinham distinguido na piedade e na liberalidade hereditária em beneficio da mesma Companhia, foram necessariamente constrangidos não só a exterminarem todos os sócios dela desde os Reinos, Províncias e Domínios, por se este extremo remédio o único, que as urgências igualmente extremas podiam (...) já permitir-lhes para impedirem que os Povos Cristãos dos seus respectivos Reinos, e Domínios se provocassem, ofendessem e lacerassem uns aos outros dentro do seio da Santa Madre Igreja e dentro das suas mesmas Pátrias, mas também a recorrerem no mesmo tempo à Sede Apostólica, interpondo em causa comum a todas as maiores instâncias da sua Autoridade para total abolição e extinção da mesma Companhia, como único meio que já lhes restava para proverem assim na perpétua segurança dos seus vassalos, como na reconciliação, e sossego público de toda a Cristandade: havendo-se também acumulado com os mesmos instantíssimos motivos os outros muitos eficacíssimos rogos, súplicas, e votos, que muitos Bispos, e insignes varões muito conspícuos pela sua Religião, e doutrina, e Dignidade, haviam feito soar na Cadeira de São Pedro aos ouvidos do Supremo Pastor com//[folha 4] estas e outras justíssimas, e urgentíssimas causas; depois de haver concluído, demonstrativamente o mesmo Santo Padre, que a sobredita Companhia não só não podia já produzir o benefício da Igreja, e dos fiéis Cristãos aqueles copiosos frutos que haviam feito os objetos da sua instituição, e dos muitos privilégios com que fora ornada; mas que, muito pelo contrário, era impraticável que a conservação da dita Sociedade fosse já compatível com a restituição, e conservação da constante, e permanente paz da Igreja Universal, e da Sociedade Civil e União Cristã; seguindo os exemplos de seus predecessores nos muitos casos, em que suprimiram, e extinguirão as outras numerosas Ordens Regulares, que, como a de que se trata, abusarão de seus institutos para os tomarem por pretextos de relaxações, de corrupções, e atrocidades, ordenou uma Bula em forma de Breve, que principia = Dominus Ac Redemtor Noster Jesus Christus = dada em Santa Maria Maior, debaixo do anel do Pescador, no dia 21 de julho deste ano quinto do seu Pontificado. Por decreto do seu maduro conselho, certa ciência e plenitude do Poder Apostólico extinguiu e suprimiu inteiram.te a mesma companhia chamada de Jesus, abolindo e derrogando todos, e cada hum dos seus ofícios, ministérios, administrações, casas, escolas, colégios, hospícios, residências, e quaisquer outros lugares a ela pertencente, em qualquer Reino, Estado ou Província, que sejam existentes; como também todos os seus Estatutos, Constituições, Decretos, Costumes, e Estilos, todos os seus Privilégios, e Indultos Gerais, ou especiais, por mais exuberantes que sejam; declarando inteiramente cassada, e perpetuamente extinta toda a autoridade do Propósito Geral, de todos os Provinciais, Visitadores, e de quaisquer outros Superiores da dita Sociedade, assim nas coisas espirituais como nas temporais: transferindo nos respectivos ordinários toda a jurisdição sobre as pessoas dos indivíduos dela, absolvendo-os dos votos, fazendo passar ao Estado Clerical os que tiverem Ordens Sacras: determinando a estes respeitos// [fl.5] as paternais providencias que mais legalmente se contêm no referido Breve. E porque tenho acordado para a execução dele (como é de razão) o meu Real Beneplácito, e Régio auxílio, recomendados por Sua Santidade, havendo já feito escrever a todos os Metropolitanos, Diocesanos, Prelados destes meus Reinos, e Domínios, que façam registrar e guardar nas suas respectivas Câmaras, e cumprir e observar, inteiramente as disposições do mesmo Breve (no que a cada um deles pertencer); mando a todos os Tribunais, Governadores, Magistrados, e Justiças dos meus sobreditos Reinos e Domínios, que todos e cada um deles nas suas respectivas jurisdições examinem com o maior cuidado, primo, se nelas torna aparecer algum indivíduo com roupeta ou distintivo algum do hábito da referida Companhia abolida; secundo; se entre os que foram dela expulsos, e se acham tolerados se tem algumas práticas, ou se fazem alguns conventículos ordenados ou se associações entre si, ou a caluniarem o referido Breve; tertio; se há, ainda, quem se atreva a sentir mal do conteúdo nele em todo, ou em parte; quarto, que havendo algum, ou alguns de seus Réus, contra toda a presente esperança, sejam presos, autuados, e remetidos às cadeias da Cidade de Lisboa à Ordem do Dr. Juiz da Inconfidência para ou sobre eles determinar o que me parecer justo.
Mando, outrossim, que esta seja registrada, e guardada, com os exemplares do referido Breve, que com ela serão para perpétua memória nos respectivos livros dos ditos tribunais das cabeças das comarcas, e nos das Câmaras nos mesmos cofres, que mandei estabelecer pelo meu Alvará de 3 de setembro de 1759. E mando ao Dr. João Pacheco Pereira, do meu Conselho, e Desembargador do Paço, que serve de Chanceler Mor destes meus Reinos, que faça publicar esta na Chancelaria, e remeter as cópias dela debaixo do meu sello e seo signal a todos os Tribunais, Cabeças de Comarcas, Vilas destes Reinos, e Terras do Tombo. Dada no Palácio de [Ordigo] e Terras do Donatário deles enviando-se o original dela o meu Real//[fl. 6] Arquivo da Torre do Tombo. Dada no Palácio de N. S. da Ajuda aos 9 dias do mês de setembro do ano do Nascimento de Nofso Senhor Jesus Cristo de 1773. El Rei com guarda = Marquês de Pombal = Carta de Lei por que Vossa Majestade, conformando-se com as Paternais Intenções do muito Sto. Pe. Clemente XIV ora Presidente na Universal Igreja de Deus, e acordando o seu Real Beneplácito, e Régio auxilio à Bulla, que principia = Dominus, Ac Redemptor Noster Jesus Christus = dada no dia 21 de julho deste presente anno, que suprimio e extinguio inteiramente a Companhia denominada de Jesus, todos os sés estatutos, e privilégios: manda munir com a sua Real autoridade a execução das referidas determinações Apostólicas em todos os seus Reinos, e Domínios, tudo na forma acima declarada = Para Vossa Majestade ver = Registrada na Secretaria de Estado dos Negócios do Reino no [Livro] das Cartas, Alvarás, Patentes à folha 142 verfo. N. S. da Ajuda, em 10 de setembro de 1773 = João Batista de Araújo = João Pacheco Pereira = Foi publicada esta carta de lei na Chancellaria-Mor da Corte, e Reino, no Livro das Leis, à folha 768. Lisboa, 13 de setembro de 1773 = Antônio José de Moura = João Batista de Araújo a fez”[*14].

Desta forma, a Ordem que, por tempos, parecera tão bem encarnar o princípio de Portugal como “Patrimônio de Cristo”, tornara-se agora uma ameaça perniciosa aos interesses do Reino de Portugal e uma série de cartas, documentos, alvarás, breves papais e panfletos exporiam, de muitas formas, a sua desgraça. Assim, a bula do papa Clemente XIV deveria ser comemorada com solenidade. Os párocos das principais freguesias receberam a seguinte ordem:

Aos 12 de abril de 1774 se registrou uma carta circular do Ilmo. E Revmo. Governador deste Bispado para os Vigários das Freguesias da Paragem Sumidouro, S. José da Barra, Furquim, S. Caetano, S. Sebastião Antônio Pereira, Camargos-Inficcionado, Catas Altas, do teor seguinte [:] ‘O Ilustríssimo e Rmo. Sr. Gov. do Bispado me determina por ordem que tem de S. Mercê Fidelíssima ordene a todos os Revdos. Párocos da Comarca desta Cidade para que cada um de per si respectiva freguesia, logo que receber esta, sem perda de tempo, faça na Matriz cantar solenemente Te Deum Laudamus, em três dias sucessivos com assistência de todo o clero, e estado maior solenemente participará V. mercê aos seus paroquianos quando assistirem a mesma função que se dirige a render a Deus as graças pela especial providência e iluminação com que visivelmente tem inspirado e inspira o Santíssimo Padre Clemente XIV, ora presidente na Universal Igreja, e muito principalmente pela extinção e abolição que fez da Companhia chamada de Jesus, e persuadirão V. Mercês aos seus paroquianos da parte de Sua Santidade, e de Sua Majestade Fidelíssima, queirão fazer esta demonstração pública, mandando pôr luminárias nos referidos três dias de noite, o que tudo observarão V. Mercês pena de serem castigados com as penas que o mesmo Ilmo. Snr. Foi servido determinar ficando V. Mercê na certeza logo que receberem esta farão copiar, e enviar aos párocos imediatos para circular a comarca passando recibos e remetendo-os à Câmara Episcopal. Deus Guarde a V. Mercê. Palácio Episcopal da Cidade de Mariana, 8 de fevereiro de 1774[*15].

A autoridade do rei mandava que se comemorasse o fim da Companhia de Jesus. Mas várias “cabeças rolaram” no bispado de Minas Gerais. O Dr. Francisco Xavier da Rua era, a essa altura, aos 13 de dezembro de 1775 destituído do cargo de Governador do Bispado de Mariana pelo Bispo Dom Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis, que possuía na Cidade de Lisboa o seu Palácio de “interina Rezidencia Episcopal”. Alegava Sua Excelência para destituí-lo do cargo, jurisdição e autoridade, “justos motivos”, para que, a partir de então, o “Dr. José Justino de Oliveira Gondim nosso Governador, Provisor e Vigário-Geral pudesse cumprir com Justiça tudo o que a bem do serviço de Deus e Nosso Senhor conduzisse a sincera paz e união das ovelhas que constituem o rebanho do Bispado”[*16].

Um termo de posse era concedido ao Dr. José Justino Godinho, em dezembro de 1775[*17]. Mas este dignitário também seria cassado por ordem régia. Dom Bartolomeu o destituiria por carta, conferindo autoridade e jurisdição episcopal, desta vez, ao Dr. Inácio Corrêa de Sá, também “por justos motivos”, mas, sobretudo, por ordem do rei, conforme expressa o bispo: “e por nos conformarmos com as Régias Intenções de Sua Majestade, que Deus guarde, suspendemos, e havemos por privado, e deposto dela”[*18].

O clima de instabilidade ainda aumentaria no Bispado, quando foram ordenadas devassas para localizar os responsáveis pela circulação de papéis sediciosos a favor da Companhia de Jesus. A situação deveria ter gerado enorme tensão, tendo sido o bispo residente um manifesto amigo dos padres jesuítas, e que, ainda há pouco, mostrava orgulho do sobrinho jesuíta, ao qual desejava que o viesse auxiliar na direção do Seminário que fundara em Mariana[*19].

Muitas perseguições e prisões de clérigos se dariam após a expulsão. O Cônego Francisco Xavier da Silva, tornado célebre pela oratória nas exéquias de Dom João V na Catedral de Mariana, apesar das simpatias e renome conquistados na Corte, seria acusado de panfletagem a favor dos Padres da Companhia, e remetido preso para Portugal em 1760; aparecera em Vila Rica “um papel sedicioso, a favor dos Padres da Companhia de Jesus”. A devassa realizada pelo Juiz Ordinário Luís Henrique de Freitas em nada resultara, e o Conde de Bobadela ordenava ao Desembargador Agostinho Félix Pacheco que marchasse sobre Vila Rica, com a diligência de apurar o autor do “abominável papel”. O Padre Francisco da Costa seria apontado como “autor do papel”, junto ao Cônego Francisco Xavier da Silva. Sendo, ambos presos e tendo os bens confiscados, o último obteria liberdade anos depois. Em um aviso, lia-se ordem para que fosse restituído, em 1765, em sua cadeira capitular, e que se suspendesse o seqüestro de seus bens. Ordenava-se pagamento de suas côngruas vencidas e não percebidas desde sua prisão. Na cadeira capitular permaneceria desta vez até sua morte, em 1775[*20]. Há quem diga que muitos dos Padres Jesuítas não abandonariam a região[*21].

Em 23 de outubro de 1761, uma carta do Secretário de Estado ordenava ao Bispo que publicasse a “sentença proferida na inquisição dessa cidade contra o desgraçado Malagrida”, “que pelas suas mesmas declarações se conheceram claramente seus erros”. Na carta, disse o Bispo que “Assim ele os confessasse, e retratasse sinceramente; mas são altos e incompreensíveis juízos de Deus, que permite tão execrandos erros pelos inescrutáveis fins, que Ele sabe”[*22].

Esses seriam alguns equilíbrios e desequilíbrios da ação pastoral sob o Padroado Régio, trazendo a predominância de diretivos atinentes ora ao serviço religioso, ora ao metropolitano. Constantes eram os atritos entre as prioridades de ambos. Esses relatos evidenciam o devir das alianças, dos arranjos e dos discursos, os quais, uma vez imbricados e afinados, ganhavam eloqüência na identificação e perseguição dos dissídios ameaçadores às forças políticas dominantes.

Referências Bibliográficas:

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SILVA, Renata Rezende. Entre a ambição e a salvação das almas: a atuação das ordens regulares em Minas Gerais (1696-1759). São Paulo, FFLCH-USP, 2005, Dissertação de Mestrado.
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Pesquisadora de História de Minas Gerais e do Brasil Colônia. Bolsista Capes para a pesquisa de doutoramento: “Carentes de Justiça: clérigos e juízes seculares e eclesiásticos na confusão de latrocínios das Minas Setecentistas”, sob orientação do Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar. Como pesquisadora, atua junto ao Núcleo de Estudos da Religião, vinculado à Universidade Federal de Ouro Preto, nas seguintes linhas de pesquisa: História das tradições religiosas do Brasil e História da Arquidiocese de Mariana.
Bula de Clemente XIII a Dom Frei Manoel da Cruz – 1760. AEAM. Seção de Governos Episcopais: D. Frei Manoel da Cruz. Armário 1, Gaveta 1ª, Pasta 14. Bulas Pontifícias.
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NEVES, op. cit., p.28-30.
Carta de El Rei de Portugal, 1772, acerca da supressão da Companhia de Jesus. AEAM, Seção de Governos Episcopais. Governo de Dom Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis (1773-1779). Gaveta 3, Pasta 2. Diversos.
XXIII: Dos que furtam com unhas temidas. ANÔNIMO do Século XVIII. Arte de Furtar: espelho de enganos, teatro de verdades, mostrador de horas minguadas, gazua geral dos Reinos de Portugal oferecida a El Rei Nosso Senhor Dom João IV para que a emende (...) Apresentação de João Ubaldo Ribeiro. Porto Alegre: L & PM, 2005. p. 137.
L: Mostra-se qual é a jurisdição que os reis têm sobre os sacerdotes. ANÔNIMO do Século XVIII, op. cit., p. 232-233.
Quaerite primum regnum Dei, et haec omnia adjicientur vobis. Mat. 6”. XXIX: Dos que furtam com unhas irremediáveis; XXIX: Dos que furtam com unhas irremediáveis. ANÔNIMO do Século XVIII, op. cit., p. 155.
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TORRES, J. C. De O. História das Idéias Religiosas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1968, p. 21ss; 49-50.
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COUTO, Jorge. “O poder temporal nas aldeias de índios do Estado do Grão Pará e Maranhão no período pombalino: foco de conflitos entre os jesuítas e a Coroa (1751-1759)”. In: SILVA, M. B. N. (Coord.) Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, p. 53 ss.
COUTO, Jorge. “O poder temporal nas aldeias de índios do Estado do Grão Pará e Maranhão no período pombalino: foco de conflitos entre os jesuítas e a Coroa (1751-1759)”. In: SILVA, M. B. N. (Coord.) Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Estampa, 1995, p. 53 ss.
Outra Dita. AEAM, Seção de Governos Episcopais. Governo de Dom Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis (1773-1779). Gaveta 3, Pasta 2. Diversos.
Carta Circular do Sr. Governador do Bispado para os Párocos das Paróquias e Igrejas desta Comarca. AEAM, Seção de Governos Episcopais. Governo de Dom Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis (1773-1779). Gaveta 3, Pasta 2. Diversos.
O Sr. Dr. José Justino de Oliveira Godinho, para tomar posse desse Bispado. AEAM, Seção de Governos Episcopais. Governo de Dom Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis (1773-1779). Gaveta 3, Pasta 2. Diversos.
Termo de juramento e posse. AEAM, Seção de Governos Episcopais. Governo de Dom Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis (1773-1779). Gaveta 3, Pasta 2. Diversos.
Provisão pela qual V. Excia. he por bem nomear para Governador Provisor e Vigário-Geral do Bispado de Marianna ao Revdo. Cônego Doutoral Ignacio Correa de Sá – 1772. AEAM, Seção de Governos Episcopais. Governo de Dom Bartolomeu Manoel Mendes dos Reis (1773-1779). Gaveta 3, Pasta 2. Diversos.
SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). São Paulo, 2007. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
TRINDADE, R. O. (Côn.) Arquidiocese de Mariana: subsídios para sua História. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953, 2ª ed., v.1,p. 343-344.
SILVA, Renata Rezende. Entre a ambição e a salvação das almas: a atuação das ordens regulares em Minas Gerais (1696-1759). São Paulo, FFLCH-USP, 2005, Dissertação de Mestrado, p. 88.
COPIADOR de algumas cartas particulares, Organização, revisão, notas e estudo crítico e Aldo Luiz Leoni, f. 210v, Índice Antroponímico.