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Artigo publicado na edição nº 34 de janeiro de 2009.
Pobreza no Brasil Colonial:
representação social e expressões da desigualdade na sociedade brasileira

Maria da Penha Smarzaro Siqueira

Introdução

A reflexão sobre as questões que envolvem entendimentos diversos sobre a pobreza e a desigualdade social, na perspectiva de nossa pesquisa, inscreve-se em um projeto maior, desenvolvido no Programa de Mestrado em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo, na linha de pesquisa “Estado e Políticas Públicas”, e tem como foco a questão social na perspectiva histórica da modernidade, abrindo frentes de estudos temáticos voltados, principalmente, à História Regional, priorizando as fontes primárias do valioso acervo do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

Tema de grande expressão no fórum de debates sociais e políticos, a pobreza e suas representações se incluem num complexo universo social, econômico, cultural e político, aliadas às questões teóricas e conceituais. Nesse contexto, identificamos as referências iniciais sobre a pobreza no Brasil colonial, no ideário da construção ideológica cristã que se estruturava na caridade, e na expressão dos princípios da desigualdade social, noções que vão percorrer tempos históricos posteriores.

Inerente à organização da sociedade colonial, desenvolvem-se as atividades das Ordens Mendicantes e da Misericórdia, tendo, como representação maior, a Santa Casa da Misericórdia, que em Vitória (locus da pesquisa) foi de fundamental importância nas funções sociais da cidade.

A modernidade e o ideário do projeto colonizador

Na perspectiva da evolução histórica, a modernidade representa um processo complexo de mudanças direcionadas a distintas dimensões. Inicialmente, o tema nos reporta ao projeto sociocultural europeu nascido em meados do século XVI, que se consolida com o Iluminismo no século XVIII. Tempo marcado pela emergência do capitalismo, enquanto modo de produção dominante nos países europeus, com bases na fase inicial da industrialização. Podemos considerar a trajetória da modernidade europeia, nesta fase inicial, como uma etapa precursora, na qual a modernidade evoluía num ideário filosófico e intelectual, conquistando tanto avanços materiais e políticos quanto uma maior consciência popular. Um movimento que estabelecia a nova “fronteira” entre moderno x antigo, noção que se estende ao século XIX, quando se configura mais precisamente a modernidade.

Para Sousa Santos (1996), o projeto sociocultural da modernidade, por sua complexidade, esteve sujeito a desenvolvimentos contraditórios, num contexto onde a força das dimensões da racionalidade agia como fator de entendimento do mundo. As relações sociais sofreram alterações significativas a partir do momento em que o potencial transformador da racionalidade aprimora as técnicas de produção e da opressão, atingindo fundamentalmente a subjetividade humana. Uma nova lógica de lucro/poder/domínio reorganizava a sociedade, que se desenvolvia com base na força e ampliação da tecnologia, fortalecendo o processo de reificação do trabalho humano. As diferentes dimensões da modernidade promoveram sua expansão de maneira abrangente, tendo, esse ideário, a necessidade de conectar-se com realidades distintas e adquirindo, assim, configurações diferentes.

Tratamos aqui da fase inicial da trajetória da modernidade europeia, que constitui a referência obrigatória para o entendimento do processo e dos princípios do projeto colonizador na América, notadamente no Brasil. O ideário da modernidade europeia, expresso principalmente a partir do século XVI, vai ser determinante para uma nova concepção de mundo, promovendo uma superação da tradicional estrutura de comércio marítimo e alargando os horizontes das relações comerciais em esfera internacional com as grandes navegações.

A concepção moderna, entendida pela razão, destruiu a noção tradicional que o mundo medieval havia construído nos preceitos divinos, em que os fenômenos universais só poderiam ser interpretados a partir de um entendimento teológico. O novo ideário do mundo físico promoverá avanços significativos no campo da ciência, possibilitando descobertas científicas que viabilizem o aperfeiçoamento de novos instrumentos de navegação e de outras instâncias socioeconômicas (Souza Santos, 1996). Ao que parece, essa nova concepção seria o grande divisor de águas para o entendimento da modernidade no século XVI. A razão encaminhará, nos séculos seguintes, os princípios de entendimento do mundo, sendo esses reforçados pelo Iluminismo no século XVIII.

Nesse contexto, grandes transformações econômicas, políticas, sociais e culturais se estabeleciam na Europa ocidental, marcando e expandindo o ideário da modernidade numa perspectiva universal. Nesse ideário, a colonização portuguesa na América representará as relações de poder tanto na esfera econômica quanto na esfera política da nova ordem europeia, ou seja, as bases estruturais do Antigo Regime absolutista, no campo político e do Mercantilismo, no campo econômico.

Do ponto de vista cultural, a consolidação do absolutismo português, aliado a um clero poderoso, até a primeira metade do século XVI, deu continuidade aos contatos entre a intelectualidade portuguesa e o humanismo, incluindo Portugal nos circuitos internacionais do Renascimento. A grande abertura cultural, verificada antes de 1540, sofreu um corte abrupto com o movimento da Contra-Reforma, dando lugar aos processos inquisitórios e à rigidez das propostas da renovação católica, rompendo os vínculos com o humanismo (Wehling & Wehling, 1994).

A ruptura com o movimento humanista foi decisivo no processo colonial brasileiro, uma vez que condicionou os quadros mentais do novo país aos estreitos limites da ortodoxia católica, de acordo com os direcionamentos que estabeleciam a renovação escolástica na Península Ibérica, estendendo-se à Espanha. A importância da Igreja, como pólo político autonômo, permanece com relevante representatividade na sociedade moderna, notadamente na Península Ibérica, que visava uma direção integral da vida pela moral cristã.

[...] De todos os poderes que então coexistiam, a Igreja é o único que se afirma com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes, quotidianos e imediatos [...] de um lado a outro a influência disciplinar da Igreja exerce-se continuamente. (Espanha, 2000, p. 125)

A integração entre Estado e Igreja tinha, em Portugal, sua expressão maior na aliança entre os direitos do rei (lei) e o direito da igreja (canônico). Assim, as tendências que são postas em prática com a renovação dos princípios filosóficos-teológicos alargam os ideais tradicionais, que reaparecem com força na prática do projeto colonizador. O Brasil recebeu esse ideário, em um contexto no qual a América representava o “novo” na noção do moderno e, ao mesmo tempo, o “locus” da transposição de práticas arcaicas e contraditórias já existentes na sociedade europeia e, em boa medida, herdadas do mundo medieval (Silva, 2007). Duas práticas caminharam juntas nesse processo: a humanista-cristã e a agromercantil-escravista, dando forma à colonização na América. Para atingir os objetivos cristãos, nenhum órgão da Igreja foi tão eficaz quanto a Companhia de Jesus “[...] quanto à economia colonial, teria como eixos a associação orgânica entre a grande propriedade fundiária e monocultura, e o trabalho escravo” (Fragoso & Florentino, 1993, p. 101), que se ampliava no movimento mercantil do tráfico de negros africanos.

Desta forma, a articulação do estado português com a colônia brasileira foi marcada por valores próprios do Antigo Regime, pautado no arcaísmo metropolitano, que concebeu na colônia uma elite mercantil formadora de uma sociedade fundamentada no trabalho escravo e no comércio colonial primário-exportador (Fragoso & Florentino, 1993).

Assim, a representação da modernidade no Brasil, enquanto resultado da colonização lusa, alicerçou um processo de domínio político e exploração comercial, aliado ao escravismo e ao ideário missionário cristão, uma vez que “[...] Portugal, em tempos dos descobrimentos ainda não havia incorporado à lógica da modernidade, gerando um atraso civilizatório na prática colonial” (Holanda,1995, p. 96).

A pobreza, suas representações e os fundamentos da desigualdade social

Ao longo da evolução histórica, o caráter degradante da pobreza, do ponto de vista econômico, social e cultural, afigura-se de modo diferenciado, sendo também diversos os contextos em que se manifesta. É nessa ótica que a formação das ideias e dos valores que permearam a sociedade medieval se firmaram e estabeleceram as representações e a dinâmica social cristã. Representações que constituíram a gênese da construção ideológica da pobreza, ou seja, o elogio à pobreza é uma herança medieval.

Na sociedade medieval cristã, a expressão maior é o Evangelho, e o elogio à pobreza enraíza-se nos programas ideológicos que tomam a Sagrada Escritura como referência. Muitas e diferentes doutrinas nascem em torno da noção de pobreza, mas será sempre a mensagem social do Evangelho a fornecer os elementos (Geremek,1987). A imagem e a expressão social do pobre no mundo medieval “[...] cria um elo de relações sociais determinantes na sociedade; afinal, o ethos da pobreza agrega o elogio à esmola ao elogio a salvação” (Mollat,1989, p. 119).

A modernidade no século XVI vai gerar mutações na reflexão da práxis social, uma vez que vai celebrar, na sociedade pré-industrial, o elogio ao trabalho, agora visto como uma ação transformadora, que passou a refletir profundas mudanças na mentalidade coletiva (Geremek, 1987). O ideário da pobreza, enquanto valor espiritual, enfraquece-se na medida em que novos padrões passam a derrubar essa noção. “[...] O trabalho torna-se ‘o principal direito do homem, que almeja comandar o destino e conquistar riqueza’” (Geremek, 1987, p. 219). Aqui reside a mutação radical no ethos da pobreza, “[...] quando se dá o decisivo aggiornamento das doutrinas religiosas, das atitudes coletivas e da política social face à pobreza” (Geremek, 1987, p. 13).

Na evolução do ethos da pobreza, assiste-se, na modernidade, a novos sinais para um outro modelo de pauperização: a pobreza sócio-industrial, gerando as noções determinantes da desigualdade social do mundo moderno capitalista. No século XVI, a Europa já estava superpovoada: os pobres já constituíam um sinal de problema nas cidades e as massas de miseráveis, para as quais não havia lugar nem no campo nem na cidade, tornam-se um elemento constante da paisagem social da Europa, vivendo de trabalhos ocasionais e esmolas (Geremek,1995).

A situação das massas pobres em Portugal não se diferenciava dos demais países europeus. No século XVI, Portugal vivia um clima de contradições internas, entre as práticas das virtudes de uma nova ordem burguesa e a prática tradicional da Igreja Católica, renovando os princípios católico-feudais. Nesse clima de contradições, no Brasil, a escravidão negra, o latifúndio e a monocultura firmaram-se, aliados a um conjunto de fatores do sistema mercantilista, assentando a economia e as bases sociais da sociedade colonial brasileira.

Entre os dirigentes da colonização, em seus vários setores – o clero, a família patriarcal, a massa trabalhadora escrava e os pobres livres –, legitimava-se a estrutura social da colônia e cumpria-se a obra da colonização, que foi “[...] avultando com o tempo o número dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma” (Prado Junior, 1996, p. 279). Os recursos materiais para os destituído eram muito escassos, o que agravava a situação entre os extremos na escala social, sinalizando a formação das raízes da desigualdade numa sociedade organizada em senhores e escravos, a minoria dos primeiros e a multidão dos últimos.

A matriz colonial, nos seus pilares de sustentação – apoiados no caráter autoritário, patrimonialista e escravocrata –, criou uma herança de dominação excludente e produziu uma sociedade permeada por relações autoritárias de poder, estruturada em uma cultura política que envolveu colonizador e colonizado na reprodução da desigualdade social, dando origem a uma rígida estratificação de classes sociais (Sales, 1994).

A pobreza perpassou toda a sociedade colonial entre a riqueza e a opulência de outras classes sociais, sem distinção entre a economia açucareira, mineradora e outros segmentos econômicos estabelecidos na colônia, marcando o quadro das desigualdades sociais.

Os pobres constituíam uma camada social de impossibilitados e desclassificados, criados na indigência, sem condição suficiente de sobrevivência. Viviam de biscates e esmolas, amparados pela caridade da Misericórdia e da Igreja (Piva, 2005). Essa camada de desclassificados sociais foi se alargando até o século XVIII, predominantemente com negros livres, mestiços, brancos sem trabalho e/ou biscateiros, mendigos, bastardos e oriundos de núcleo familiar dirigido por mulheres sozinhas, que se amesquinhavam na sombra da caridade nas cidades (Souza, 1986).

Até a abolição da escravatura, o Brasil já estava povoado de pobres, caracterizando uma pobreza rural extensiva aos centros urbanos. Numa sociedade marcada por extremos bem definidos – senhorial e escrava –, a população livre e pobre, num processo contínuo de desclassificação social, protagonizou a situação de carência, miséria e exclusão do Brasil colonial.

A Ordem da Misericórdia e a ação da caridade na égide do projeto colonizador

O ideário da doutrina cristã difundiu princípios que sustentavam a dependência social da pobreza e caridade, em uma construção ideológica que vai percorrer a sociedade colonial, independente das novas roupagens do discurso moderno predominante. Para Portugal, a colonização e a montagem de estruturas socioeconômicas hierarquizadas no novo mundo serviam ao claro propósito de preservar a antiga ordem metropolitana. No contexto do projeto colonizador, transferem-se para o Brasil os princípios lusitanos, que ressaltavam a noção de pobreza na concepção da religiosidade, e promoveram a expansão do projeto de assistência pela ação da Ordem da Misericórdia, que promovia auxílio espiritual e material aos necessitados, de acordo com a proposta de assistência social do Estado português.

A criação da Irmandade da Misericórdia na colônia brasileira fundamenta-se nos princípios de reafirmação dos dogmas católicos com o movimento da Contra-Reforma. “[...] a vigência do modelo caritativo impulsionado por instituições como a Irmandade da Misericórdia foi uma das consequências da vitalidade da Igreja Católica em território português”. (Piva, 2005, p. 36)

Em Portugal, já era tradição a prática de dar esmolas, principalmente através de instituições de beneficência mantenedoras caritativas cristãs medievais, dos bodos, que constituía a distribuição de alimentos aos necessitados, e das mercearias, que eram tipos de asilos onde os pobres eram recolhidos, e onde deveriam rezar diariamente pela alma de seus beneficiados (Mesgravis, 1976).

No modelo dessas iniciativas de assistência, também assentadas em hospitais e albergarias, foi criada, no final do século XV, a mais significativa e permanente instituição de assistência portuguesa: a “Irmandade da Misericórdia”, que veio para o Brasil aliada ao projeto colonizador, e retrata uma concepção cristã “[...] era a forma dos mais ricos exercitarem a caridade e ‘ascenderem ao reino do céu’” (Sposati, 1988, p. 83).

Criada com o objetivo de prover assistência aos necessitados, a “Misericórdia”, instituição tipicamente portuguesa de assistência e caridade, atendia os pobres, os doentes, os presos, os alienados, os órfãos desamparados, os inválidos, as viúvas pobres e os mortos sem caixão, predominando a prática de recolher contribuições dos mais afortunados para dar assistência aos pobres e desvalidos, exceto os escravos. A esses, cabia o cuidado dos seus donos (Mesgravis, 1976).

Dentre o amplo universo das instituições de assistência mantidas pela Irmandade, a mais significativa na colônia foi a hospitalar. Foram instituídos hospitais públicos, “Santas Casas”, originando a “Santa Casa da Misericórdia”, assim denominada por fazer parte da Irmandade da Misericórdia (Piva, 2005). Criadas inicialmente com uma função muito mais assistencial do que terapêutica, davam atendimento aos pobres na doença, na vida, no abandono e na morte. Eram abrigados, além dos enfermos, os abandonados e marginalizados (crianças e velhos), criminosos doentes e doentes mentais. Davam assistência aos excluídos do convívio, em uma sociedade em que não se registrava uma preocupação com os problemas sociais. A função médico-hospitalar foi ganhando espaço ao lado da função assistencial. Nas cidades onde foram fundadas, as misericórdias se anteciparam às atividades estatais de assistência social e à saúde (Russel-Wood, 1981).

No Brasil, a atuação desta Ordem da Misericórdia se estabeleceu, inicialmente, pela instituição da esmola, seguida pela ação de assistência institucionalizada, passando posteriormente a assimilar uma noção de filantropia higiênica, uma vez que as epidemias, as doenças contagiosas e a insalubridade das cidades se faziam presentes, atingindo principalmente a população pobre, sem amparo por parte do poder público (Sposati, 1988).

O ideário que gerou as “Misericórdias” tem papel importante na sociedade capixaba. A província do Espírito Santo, com uma precária economia açucareira e vilas muito pobres, alojava uma população livre, desamparada e sem perspectivas de trabalho, tanto no interior quanto na capital. As fontes relacionadas à Irmandade, à Igreja da Misericórdia e à Casa da Caridade atestam atuação dessas instituições na província, mais notadamente em Vitória, durante todo período colonial e tempos posteriores. Além das precárias condições de higiene e de saúde da cidade de Vitória, os surtos de doenças endêmicas e epidêmicas intensificavam a gravidade da precária situação de vida dos pobres, alojados nos espaços mais insalubres da cidade e amparados pela “Misericórdia”, que no inicio atuava na obra de caridade sem comportar um hospital, que veio a ser a maior representação da assistência na cidade de Vitória e demais regiões da Província do Espírito Santo (APE. s: 383.L.19/20).

A Santa Casa da Misericórdia de Vitória foi criada no início do século XIX como uma instituição própria voltada para a caridade e tratamentos de saúde. A construção do hospital se deu pelo viés da ação pública e privada, e a manutenção se dava apoiada na caridade particular. Russel-Wood (1981) esclarece que tradicionalmente em todas as regiões da colônia, eram pessoas abastadas da classe rural, comerciantes urbanos, entre outros segmentos mais afortunados, que compunham o quadro de doadores.

Seguindo as noções higienistas da época, o hospital foi erguido em local de nível elevado aos mangues, visando afastar a população dos riscos de infecção e priorizando também um cemitério no local. Desenvolvia a rede de contribuições direcionada aos pobres e desvalidos, estando, assim, os doadores cumprindo uma função social de beneficência, voltada para a ampla camada da população, constituída em diversas categorias de pobres sem perspectiva de recursos, se não aquele empreendido como produto da caridade, pautado na cultura cristã da bondade e da assistência material e espiritual no ideário universal da Irmandade da Misericórdia.

Considerações finais

Nosso trabalho apresenta reflexões sobre a razão do Estado como premissa ideológica justificadora de ações empreendidas sobre a sociedade, na égide de sistemas estruturados e estruturantes, que cumprem a sua função política de instrumentos de imposição e ou de legitimação da dominação, independente do tempo histórico. Assim, nessa pesquisa, analisamos a lógica da modernidade no ideário do projeto colonizador português, aliado ao inverso deste processo na prática econômica e social do Brasil colonial, situando a pobreza e a caridade numa dimensão estrutural e conjuntural desse projeto, enquanto veículo de dominação política, econômica e ideológica.

Nesse contexto, a “Misericórdia”, enquanto produto da política beneficente implementada pela Coroa Portuguesa no século XV, imprimiu na sua ação toda a manifestação do catolicismo medieval, que pedia a caridade em troca do perdão dos pecados e, consequentemente, a salvação daqueles que ajudavam aos pobres, distanciando-se dos princípios sociais da modernidade. Espalhando-se por todo o Império português, mas sempre atendendo as noções ideológicas e as prerrogativas compromissais da matriz lusitana, com seus paradigmas patriarcais, aristocratas e conservadores, a Irmandade, principalmente através da “Santa Casa da Misericórdia”, buscou adaptar-se às situações locais vividas nas colônias portuguesas. Na Província do Espírito Santo, a Irmandade da Misericórdia marca sua atuação desde o início do tempo colonial, amparando os irmãos confrades e os pobres necessitados de amparo social, e o hospital dessa Irmandade, a “Santa Casa da Misericórdia”, a partir do início do século XIX, passa a ser a maior representação de assistência à pobreza na cidade de Vitória.

A pobreza e a caridade caminharam juntas na organização social da colônia brasileira, num ideário que contemplava a lógica conservadora do projeto colonizar, em que a pobreza cumpria um papel político (fidelidade dos pobres aos doadores afortunados), social (diferenciação das classes abastadas) e religioso (a noção do perdão e salvação dos pecados através da doação aos pobres). Não se registra na história colonial nenhuma indicação que denuncie a vontade e/ou iniciativas por parte do governo e da Irmandade em criar alternativas sociais mais modernas para diminuir a pobreza e o combate à situação de miserabilidade que se espalhava nas províncias. As ações efetuavam-se no sentido da mensagem cristã, que na realidade legitimava a situação dos pobres. Não havia, portanto perspectivas de mudanças, já que o trabalho não era colocado como uma ação transformadora. Historicamente, para a população pobre a caridade tutelada contribuiu para a ausência de um ideário relacionado à noção de cidadania (com direitos e deveres sociais), na constituição da sociedade brasileira.

Fontes manuscritas

Arquivo Público Estadual do Espírito Santo. Governadoria. Série 383. L.19-20

Referências bibliográficas

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Dra. em História Econômica pela USP. Pós-Doutora em Sociologia Urbana pela Universidade Nova de Lisboa – UNL. Prof. do Programa de Pós-Graduação/Mestrado em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo-UFES. E-mail para contato: penhasiq@hotmail.com.