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Artigo publicado na edição nº 35 de abril de 2009.
A criação da Escola Moderna em uma comunidade italiana no ano de 1918

Eliane Mimesse

Introdução

O núcleo colonial de São Caetano foi originalmente fundado em 1877 com a chegada das primeiras famílias de imigrantes italianos provindos da região do Vêneto. As reivindicações efetuadas pelos colonos desde sua chegada centraram-se na tríade igreja, escola e cemitério. Os colonos reivindicavam o que consideravam as obras mínimas necessárias para sua sobrevivência. Detenhamos-nos, neste ponto, na religiosidade exacerbada da comunidade e na necessidade da construção de uma igreja. Existia uma capela nas terras em que foram morar, mas por suas condições precárias não foi considerada digna; esses colonos necessitavam, também, de um pároco que frequentasse a localidade para celebrar as missas e encomendar os mortos, e ainda solicitavam ao governo a construção de uma escola para as crianças.

Quanto à igreja, os próprios colonos a reconstruíram anos após sua chegada com tijolos produzidos pela própria comunidade; o local destinado ao cemitério foi demarcado e oficializado tempos depois da inauguração da nova igreja, em terreno distante desta. As cadeiras de primeiras letras, uma feminina e outra masculina, foram criadas legalmente pelo governo da província de São Paulo em 1883. Neste mesmo ano a São Paulo Railway Company inaugurou a estação de parada de trens na localidade. Até essa data os trens não paravam, apenas reduziam a velocidade para os passageiros poderem embarcar ou desembarcar da composição em movimento.

Com o passar dos tempos fábricas instalaram-se na comunidade, o fácil acesso pela ferrovia propiciou o crescimento da localidade. São Caetano recebia novos moradores, a fábrica de formicida e a fábrica de sabão atrairam a mão de obra para a cidade. Com a instalação das Indústrias Reunidas F. Matarazzo, que arrendaram a fábrica de sabão, o desenvolvimento e o crescimento comercial cresciam a cada dia.

Com a miscigenação da população na comunidade supõe-se que foi considerada aceitável a criação de uma escola libertária. No ano da criação da Escola Moderna número três estavam em funcionamento, a partir dos dados de Mimesse (2001), dez escolas públicas, sendo quatro escolas femininas, duas masculinas, duas mistas e duas noturnas masculinas. Deve-se levar em conta que cada uma dessas escolas correspondia a uma sala de aula, e que as duas escolas noturnas funcionavam nas dependências das fábricas. Foi neste contexto que ocorreu o surgimento de uma escola laica, direcionada aos filhos dos operários e adultos analfabetos, não mais, necessariamente, descendentes dos colonos italianos.

A Escola Moderna

A Escola Moderna foi idealizada pelo espanhol Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909), que no ano de 1901 começou a publicar uma revista de Educação na cidade de Barcelona, Espanha, com o nome de Escola Moderna. Essa publicação deu início a outras e contribuiu para efetivar a construção de tais escolas. Na reunião da Liga Internacional pela Educação Racional, criada por Ferrer, estabeleceram-se as diretrizes para as escolas:

1º La educación dada a la infancia debe sostenerse en una base científica y racional; en consecuencia, debe alejarse de toda noción mística o sobrenatural.
2º La instrucción no es sino una parte de esa educación, la que también comprenderá al lado de la formación de la inteligencia, el desarrollo del carácter, la cultura de la voluntad, la preparación de un ser moral y físico bien equilibrado donde las facultades sean armoniosamente asociadas y conducidas a su mayor potencialidad.
3º La educación moral, menos teórica que práctica, debe ser el resultado del ejemplo y estar apoyada en la gran ley natural de la solidaridad.
4º Es necesario, sobre todo en la enseñanza de la primera infancia, que los programas y los métodos sean adaptados en cuanto sea posible a la psicología del niño, lo que actualmente no se hace ni en la enseñanza pública ni en la enseñanza privada. (ASSAD, 1985, p.10)

Grupos defensores do ensino laico de tendências ideológicas variadas e os anarquistas apoiaram as bases desta escola. Os anarquistas idealizavam a escola laica há tempos, defendiam a autonomia individual, a abolição do Estado, da Igreja e dos partidos políticos. A escola de Ferrer, segundo Assad (1985) pretendia conscientizar a criança sobre as injustiças sociais partindo de exemplos do cotidiano e formar um cidadão livre.

A difusão da ideologia libertária e, certamente, a existência de um número maior de crianças do que de escolas e vagas no ensino público de primeiras letras foram os fatores que possibilitaram o surgimento das Escolas Modernas. Estas organizaram cursos diurnos para crianças e noturnos para adultos. De acordo com os dados do Boletim da Escola Moderna (1918), uma taxa em dinheiro era cobrada dos alunos mensalmente para pagar o salário dos professores e comprar materiais escolares.

As três escolas de Ferrer

Na cidade de São Paulo foi criada a primeira Escola Moderna no ano de 1912, no bairro do Belenzinho. Ela foi denominada Escola Moderna número um e funcionou na Rua Saldanha Marinho nº 66 até o ano de 1915. Mudou-se para a Avenida Celso Garcia nº 262, no bairro do Brás, em 1915 e lá ficou até ser fechada no ano de 1919. Esta escola, como relata Mimesse (2001), foi mantida durante sua existência com donativos dos trabalhadores e simpatizantes do movimento, prática cotidiana entre os membros dos grupos anarquistas. A segunda Escola Moderna, conhecida como número dois, localizava-se na Rua Maria Joaquina nº 13, no bairro do Brás,era distante apenas algumas quadras da escola número um. A Escola Moderna número três foi inaugurada em São Caetano no mês de dezembro de 1918, o local exato de sua instalação não foi encontrado na documentação. As escolas tiveram como diretores e professores - os cargos eram acumulados - João de Camargo Penteado, na número um; Adelino Tavares de Pinho, na número dois; e José Alves, na número três.

No mesmo mês de dezembro de 1918 o inspetor escolar municipal encaminhou o requerimento do professor José Alves ao Secretário do Interior. Este solicitava a autorização oficial para o professor requerente reger as aulas da Escola Moderna, de acordo com as disciplinas do curso primário, na Estação de São Caetano. Segundo a legislação vigente as escolas particulares de ensino primário deveriam solicitar licença para a instalação e funcionamento de seus cursos. O Annuario do Ensino do Estado de São Paulo (1918) instruía que as petições deveriam conter os títulos comprobatórios de capacidade moral e técnica dos respectivos diretores e professores e, ainda, anexar o relatório do inspetor médico, que versaria sobre as condições higiênicas e pedagógicas do prédio escolar.

As duas escolas criadas na cidade de São Paulo e a de São Caetano seguiram o modelo idelizado por Ferrer. Os diretores-professores consideravam importante a publicação de livros escolares para o uso dos alunos, de boletins informativos sobre as atividades desenvolvidas na escola e em outros locais que difundissem o ideal libertário, de pequenos jornais escolares para divulgação da produção dos alunos e outros materiais impressos que fundamentassem e divulgassem o ensino racional, além de preocuparem-se com a formação de seus professores. A metodologia aplicada na sala de aula seguia os preceitos da solidariedade, uns deviam ajudar os outros, a autoridade do professor era mínima, as provas foram abolidas para evitar a competição. Todos os alunos eram valorizados e tinham os seus trabalhos publicados no jornal da escola, participavam também de passeios comunitários, como a ida ao "Jardim da Luz" citada por Jomini (1990), a fim de analisarem e perceberem criticamente os problemas sociais. Existia amplo incentivo à participação dos alunos em todo tipo de atividade, eles ainda frequentavam as festas promovidas pela escola para recitar poesias e cantar. Jomini (1990, p. 95) descreve a liberdade e a solidariedade para os anarquistas:

A liberdade tinha o bem-estar da comunidade como referência. O homem era livre, na medida em que procurava se solidarizar e conciliar seus interesses com os dos outros. [...] A ação solidária pode ainda ser notada na colaboração efetiva existente entre professores. Tal colaboração visava, sobretudo, manter a marcha do trabalho educativo e coaduná-la à necessidade de propaganda. [...] Esse clima de solidariedade, existente entre professores, buscava irradiar-se no meio escolar através de atividades realizadas em conjunto pelas escolas. Festas e passeios comunitários serviram como temas de redações, posteriormente publicadas no jornal dos alunos. [...] os professores, em vez de apresentarem o conhecimento pronto e solidificado a seus alunos, deveriam induzi-los a descobrirem, por si mesmos, as leis que regem os fenômenos da natureza e a perceberem, criticamente, os problemas sociais.

Tendo em vista a disseminação da solidariedade entre os anarquistas, considerou-se como fato corriqueiro a constatação da existência de uma contribuição mensal, por parte dos sindicatos, para a manutenção da Escola Moderna número um, a mais antiga. Neste contexto, o Sindicato dos Laminadores de São Caetano, segundo o Boletim da Escola Moderna, auxiliava a escola com donativos mensais. Esse boletim era editado pelo diretor-professor da escola número um, João Penteado, teve três números publicados e seu objetivo era o de difundir as idéias anarquistas. Em agosto de 1918 surgiu a notícia da pretensão de se:

[...] crear uma escola racionalista para a instrucção e educação dos filhos dos companheiros daquella organisação e da infância proletaria da localidade. Tão bello procedimento é o dos obreiros do Syndicato dos Laminadores de S.Caetano que se torna digno de imitação por parte das outras associações operárias. (BOLETIM DA ESCOLA MODERNA, 1918)

A iniciativa dos operários, filiados a este sindicato de São Caetano, foi de grande valia. Era considerado procedimento comum o governo estadual criar, legalmente, novas escolas públicas quando a comunidade desejasse. Mas, essas escolas demoravam meses para serem providas com cadeiras, mesas e bancos escolares, ou mesmo para existirem fisicamente, pois qualquer edifício público ou privado poderia receber a escola em suas dependências. De modo que os materiais escolares dificilmente eram enviados para as escolas e, em alguns casos, os professores não assumiam imediatamente o cargo. A partir desta constatação, identificou-se a solução encontrada pelo sindicato, que foi a de criar a sua própria instituição escolar, para difundir a sua ideologia e alfabetizar os trabalhadores, adultos e crianças.

As contribuições do sindicato de São Caetano sempre foram altas e mencionadas em todas as três edições do Boletim da Escola Moderna. Considera-se que este sindicato conseguia arrecadar grandes quantias entre seus filiados e simpatizantes, sendo ponto relevante para a criação de uma escola própria. No ano de 1918, como já foi citado anteriormente, foi enviada pelo inspetor escolar a solicitação do professor ao Secretário do Interior requerendo a abertura da Escola número três em São Caetano. Este pedido foi aceito e a escola aberta no mês de dezembro de 1918.

A Escola em São Caetano

A Escola número três seguiu o mesmo programa curricular das outras duas, que era o mesmo do curso de primeiras letras da rede pública. De acordo com o Boletim, as matérias do programa eram compostas por português, aritmética, geografia, história, desenho, caligrafia e préstimos. As aulas eram diurnas para a sala mista e noturnas somente para homens, como estabelecia a legislação vigente. Apesar da defesa aos ideais racionais da coeducação, prevaleceu a ação tácita e moral da comunidade, e apenas os homens poderiam frequentar as aulas noturnas.

As aulas na Escola em São Caetano começaram no início do ano de 1919 e as primeiras impressões sobre essa escola foram publicadas no Boletim da Escola Moderna pelo professor João Penteado:

[...] installação da mesma foi feita, provisoriamente, em predio um tanto acanhado e improprio, mas esse mal, segundo sabemos, vae ser remediado, em breve, com a sua mudança para um predio melhor, [...] o numero de alumnos nella matriculados é bastante regular. E uma coisa digna de nota é o interesse com que a directoria da respectiva associação procura garantir a manutenção da referida escola, que promete progredir. (BOLETIM DA ESCOLA MODERNA, 1918)

A escola foi instalada e funcionou, a princípio, em um local sobre o qual não se tem informações precisas. Esta escola mudou-se, em seguida, para as proximidades das escolas públicas e de algumas fábricas no local então considerado o centro da cidade. A precariedade das escolas de primeiras letras públicas era notória, supõe-se que uma escola privada como esta de São Caetano tivesse uma melhor condição física e material. Assim, os móveis para a sala de aula foram cedidos pela Escola Moderna número um, e de acordo com Mimesse (2001) a escola se instalou na Rua Virgilio de Rezende, nome do antigo proprietário da fábrica de formicida, que foi homenageado pela abertura e calçamento das ruas. A rua da Escola Moderna número três desapareceu quando, anos depois, ela e seus quarteirões foram comprados e incorporados ao terreno das Indústrias Reunidas F. Matarazzo.

Apesar das esperanças de João Penteado, a escola de São Caetano funcionou apenas sete meses. Segundo os dados do Boletim da Escola Moderna, pelo calendário escolar as aulas iniciariam na segunda quinzena de janeiro, iriam até a terceira semana de junho e retornariam em julho. Mas, no mês de outubro, a escola teve suas aulas suspensas após o falecimento de seu diretor-professor e foi legalmente fechada em dezembro do mesmo ano.

Escolas fechadas

O fechamento da escola de São Caetano e das outras duas ocorreu em função de o diretor da escola, José Alves, juntamente com Belarmino Fernandes, Joaquim dos Santos Silva e José Prol, morrerem em uma explosão no bairro do Brás. José Prol era o proprietário da casa que explodiu, nesta residência eram guardados materiais bélicos em um dos quartos e, quando necessário, ela servia de abrigo aos amigos anarquistas. Dulles (1977) descreve em seu texto uma entrevista concedida na Itália por Gigi Damiani anos depois do incidente. Ele, que foi um anarquista expulso do Brasil, contou sem temores o ocorrido no dia da explosão. Conta Damiani que naquele momento os companheiros preparavam uma ação armada e com a explosão acidental todos os planos foram obrigatoriamente alterados. Como consequência desta explosão as escolas foram fechadas e várias pessoas passaram a ser perseguidas.

As escolas anarquistas foram legalmente fechadas pelo Diretor Geral da Instrução Pública, Oscar Thompson, no ano de 1919 quando:

[...] autorisou, finalmente esta Directoria a determinar o fechamento de qualquer escola particular desde que verifique ser esta prejudicial á moralidade publica, á saude dos alumnos, ou attentatoria da ordem, das leis e da organização social do Paiz. Graças a estas medidas, poude o Governo impedir que funccionassem nesta Capital e no interior, varias escolas particulares dirigidas por anarchistas fabricantes de explosivos, e que foram suspensas em virtude de requisição do Dr. Secretario da Justiça e Segurança Publica. (SÃO PAULO, 1918, p. 111)

O diretor da Instrução Pública, na citação acima, classificou as escolas modernas como "prejudiciais à moralidade pública", mesmo constando-se que a explosão ocorreu em uma residência e não no local de funcionamento das aulas. Mas, no texto do diretor há uma frase indicando a existência de "várias escolas particulares dirigidas por anarquistas fabricantes de explosivos"; como se todos os anarquistas mantivessem a fabricação de explosivos como algo implícito aos seus ideais. Independentemente dos argumentos apresentados as duas escolas que funcionavam em São Paulo, a número um e a número dois, foram proibidas de funcionar, embora os seus alunos e os seus respectivos diretores-professores, João de Camargo Penteado, da número um, e Adelino Tavares de Pinho, da número dois, tivessem feito, de acordo com Luizetto, (1984) vários abaixo-assinados pedindo a reabertura das escolas, todos sem resposta.

O fechamento das escolas foi arbitrário, elas eram constituídas legalmente e seguiam todas as normas instituídas pela Diretoria da Instrução Pública. A única que poderia permanecer fechada, até indicar-se um novo professor-diretor, era a de São Caetano. Infelizmente, a curta duração da existência e funcionamento desta escola não possibilita maiores análises de seu cotidiano.

Referências bibliográficas

ASSAD, Carlos M. En el país de autonomía: la escuela moderna. México: El caballito: Secretaría Educación Pública, 1985.
BOLETIM DA ESCOLA MODERNA. Fac símile, co-edição Centro de Memória Sindical & Arquivo do Estado de São Paulo, nº 1, 2 e 3, 1918 e 1919.
DULLES, John W. Anarquistas e comunistas no Brasil. (1900-1935). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
JOMINI, Regina C. M. Uma educação para à solidariedade: contribuição ao estudo das concepções e realizações educacionais dos anrquistas na República Velha. São Paulo: Pontes, 1990.
LUIZETTO, Flávio V. Presença do anarquismo no Brasil: um estudo dos episódios literário e educacional. 1900-1920. Tese (Doutorado)- USP, São Paulo, 1984.
MIMESSE, Eliane. A escola e os imigrantes italianos: da escola de primeiras letras ao Grupo Escolar. São Caetano do Sul: Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul, 2001.
SÃO PAULO (Estado). Inspectoria Geral do Ensino por ordem do Governo do Estado. Annuario do Ensino do Estado de São Paulo. São Paulo: Typ. A. Siqueira & C., 1918.
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Doutora em Educação pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná.