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Artigo publicado na edição nº 35 de abril de 2009.
As memórias do Comandante:
Amaral Peixoto e a política fluminense

Rafael Navarro Costa

Construir a memória de um indivíduo ou grupo é, sem dúvida, fazer uma seleção, escolher determinados pontos para serem lembrados e outros para serem esquecidos. A memória construída acerca de um político ou grupo pode nos indicar os elementos necessários para que seja mantida a coesão interna e para a defesa dos sinais que apontam para o pertencimento a este grupo.

Neste artigo, temos como objetivo retratar a construção da imagem do político Ernani do Amaral Peixoto. Para isso, percorreremos as memórias do próprio Amaral Peixoto, de seus pares na política e também as impressões de políticos que não faziam parte de seu grupo. A partir da investigação da imagem que integrantes de grupos políticos opositores ao amaralismo configuraram sobre aquele personagem, podemos apresentar uma visão mais ampla sobre o político, que ultrapasse os limites do grupo formado por Getúlio Vargas no Estado Novo e, posteriormente, dos pessedistas. A opinião daqueles que divergiam politicamente de Amaral Peixoto é importante para que possamos fazer uma melhor leitura da relação entre nosso personagem central e todos aqueles que o cercavam, independente da orientação política ou partidária.

Ernani do Amaral Peixoto foi mais conhecido como político que contornou situações, evitou crises e participou, com intensidade, dos mais relevantes momentos do século em que viveu[*1].

A citação acima, retirada de um artigo produzido por Celina Vargas do Amaral Peixoto, filha do Comandante Amaral Peixoto [*2], traduz a imagem construída por um político que marcou seu lugar na história fluminense pela habilidade na formação de seu grupo político e por realizações importantes em todo o estado do Rio de Janeiro. Celina Vargas continua seu texto apresentando as realizações políticas do pai, como a condução do processo que daria início à trajetória do PSD (Partido Social Democrático), suas eleições consecutivas para a Câmara Federal, para governador e a chefia da campanha de Juscelino Kubitschek para a Presidência da República, além de evidenciar suas ligações com importantes nomes da política nacional, como Getúlio Vargas e Ulysses Guimarães. Celina lembra ainda que seu pai, além de grande habilidade política, tinha uma inquestionável habilidade para governar. Ressalta entre os principais feitos do interventor e governador a recuperação econômica do Rio de Janeiro, o investimento na educação básica, a criação de escolas rurais, os avanços na área da saúde e dos transportes e, sobretudo, o incentivo à industrialização e colaboração para a construção da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional). Celina termina seu artigo definindo seu pai como "um homem público que associava uma rara sensibilidade política com uma capacidade administrativa que deixou marcas profundas em cada município do estado do Rio de Janeiro".

O artigo, publicado pelo Jornal do Brasil, certamente agradou àqueles que fizeram parte do grupo amaralista, pois sua construção exalta as qualidades do líder político fluminense e contribui de forma positiva para a imagem e memória de administrador competente e político habilidoso construída desde o fim do Estado Novo.

O Comandante por ele mesmo

Embora não pretenda com isso fazer História, entendo ser obrigação dos que atuaram na vida do país deixar seu depoimento sobre o que viveram, fizeram, tomaram conhecimento, e até mesmo do que pensaram. Isso servirá aos historiadores como fonte e material necessários para escrever a História[*3].

Amaral Peixoto estava certo ao prever que sua entrevista serviria como fonte para futuros trabalhos de historiadores, mas foi um tanto comedido em suas pretensões de não querer fazer história com seu depoimento.

Em sua entrevista, lembrou com muito carinho e saudosismo do período em que esteve à frente da interventoria fluminense e que considerou seu melhor momento na vida política. Uma das principais bandeiras defendidas por ele para alcançar o sucesso na política fluminense foi a de ter percorrido cada município do estado e de ser capaz de conciliar famílias declaradamente rivais em suas localidades. Demonstra também grande satisfação por sua administração e pela confiança que os habitantes do estado depositavam nele, como podemos perceber pelo seguinte trecho de seu depoimento:

Tive uma grande satisfação quando foram projetar um sistema de abastecimento de água. Um proprietário que estava ameaçado de desapropriação, um desses homens rústicos do interior, discutiu com o engenheiro que foi lá, um rapaz novo, meio pedante. O proprietário conhecia bem a região e disse ao engenheiro: "Não é preciso desapropriar muito. Para chegar à cota tal, basta desapropriar tanto." O engenheiro queria desapropriar mais, e o proprietário se aborreceu e disse: "Então o senhor se entenda com o meu procurador." O engenheiro perguntou: "Quem é ele?' E o homem respondeu: 'É o Comandante Amaral Peixoto." Isto é, ele via no interventor alguém que defendia seus interesses.[*4]

Por esse trecho, percebemos que Amaral Peixoto deixa subentendido que, apesar de governar em um período autoritário, no qual não havia recebido um voto sequer para assumir as funções executivas no estado do Rio de Janeiro, conseguiu angariar a simpatia de seus futuros eleitores. Este respeito que adquiriu em muito se devia às viagens que realizava ao interior, que o aproximava não apenas dos políticos locais mas também de toda a população destes municípios.

O ex-interventor constrói sua imagem como um político capaz de contornar situações que emergiam com naturalidade da política, como a cobrança por nomeações de aliados e pressões por parte dos grupos que o apoiavam. O início de sua interventoria coincidia com um período turbulento na política fluminense: em menos de uma década, o estado do Rio de Janeiro havia sido governado por cinco Interventores e um governador eleito indiretamente. Entre eles, destacaram-se Ari Parreiras (interventor) e Protógenes Guimarães (governador). Apesar de esses políticos terem acabado com a intensa rotatividade na chefia do executivo fluminense, não conseguiram pacificar a política estadual. Amaral destaca que Ari Parreiras era "o homem indicado para o estado do Rio" e tinha totais condições de ter se tornado o chefe da política no estado, mas como não tinha interesse pelas disputas políticas resolveu se afastar do cargo.

Sobre Protógenes Guimarães, Amaral comenta principalmente o período no qual o governador teve que se ausentar para tratar de problemas de saúde, causando um enorme descompasso na sua política de pacificação. Sobre o estado do Rio de Janeiro, a sua opinião era a seguinte:

Inteiramente jogado... havia um grupo manobrando para o Protógenes renunciar, e outro grupo querendo por força que ele não renunciasse, para evitar que o Collet assumisse o governo, pois não havia Vice-governador.[*5]

A partir desse momento, o caminho de Amaral Peixoto começava a se cruzar com o de José Eduardo Macedo Soares. A substituição do almirante Protógenes Guimarães era uma questão de tempo, mas o presidente Getúlio Vargas não nomearia para o cargo qualquer adversário do governador que estava se ausentando, devido à estreita ligação que mantinha com ele. Dessa forma, não aceitaria que Heitor Collet assumisse o cargo por suas ligações com José Eduardo, líder do Partido Radical, do qual fazia parte o presidente da Assembleia.

Foi nesse momento conturbado da política fluminense que o nome de Amaral Peixoto passou a ser cogitado para assumir um importante papel no estado. Como era muito próximo a Vargas, o nome de Amaral não enfrentaria maiores resistências do governador e de seu grupo. Segundo Amaral Peixoto, já neste período a ala macedista e seu líder, José Eduardo, espalhavam o boato de que ele seria indicado pelo presidente para ser o Interventor Federal no estado até as eleições de 1938. Nesse período, a intenção do grupo macedista era formar uma equipe competente para auxiliar Amaral Peixoto, que teria como missão principal organizar o estado administrativamente, e, em 1938, com o saneamento das finanças estaduais, lançar a candidatura de José Eduardo Macedo Soares ao governo. Sabendo das pretensões de Macedo Soares, Amaral tinha consciência de que seria muito difícil sua manutenção no cargo, e afirmou em seu depoimento que já havia alertado ao presidente:

Quando o Dr. Getúlio efetivou o convite, eu lhe expliquei o plano: "Presidente, o senhor se prepare porque virá depois a campanha do José Eduardo. O verdadeiro candidato não sou eu, é ele." O Dr. Getúlio respondeu: "O José Eduardo não tem condições de governar estado nenhum." Realmente não tinha. Era muito inteligente, mas muito boêmio, não se fixava em nenhum assunto. E o Dr. Getúlio: "Você vai para lá, e o futuro depende de você."[*6]

A declaração de Vargas sobre as ponderações feitas por Amaral Peixoto já era um indício da postura do presidente com relação ao futuro do interventor na política fluminense. A partir da indicação de Amaral para coordenar a transição do governo do Almirante Protógenes Guimarães até as próximas eleições, Getúlio Vargas dava o pontapé inicial para um longo domínio na política do Rio de Janeiro.

Amaral Peixoto deixa evidente na entrevista que, em sua opinião, sua maior virtude para tornar-se o maior líder político do estado neste período foi a capacidade de negociação com os políticos que já tinham sua base formada. Entretanto, reconhece que seus primeiros momentos na interventoria foram de extrema dificuldade devido ao quadro que se apresentava:

A sensação que eu tive nos primeiros dias de governo foi muito interessante, porque conversava muito, recebia muita gente, mas não governava. Sentia que não estava realmente governando. Perdia muito tempo com o preenchimento de cargos imediatos da administração, em conversas sobre as prefeituras. [...] Eu era cercado de manhã à noite, os auxiliares meio tontos, os secretários ainda sem tomar pé... Procurei então começar a governar, a cuidar dos problemas. O que me preocupava muito é que em todas as conversas nenhum assunto do estado era abordado.[*7]

Amaral Peixoto explica como resolveu a situação em que se encontrava, "ilhado", como descreveu em sua entrevista:

Aí comecei a viajar mais e a receber mais gente [...]. Fui conhecendo e sendo conhecido, porque eles me receberam com muita desconfiança - e não podiam deixar de fazê-lo. Eu era um ilustre desconhecido, um homem que de repente tinha sido jogado no governo do estado! Eu compreendia a desconfiança e procurava quebrá-la, fazendo perguntas, tratando bem, pedindo que me procurassem no palácio, que me levassem as reivindicações locais. Quando recebia os prefeitos, eu os submetia a uma verdadeira sabatina. Era um primeiro teste para saber se os manteria ou não. De alguns tive boa impressão; eram principalmente homens rudes, homens do interior, mas atilados. Outros eram péssimos e não podiam permanecer nas prefeituras. Isso é que me foi dando base no Estado. Eu não tinha nenhum objetivo político, apenas queria me preparar para poder governar.[*8]

Como vimos no decorrer das declarações de Amaral Peixoto, a imagem que o próprio comandante tenta construir de sua trajetória na política é a de um articulador, capaz de cooptar para si e para seu grupo um grande número de aliados. De acordo com Amaral, a receita para ter permanecido em situação privilegiada durante tantos anos foi manter a postura "conciliadora" que desenvolveu no Estado Novo durante o período democrático.

O Comandante e a imagem construída pelos políticos do estado do Rio de Janeiro

[...] tinha antipatia pelo Amaral Peixoto, acreditava em tudo o que diziam contra o coitado do Amaral. Ouvia dizer certas coisas e acreditava piamente: "Amaral Peixoto é o dono do Quitandinha, é o dono da água Salutaris, é o dono da Vidreira..." Ou então: "Quem manda no governo é a Alzira, o Amaral não manda nada, é apenas o marido da Alzira..." Eu aceitava aquilo e tinha uma tremenda antipatia pelo Amaral.[*9]

Essa declaração foi dada por Hamilton Xavier, que se inseriu na política por meio do grupo liderado pelo coronel Manoel Gonçalves Amarante, no município de São Gonçalo, e se destacou no PSD, partido pelo qual foi eleito Deputado Estadual. Suas declarações evidenciam - como ele próprio define - uma antipatia por Amaral Peixoto.

Hamilton Xavier explica em seu depoimento que as circunstâncias pelas quais o Estado Novo foi implantado - inclusive com a sua prisão por ter enfrentado a Polícia Especial -, a suspeita sobre o presidente simpatizar com o integralismo e a deposição de seu pai do cargo que ocupava foram os fatores determinantes para a antipatia com o homem que havia sido designado pelo chefe do governo que teria praticado todos estes atos. Entretanto, como o trecho reproduzido acima indica, essa desconfiança foi sendo superada aos poucos, tanto que a carreira política de Hamilton Xavier foi desenvolvida no PSD-RJ, organizado pelo Comandante.

Xavier revela que se aproximou de Amaral Peixoto após a eleição de Edmundo Macedo Soares para o governo do estado, segundo ele uma "asneira" na qual Amaral caiu ao fazer aliança com o futuro governador do estado e o presidente Dutra.

Edmundo entrou e começou a torcer o nariz para o Amaral. E aqueles deputados todos (cerca de 20 dos 24 deputados eleitos pelo PSD eram diretamente ligados ao líder de seu partido), que tudo deviam ao Amaral, começaram a tremer: "Você compreende, não podemos desagradar ao governador, porque o governador..." Achei aquilo tão repugnante, tão grosseiro e horroroso, que numa reunião da bancada, na sala à direita do plenário, eu disse: "Meus amigos, quero dizer aos senhores o seguinte: eu não sou amigo do Sr. Amaral Peixoto, não freqüento a casa do Sr. Amaral Peixoto, não como na mesa do Sr. Amaral Peixoto, sou apenas um correligionário do Sr. Amaral Peixoto. Mas acho que o Edmundo é governador porque o Sr. Amaral Peixoto quis. Porque se ele quisesse a mim, seria eu. Então fica entendido aqui que, se houver briga, eu fico do lado do Sr. Amaral Peixoto. O lado correto é esse. [...]" O fato é que me afastei do Edmundo e comecei a ver que o Amaral era um homem direito, correto, sério, inteligente. Com cara até não muito vivaz, mas inteligentíssimo, de uma acuidade tremenda, de uma invejável sagacidade.[*10]

Percebemos por esses trechos que a chegada de Amaral Peixoto ao estado do Rio de Janeiro, entrando na política estadual diretamente em seu maior cargo, como chefe do executivo estadual, suscitou diversas dúvidas nos políticos locais. Primeiro, por ser um homem ligado e indicado por Getúlio Vargas e com ele possuir relações estreitas, inclusive familiares. Segundo, por ser um ilustre desconhecido pela maioria da população do Rio de Janeiro. Entretanto, assim como ocorreu com Hamilton Xavier, o interventor aos poucos conquistou seu espaço, seja com o apoio da família Macedo Soares, que o introduziu entre as lideranças políticas, ou a partir da formação de seu grupo político, ocorrido após o rompimento com os macedistas.

Hamilton Xavier atribui um lugar de destaque na trajetória política de Amaral Peixoto: a sua disputa pelo controle da política fluminense com José Eduardo de Macedo Soares, líder dos macedistas. Os principais pontos dessa disputa, iniciada com o rompimento do acordo político entre os dois durante a interventoria - frustrando os planos de Macedo Soares em assumir o governo -, ocorreram no governo Edmundo Macedo Soares. O governador eleito, que tinha boas relações com o seu antecessor, acabou trilhando um caminho parecido no que diz respeito às relações com aquele que havia lhe proporcionado a chance de ocupar um cargo de destaque na política, rompendo com Amaral Peixoto e o PSD. Xavier explica da seguinte forma o rompimento da aliança entre Amaral e Edmundo:

Porque o Edmundo tinha medo do Zé Eduardo, que era parente dele. Na minha opinião era isso. O Zé Eduardo era um panfletista primoroso, liquidava com o sujeito. Escrevia: "O velho Vargas mata de tocaia e chora no enterro"... Isso diz tudo! Nossa Senhora! No dia em que nós fundamos o PSD em Campos, ele escreveu um artigo que começava assim: "O bravo almirante Peixoto, que neste país faz a política do genro, de triste memória em outras partes do mundo, vai exibir hoje em Campos a sua mercadoria política."[*11]

Reconhecidamente, o grande adversário de Amaral Peixoto entre 1937 e 1955 foi o grupo macedista. Entretanto, o comandante conseguiu sair vitorioso desse embate, mantendo-se sempre em posição privilegiada na política fluminense. Um dos integrantes do grupo macedista foi o advogado Saramago Pinheiro, figura de destaque na UDN (União Democrática Nacional). Saramago sempre teve uma relação muito próxima com o governador Edmundo Macedo Soares e foi um dos Deputados mais votados de seu partido naquele pleito. Apesar de sua posição udenista, Saramago reconhece que o rompimento da aliança estabelecida antes das eleições com o PSD fluminense foi decisiva para as pretensões de seu partido nas eleições seguintes, nas quais foram derrotados pelo candidato pessedista:

Nós acabamos sofrendo uma derrota terrível na eleição de 50, porque o candidato da UDN foi Prado Kelly, que era uma capacidade, um jurista de um valor enorme, mas um homem que não conhecia o interior. Já o Amaral, muito hábil, fora interventor muitos anos e tinha uma amizade enorme pelo interior todo. Além do mais, Amaral tinha sofrido uma hostilidade injusta. Eu era udenista, mas achei que o Edmundo não devia ter rompido com o Amaral. Ele tinha sido apoiado pelo PSD![*12]

Em mais um depoimento, desta vez de um membro da oposição, percebemos a imagem que foi deixada por Amaral Peixoto: um político hábil que soube aproveitar o momento de sua interventoria para formar sua base política e também eleitoral, com suas viagens ao interior do estado. Por esta grande rede de políticos que conseguiu montar, Hamilton Xavier classificou seu correligionário como "o dono" da política no estado, pois mesmo fora do poder e sofrendo investidas contra seu grupo, ocorridas no governo udenista entre 1947 e 1950, Amaral Peixoto continuou a possuir um cacife eleitoral que inviabilizava a vitória de seus opositores, como reconheceu Saramago Pinheiro, quando perguntado sobre as chances de vitória de Prado Kelly nas eleições de 1950, que consagraram a volta de Amaral Peixoto ao governo: "Não tinha condição eleitoral. Amaral derrotou o Prado Kelly e voltou a governar o estado do Rio".[*13]

O amaralismo encontra seu pior adversário: Chagas Freitas

Entretanto, Amaral Peixoto passou um longo período em esquecimento. Este esquecimento deveu-se, sobretudo, ao embate com Chagas Freitas a partir da fusão do Rio de Janeiro com a Guanabara, em 1975. Com a fusão, os dois grupos foram obrigados a conviver no mesmo espaço, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro). O acordo entre as duas correntes e seus líderes era uma missão muito difícil pelas características de cada um deles. Paulo Duque, oriundo do MDB carioca, aponta os motivos que levaram os dois protagonistas da política de seus estados ao enfrentamento:

Vocês já imaginaram se nós tivéssemos feito uma harmonia entre o Amaral e o Chagas? Mas havia uma novidade de que não se pode esquecer: o estado do Rio de Janeiro era uma realidade e a Guanabara outra completamente diferente, em tudo e por tudo, desde a mentalidade, a formação cultural, até a questão sócio-econômica.[*14]

Tanto Amaral Peixoto como Chagas Freitas tinham suas bases políticas consolidadas em seus respectivos estados. Com a fusão entre a Guanabara e o Rio de Janeiro, estabeleceu-se que os diretórios da ARENA e do MDB também deveriam se unir e formar apenas um diretório estadual. Além de implicar um enfrentamento natural de dois grupos extensos, fortes e sólidos na política, essa fusão dos diretórios fez com que estes mesmos grupos se alinhassem no mesmo partido e, consequentemente, em um mesmo diretório. A grande questão era a de saber como seria a reação daqueles dois políticos, acostumados à liderança, ao se depararem dentro do mesmo bloco. Como destaca Marieta de Moraes Ferreira, "tratava-se de conciliar duas correntes políticas, a dos chaguistas e a dos amaralistas, ou, caso isso fosse impossível, de decidir quem ganharia a partida"[*15] .

Acho que o Chagas teve uma preocupação com a história menor do que o Amaral. Voou mais rasante. Chegou a ser citado para Vice-Presidente, mas vice dos generais... O Amaral, na verdade, tinha uma coisa favorável e negativa na condição de genro do Getúlio. Não tinha outro caminho a não ser o que trilhou. E trilhou com dignidade, com muita moderação. Já o Chagas, o destino de governador caiu no colo dele. Em condições normais, Chagas jamais poderia ter sido governador do estado do Rio, a despeito de sempre ter sido um deputado muito bem votado.[*16]

Amaral ressalta em suas memórias que era terminantemente contrário à fusão. Segundo ele, não existia um projeto bem definido para que este processo tivesse o sucesso desejado. Com muita pressão por parte do governo para que o projeto fosse aprovado, acabou sendo impossível frear o movimento que resultou na fusão. De acordo com o ex-interventor, os problemas com Chagas Freitas começaram logo na organização do diretório, quando Amaral Peixoto foi derrotado e não conseguiu fazer parte da comissão provisória que organizaria o partido no novo estado. Após alguns atritos que levaram ao rompimento total entre os dois líderes, Chagas Freitas e Amaral Peixoto buscaram costurar um novo acordo político, devido à proximidade das eleições para a sucessão do governo estadual. Amaral revela que havia um consenso de que um deles deveria ser o candidato ao governo e o outro ficaria com a vaga para o senado:

Conversamos até chegar a um ponto em que eu disse: "Não adianta ficarmos procurando um candidato, tem que ser um de nós dois. Acho que deve ser você, porque tem maiores ligações com o governo federal, com a revolução, e eu ficarei sempre numa posição de constrangimento. Com isso, o estado será prejudicado." Ele me abraçou efusivamente, agradeceu e saiu candidato.[*17]

Paulo Duque, integrante do MDB e do grupo liderado por Chagas Freitas, relata em seu depoimento a visão dos partidários do chaguismo sobre esse acordo:

Chegaram à conclusão de que era melhor haver um entendimento. Haveria uma eleição de governador, havia a vaga de senador, tantas secretarias para cá, tantas para lá. Foi feito um protocolo e assinado. Só que, depois que o Chagas se elegeu governador, não deu mais bola para o protocolo. Deu a senatoria para o Amaral e ficou por isso. Como é que o Amaral, do alto de sua sabedoria política, do seu passado e do seu nome, iria dizer que tinha feito uma barganha? [...]. Chagas teria que dar várias secretarias para o Amaral indicar e, na hora H, não deu. [...]. Quando houve a possibilidade do acordo, achamos que ele viria beneficiar todo mundo. No momento em que o Chagas deixou de cumprir, os amaralistas se sentiram lesados e as coisas voltaram a funcionar quase como antes, embora com menos intensidade.[*18]

Para ceder a candidatura ao governo do estado para seu adversário político, Amaral Peixoto e seu grupo fizeram algumas exigências e assinaram um acordo que não foi colocado em prática por Chagas Freitas, enfraquecendo o grupo amaralista e tornando o chaguismo a principal referência na política estadual. Amaral Peixoto já havia cometido um outro "erro político" anteriormente, quando aceitou a indicação do nome de Edmundo Macedo Soares para o governo do estado. Entretanto, Edmundo não era um político tão articulado quanto os personagens da pós-fusão, e, com a influência que o líder pessedista possuía no antigo estado do Rio de Janeiro, conseguiu contornar a situação e retomar o poder.

Acredito que o Chagas tenha rompido o acordo para evitar a indicação de secretários, porque na ânsia de obter o meu apoio ele facilitou demais - só compreendi isso depois. Eu indicaria dois ou três secretários, e as autarquias seriam divididas proporcionalmente à votação que cada grupo obtivesse nas eleições. Ele deu demais. O Wellington [Moreira Franco] vinha com umas exigências que eu achava um pouco descabidas, e o Chagas aceitava. Nessa ocasião, fui prevenido que ele não ia cumprir o acordo, mas eu achava impossível. Tive a ingenuidade de achar impossível.[*19]

O depoimento de Paulo Duque é importante também para evidenciar a diferença no estilo de fazer política destes líderes e de sua relação com seus "comandados":

As principais figuras ligadas ao Amaral Peixoto eram pessoas com boa escola política. De modo geral tinham boa cultura, mas grande parte era muito provinciana. Alguns tinham talento, outros não, mas sabiam vencer uma eleição. A relação deles com o Amaral era diferente da nossa com o Chagas: enquanto nós tínhamos um medo muito grande do Chagas, eles tinham uma enorme reverência pelo seu chefe.[*20]

A desconfiança permanente que Chagas Freitas nutria pelos seus pares, mesmo aqueles que faziam parte de seu grupo desde muito tempo, fez com que o político carioca conseguisse controlar de forma mais eficiente os passos de seus aliados, evitando golpes como os que Amaral Peixoto acabou sofrendo do próprio Chagas e de Macedo Soares.

No período após a fusão, a configuração política já não era a mesma, pois agora havia áreas em que o amaralismo não conseguia penetrar para conquistar aliados. Na contramão deste processo, Chagas Freitas já havia enviado aliados políticos para regiões do estado do Rio de Janeiro visando formar uma pequena base nesses locais, prevendo que a fusão seria uma questão de tempo. Após este episódio, o grupo amaralista sofreu um grande revés e não mais recuperou a preponderância política de duas décadas atrás, sendo a fusão e a derrota para o chaguismo os principais responsáveis pelo enfraquecimento de seu grupo e posterior esquecimento do político que controlou o estado do Rio de Janeiro por algumas décadas.

A imagem que fica do político é a de um articulador competente, que conseguiu reorganizar o estado do Rio de Janeiro em suas administrações e resgatou o papel político de destaque para o Estado. Durante sua trajetória política, Amaral Peixoto foi membro de grupos importantes, como o que tratou da democratização do país em 1945, juntamente com Marcondes Filho, Agamenom Magalhães e Benedito Valadares. Desta forma, resgatar a memória e a trajetória do comandante é, também, resgatar parte importante da história fluminense.

Referências

CAMARGO, Aspásia. Artes da política: diálogos com Ernani do Amaral Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Crônica política do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.
FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Hamilton Xavier e Saramago Pinheiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. (Conversando sobre política v.5).
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003. 5ª Ed.
MOREIRA, Regina da Luz. Tempos de Amaral. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 2005.
SARMENTO, Carlos Eduardo (Coord.). Paulo Duque. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. (Conversando sobre política v. 2).
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Mestre em História Social da Cultura (2008) pela PUC-Rio com a dissertação "Tecendo as redes da política: articulações e projetos na construção do amaralismo", e graduado pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ (FFP/UERJ). Atualmente é professor de turmas do ensino fundamental e médio e Professor Tutor do curso de Graduação em História, modalidade à distância, da PUC-Rio. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: história política, história regional, história fluminense, história cultural e historiografia. E-mail para contato: faelnc@globo.com.
PEIXOTO, Celina Vargas do Amaral. Amaral Peixoto, governador. Jornal do Brasil, 25 de setembro de 2003.
Devido ao posto que ocupava na Marinha do Brasil, Ernani do Amaral Peixoto era costumeiramente chamado pelos políticos de seu grupo como Comandante.
Nota de Ernani do Amaral Peixoto. In: CAMARGO, Aspásia. Artes da política: diálogos com Ernani do Amaral Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 9.
Ibidem, p. 192.
Heitor Collet era o Presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Sendo assim, assumiria o governo em caso de renúncia do seu chefe executivo, já que não havia Vice-governador. Ibidem, p. 153.
Ibidem, p. 154
Ibidem, p. 154-155
Ibidem, p. 155-156.
Depoimento de Hamilton Xavier. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Conversando Sobre Política: Hamilton Xavier e Saramago Pinheiro. Trabalho do núcleo de memória política carioca e fluminense. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
Ibidem, p. 27-28.
Ibidem, p. 29.
Depoimento de Saramago Pinheiro. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). emConversando Sobre Política: Hamilton Xavier e Saramago Pinheiro. Trabalho do núcleo de memória política carioca e fluminense. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p.112.
Ibidem, p.115.
Depoimento de Paulo Duque. In: SARMENTO, Carlos Eduardo (Coord.). Conversando sobre política: Paulo Duque. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p. 132
FERREIRA, Marieta de Moraes. A fusão: chaguismo x amaralismo. In: SARMENTO, Carlos Eduardo (Org.). Chagas Freitas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
Depoimento de Paulo Branco. In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Crônica Política do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998. p. 254.
CAMARGO, Aspásia. Artes da política: diálogos com Ernani do Amaral Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986
Depoimento de Paulo Duque. In: SARMENTO, Carlos Eduardo (Coord.). Conversando sobre política: Paulo Duque. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p. 130-131.
Ibidem, p. 510.
Ibidem, p. 133.