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Artigo publicado na edição nº 38 de novembro de 2009.
Possibilidades e perspectivas para o desenvolvimento de políticas públicas direcionadas a mulheres

Bergman de Paula Pereira

Introdução

A importância dos estudos sobre as mulheres no Brasil nos remete a um passado em que a mulher era praticamente invisibilizada pelo Estado. Em diferentes tempos históricos não foram consideradas sujeitos da história e sua função na sociedade era determinada de acordo com seu núcleo social, regida e administrada pelo Estado. Quando pensamos em mulher negra, a necessidade de ressignificação histórica é ainda maior, visto que o grupo social ao qual pertence nunca teve importância em nenhum momento histórico.

No Brasil, o movimento feminista adquire um caráter de luta a partir das décadas de 60 e 70, em meio a um período de crises políticas que nos levou à ditadura militar. Tal movimento ganha contornos políticos mais combativos e o discurso de igualdade entre homens e mulheres não fica meramente reduzido à constituição de um núcleo familiar.

Justiça de gênero, então, é entendida não somente como uma questão distributiva; engloba em seu conceito também questões de representação, identidade e diferença. Gênero e direitos das mulheres são conceitos elaborados para refletir estruturas de poder solidificadas na dominação e na opressão social vigente em diferentes tempos históricos, possibilitando reflexões não só em torno da desigualdade de “gênero”, mas também de “raça”.

A partir da década de 80, o movimento feminista coloca em discussão, de forma pragmática, o papel das mulheres na sociedade e a função do Estado nessa estrutura. Busca, por meio de políticas públicas, uma relação mais direta com o Estado, a igualdade de gênero em diferentes setores da sociedade – com foco principal na divisão sexual do trabalho, que pode ser entendida como a diferenciação entre homens e mulheres no que tange à sua relação de poder – e a igualdade racial, com reflexões de que ser mulher negra é historicamente diferente de ser mulher branca no Brasil, emplacando uma luta pela igualdade de gênero e fim dos privilégios sociais e raciais.

É na mesma década de 80 que o movimento de mulheres negras começa a reivindicar de maneira mais incisiva a igualdade de gênero e raça nas políticas públicas, de forma que não cabe ao Estado pensar políticas e ações públicas voltadas para mulheres somente com um caráter universalista, mas, sim, desenvolver políticas públicas específicas de gênero e raça.

As políticas públicas direcionadas a mulheres ganham novos rumos no final da década de 80 com a criação das Coordenadorias e Secretarias governamentais, responsáveis pelo desenvolvimento de políticas que visam a equidade de gênero através de políticas específicas para mulheres.

Estado e Gênero

Perceber que existe um fator de desigualdade que persiste em nossa sociedade em relação às mulheres deve ser o primeiro passo para o desenvolvimento de políticas públicas e para a implementação e regulamentação de projetos que visem estruturar as condições de gênero. A partir de 1988, vários governos passaram a incluir em suas plataformas a situação das mulheres na sociedade. Foram criados, então, órgãos estatais específicos para lidar com as questões ligadas a gênero. Atualmente existem cerca de 40 Coordenadorias ou Assessorias nos municípios, algumas com status de Secretaria, segundo a Coordenadoria Especial da Mulher da Cidade de São Paulo.

Esses órgãos são diretamente ligados ao poder executivo, porém, infelizmente, enfrentam problemas estruturais, como a falta de equipe técnica e a escassez de recursos financeiros para o desenvolvimento das ações dentro de um plano político que vise mudança estrutural da condição de vida das mulheres, principalmente mulheres negras. Observar o desenvolvimento e cobrar do poder executivo o cumprimento das políticas públicas é de fundamental importância para que a história das mulheres e das relações de gênero não seja mantida somente como "um campo" na história.

Nesse contexto, a análise e a discussão de políticas públicas vinculadas à igualdade de gênero deveriam caminhar em direção ao espaço de emancipação e reconhecimento da alteridade das mulheres.

A preocupação inicial é reconhecer quais são as diretrizes governamentais do município de São Paulo através da Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade, criada em 2001 com o objetivo de implantar programas voltados à promoção do desenvolvimento econômico com inclusão social, e que, em janeiro de 2005, sofre uma alteração no nome e passa a se chamar Secretaria Municipal do Trabalho. Essa Secretaria tem como objetivo priorizar o investimento em qualificação profissional e geração de emprego e renda na capital; já a Coordenadoria das Mulheres, criada em 1989, tem como função a criação e a implementação de políticas públicas voltadas para as mulheres.

Os programas “emancipatórios” e “redistributivos” tiveram seu início na gestão da prefeita Marta Suplicy a partir do ano 2001. Tiveram continuidade, primeiramente, com o prefeito José Serra, no ano 2005, e, atualmente, com o prefeito Gilberto Kassab. Cabe aqui centralizar a discussão na participação das mulheres nos programas Capacita Sampa e Operação Trabalho, analisando as perspectivas de sua participação no que diz respeito à inclusão ou recolocação dessas mulheres no mercado de trabalho.

Os programas em teoria têm um caráter “redistributivo” e “emancipatório”, e sua importância deveria estar pautada em dar acesso a mulheres que não estão inseridas diretamente ou formalmente no mercado de trabalho, por meio de cursos de qualificação e capacitação profissional.

O principal ponto de análise desses programas é a relação estabelecida entre eles e as políticas desenvolvidas especificamente para mulheres de acordo com suas necessidades reais, levando em consideração a relação gênero e raça, assim como a perspectiva de inserção no mercado de trabalho e a autonomia necessária para que a independência técnica e econômica das beneficiárias seja concretamente alcançada ao final dos programas.

Em 2002, as mulheres eram mais da metade da população desempregada no município (53,1%); em 1989, eram 49,5% e a sua taxa de desemprego total passou para 20,6%, ainda 32,1% maior do que a dos homens (15,6%). Segundo Maria Cecília Comegno (2005), “Esse era um problema ainda maior para as mulheres negras, já que uma em cada quatro estava procurando trabalho, com taxa de desemprego de 25,3%, também superior à dos homens negros (20,2%).” O recorte gênero/raça não pode ser feito, porque não há esse tipo de recorte dentro dos programas. Em um município onde 25,3% das mulheres negras estão desempregadas e as que possuem emprego recebem em média 20% a menos do que as mulheres brancas, verifica-se que é imprescindível que haja uma política de Estado para gênero e raça.

Não existe entre a Secretaria Municipal do Trabalho e a Coordenadoria Especial da Mulher um diálogo sólido e permanente. Diante disso, fica difícil o desenvolvimento de políticas específicas para as mulheres inseridas nos programas. Um exemplo disso é a falta de dados e de um planejamento dentro da Coordenadoria Especial da Mulher que identifique a situação das beneficiárias nos programas, e isso é uma falha grave. Ao mesmo tempo, não há por parte da Secretaria Municipal do Trabalho um programa de acompanhamento e identificação dos principais problemas pelos quais passam essas mulheres ao longo dos cursos, prejudicando assim um direcionamento no que diz respeito a políticas e projetos que, em tese, deveriam e/ou estariam relacionados à Coordenadoria Especial da Mulher, uma vez que sua função é articular, formular e implementar políticas e programas para mulheres da cidade de São Paulo, e a desagregação desses órgãos frente à formulação de projetos e programas específicos faz com que exista uma ineficácia institucional na realização de ações que visem reduzir as desigualdades de gênero e raça.

O principal ponto de análise desses programas é o tipo de relação estabelecida entre eles e as políticas desenvolvidas especificamente para mulheres. É preciso que suas necessidades reais sejam consideradas, para que haja uma verdadeira emancipação e autonomia técnica e econômica das beneficiárias ao final dos programas.

Considerações Finais

As problemáticas por que passou a estruturação dos programas, no que diz respeito às questões de gênero e raça, incidem em orientação muito frágil. Quanto aos entendimentos sobre gênero e raça, o planejamento institucional de políticas para mulheres parece inexistente. Essa questão fica amenizada se levarmos em consideração que políticas públicas direcionadas às relações de gênero têm uma dinâmica relativamente recente nos órgãos governamentais do município de São Paulo.

Não há por parte desses órgãos esforços para que haja pelo menos uma compreensão do que deva ser feito para que efetivamente as desigualdades de gênero sofram um retrocesso. Torna-se urgente maior atenção a estudos de gênero e raça, pois eles são, no momento, os indicadores importantes para possíveis implementações de políticas para mulheres negras.

Mas para as beneficiárias este tipo de análise não faz diferença alguma, pois a condição política não mudou, e elas continuarão recorrendo a esses programas porque eles representam, de alguma forma, uma esperança de melhora em suas condições de vida. Por outro lado, para a Secretaria Municipal do Trabalho não há interesse em mudanças significativas na estrutura dos programas, visto que isso demandaria diálogos diretos com outros órgãos municipais e o desenvolvimento de políticas voltadas especificamente para a realidade das mulheres do município. Portanto, a importância se restringe somente à execução sistemática dos programas; para além dessa execução é necessário considerar os diversos fatores de desagregação social e racial pelos quais passam essas mulheres.

Isso indica que um plano inicial deve estar centrado em estudos e pesquisas de desigualdades de gênero e raça e na incorporação da desagregação de indicadores por sexo em todos os programas. Para os órgãos governamentais deve ficar claro que, a partir de tais estudos, as políticas de gênero não são neutras e têm impactos diferentes na relação homem/mulher. E enquanto esse fator não for levado em consideração na formulação dos programas não haverá uma promoção de igualdade de gênero.

As políticas específicas de gênero, quando propostas por órgãos governamentais, devem vincular-se e dialogar com todas as esferas institucionais. O reconhecimento de tais políticas não deve ter um alcance limitado, e, nesse sentido, os modos de “inserção” precisam ser questionados e reelaborados para que as ações sejam efetivas e incisivas. Ainda temos como campo de análise as políticas públicas desvinculadas de ações concretas que visam transformações definitivas do modelo de dominação vigente em nossa sociedade, em que o tripé de desigualdade socioeconômica está alicerçado nas relações estabelecidas entre raça, classe e gênero. Para que ocorra uma mudança nesse quadro, será necessário que os enfrentamentos saiam do campo da neutralidade e que o Estado não transforme a luta das mulheres contra a opressão em meras pautas de governo.

Referências bibliográficas

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Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é pesquisadora e educadora e atualmente tem como focos de pesquisa o trabalho, a memória e a identidade da mulher negra.