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Artigo publicado na edição nº 39 de dezembro de 2009.
Distúrbio urbano de 1947:
a imprensa paulistana e os responsáveis do levante

Monique Félix Borin

O presente artigo tematiza os problemas do transporte coletivo na cidade de São Paulo na segunda metade da década de 1940, com enfoque no resgate da relação entre a população pobre de São Paulo e o poder público, fundamentalmente investigando o distúrbio urbano ocorrido em 1947, quando as tarifas de bonde e trólebus subiram 150% após a criação da CMTC (Companhia Municipal de Transporte Coletivo). Apronfundando especialmente a discussão dos atores da revolta e do discurso elaborado pela mídia corporativa sobre eles, inicialmente contextualizaremos o período, para tratar desse evento mais específico.

A década de 40 é um momento marcado por uma profunda mudança na cidade de São Paulo. Conforme dados do IBGE, sua população, em 1947, era duas vezes maior que a existente em 1937, ou seja, a população da cidade pulou de 1,3 milhão (1937) para 2,2 milhões[*1] (1947) em apenas 10 anos. A cidade expandia-se em área urbana e em negócios, e a década de 40 ficou marcada para a história como uma das de mais intenso processo de urbanização, com diversas construções e regramentos para o espaço urbano. O momento turbulento pelo qual a cidade estava passando torna difícil uma definição precisa, mas o que marca essa década é justamente o movimento: a mudança no padrão de moradia, de locomoção, de trabalho e de relações pessoais.

Vivia-se o fim da Segunda Guerra Mundial e o crescimento do parque industrial, com a decorrente abertura de postos de trabalho e o crescimento do setor de serviços em razão da intensa urbanização, que geravam o afluxo de migrantes do campo, do norte, do nordeste e de imigrantes de toda parte do mundo. O espaço urbano vai se tornando complexo, com a criação de relações sociais novas que atendam às diferentes demandas que emergem cotidianamente. Esse processo não é simples e intensifica diversas mudanças não só na cidade, mas na própria configuração social e econômica do país. Marx explicita essa questão como um fator extremamente importante no desenvolvimento do capitalismo:

A cidade já é o fato da concentração da população, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres e das necessidades, ao passo que o campo evidencia justamente o oposto [...]. A oposição entre campo e cidade só pode existir nos quadros da propriedade privada. É a expressão mais crassa da subsunção do indivíduo à divisão do trabalho [...]. O trabalho volta a ser aqui o fundamental, o poder sobre os indivíduos, e enquanto existir esse poder deve existir a propriedade privada. [...] A separação entre o capital e a propriedade da terra, como o começo de um existência e de um desenvolvimento do capital independente da propriedade da terra, como o começo de uma propriedade que tem por base somente o trabalho e a troca.[*2]

Como podemos ver, essa movimentação não afetava apenas a vida interna da cidade, mas refletia um processo muito maior, que influenciaria não só nas políticas adotadas, do ponto de vista da economia, pelo governo, mas também do ponto de vista social. A modernização virou marca obrigatória nos discursos dos dirigentes da cidade, e isso significava um alto custo para a população: aquele foi um período de forte compressão salarial, para dar conta do tão propalado avanço do parque industrial e do avanço dos serviços na cidade[*3]. Também foi um período de especialização de uso do solo urbano, com a derrubada de casarões que serviam de cortiços no centro e o consequente deslocamento dessa população pobre para regiões periféricas, aumentando ainda mais seu custo de vida, e tendo de conviver, a partir dessa mudança, com um espaço sem infraestrutura urbana, e na qual pesa o incremento do transporte como parte do gasto diário das famílias[*4]. Aliado a isso, temos o bem conhecido ideário repressivo contra as manifestações e organizações de trabalhadores pelo Governo do presidente Dutra e seus interventores[*5].

O turbulento ambiente da cidade não deixava dúvidas ao poder público: qualquer ação que gerasse descontentamento popular podia ser o que faltava para a população se revoltar e tomar as ruas. A escalada do custo de vida atingia os trabalhadores, e permitir aumento em um serviço público que agravasse ainda mais essa situação causava receio à prefeitura. Quando de sua criação, a CMTC, nova empresa municipal de transportes públicos, começou a operar com a sucateada frota da Light[*6] e de algumas empresas de auto-ônibus particulares – como a Auto Viação Jabaquara –, que foi incorporada à CMTC através de pagamento em ações[*7] da nova empresa às antigas proprietárias dos veículos: o resultado foi iniciar as operações com péssimas condições e sem dinheiro, praticamente. A modernização da CMTC passou, principalmente, pela renovação da frota em circulação na cidade, para isso a empresa importou novos ônibus e bondes do exterior. O custo dessa ação encareceu o serviço prestado, tornando a CMTC uma empresa deficitária. O então responsável pela empresa, João Gonçalves Foz, passou a requisitar ao prefeito o aumento da tarifa dos transportes coletivos para cobrir os gastos da renovação da frota. A prefeitura aceitou as novas tarifas propostas pela empresa no dia 28 de junho de 1947, mas, com medo da reação popular, suspendeu o aumento no dia 30 do mesmo mês.

Com o início da operação dos novos ônibus e bondes em 1º de julho, e o contentamento da população com a relativa melhora do serviço prestado, o prefeito anuncia que permitirá o aumento já proposto pela CMTC, mas tanto ele quanto a empresa mostraram preocupação com a repercussão da decisão. O prefeito divulga uma nota pública na imprensa, na qual justifica o aumento e anuncia benefícios aos usuários do transporte coletivo:

Resolvo reconsiderar o despacho de 30 de julho próximo passado e reformar o despacho de 28 de junho, para autorizar a cobrança das passagens, em bondes e ônibus, a partir de 1º de agosto na base requerida pela C.M.T.C. [...] As tarifas ora aprovadas têm caráter provisório e deverão vigorar até 30 de novembro do presente ano, devendo ser revistas dentro desse prazo, de modo a atender os verdadeiros resultados da operação unificada.[*8]

A CMTC coloca-se de maneira ainda mais evidente, no seu comunicado oficial de informe sobre a majoração, quanto à preocupação com ações da população contra o aumento de tarifa, e faz um apelo:

APELO AO PÚBLICO
Reiterando o pedido anteriormente feito, pedimos ao publico que nos dê toda a sua colaboração para podermos dar à cidade de São Paulo um transporte a altura de seu progresso.
A C.M.T.C. trabalha em regime de “serviço pelo custo”, de modo que sua renda será integralmente aplicada na melhoria do serviço. Se as tarifas proporcionarem lucro excedente ao estabelecido pelo contrato de concessão, os preços das passagens serão automaticamente diminuídos. A Prefeitura exercerá a mais ampla fiscalização sobre seus serviços, velando pelo interesse do povo, que é também, e principalmente, o interesse da C.M.T.C. [...][*9]

Os apelos não funcionaram, a população pobre que dependia diariamente do transporte público com a nova configuração da cidade – que resultava nessa população ter seus locais de moradia deslocados para áreas periféricas – junto a outros setores da população, como estudantes secundaristas e universitários, transformaram a rotina da cidade nos três dias imediatamente posteriores ao aumento: a população concentrou-se em praças e largos de grande circulação, e depredou uma grande quantidade de veículos da CMTC, destruindo completamente 15 ônibus, 15 bondes e tornando sem condição de reparo imediato 30 ônibus e 150 bondes[*10].

A cobertura do distúrbio foi farta pela imprensa, passando por modificações de posturas dos jornais quando as manifestações passaram a tomar maior vulto e realizar ações mais violentas. Os dois jornais que analisamos neste trabalho, Diário Popular e A Noite, começam a sua cobertura da revolta popular timidamente, com pequenas reportagens, não repreendendo diretamente as mobilizações, informando das depredações e apresentando os setores populares envolvidos na revolta, trabalhadores e mesmo estudantes. No entanto, a cobertura jornalística vai tornando-se mais agressiva contra as manifestações de descontentamento popular à medida que elas tomam grande proporção. Já no primeiro dia de manifestações, diversos ônibus foram destruídos e alguns manifestantes foram presos, no entanto o distúrbio só passa a ocupar a parte principal das primeiras capas no segundo dia de revolta, quando, a despeito da repressão do dia anterior, a população continua a destruir veículos por vários lugares da cidade, como a Av. Paulista, o Largo da Pólvora e as Perdizes[*11], e ainda investe contra a Prefeitura, na época situada na Rua Líbero Badaró, muito próxima dos lugares de maior agitação na cidade, sendo naquele dia o Anhangabaú e a Praça do Patriarca. A reivindicação, então, atinge não só o aumento das tarifas, mas também quem o permitiu, e a população passa a exigir a renúncia do prefeito da cidade, Cristiano Stockler das Neves[*12]. Os jornais descrevem horrorizados a tomada da prefeitura pela população:

INCENDIADOS DOIS CARROS OFICIAIS
Em frente a prefeitura, na rua Libero Badaró, a multidão atacou dois carros oficiais ali estacionados, ateando-lhes fogo. Dentro em pouco os dois automóveis ardiam e ficaram totalmente destruídos.

ATAQUE A SEDE DA PREFEITURA
Enfurecida, a massa popular em certo momento, estacionou em frente a sede da Prefeitura, na rua Libero Badaró. Um ou mais deu voz de assaltado a Prefeitura e imediatamente a massa avançou contra o edifício, invadindo várias de suas dependências. O prefeito, Dr. Cristiano Stockler, não estava presente.[*13]

O jornal A Noite é ainda mais enfático na repulsa ao movimento, apostando, porém, em uma estratégia de denúncia bastante comum na época: colocar o povo à margem dos acontecimentos, destacando as ações como de responsabilidade dos elementos subversivos da ordem, os comunistas. Os dois jornais, no entanto, indicam qual era a tônica da relação entre a população pobre e o poder público naquela época: bradam contra a ineficiente polícia, que não cumpriu o seu papel de reprimir a revolta antes que ela se alastrasse e ganhasse força. O que importava não era se a reivindicação do povo era justa ou não, se o aumento era correto, se o percentual de aumento era justificável, o que importava era que o povo não tinha o direito de se expressar daquela maneira, e, se o fizesse, o papel do poder público era reprimir as manifestações. O Diário Popular classifica a ação policial como ineficiente[*14], porém faz menção às manifestações ocorrendo simultaneamente em vários pontos da cidade, o que justificaria a dificuldade de ação repressiva da policia. Já o jornal A Noite não faz mediações, e critica duramente a ação da polícia:

Os lamentáveis acontecimentos de que a cidade foi teatro no dia de ontem, não teriam tomado tão graves proporções si as autoridades, incumbidas da manutenção da ordem, houvessem, como era de seu comezinho dever, agido a tempo e com a necessária energia. [...] É profundamente entristecedor constatar que a policia foi impotente para garantir a propriedade pública e privada.[*15]

A responsabilidade das ações revoltosas foi alvo de ampla cobertura da imprensa e grande discussão pública na época. Várias versões e responsáveis foram apontados, alguns deles discutidos pela historiografia. Waldemar Still, em obra institucional da CMTC, descreve assim o aumento de tarifas e a posterior onda de protesto que varreu a cidade:

A 1º de agosto [de 1947] são elevadas as tarifas de 0,20 centavos para 0,50 centavos, o que motivou revolta popular, de que se aproveitaram os célebres agitadores e ex-proprietários de empresas de ônibus para insuflarem ainda mais a revolta, resultando daí destruição de bondes e ônibus [...][*16]

Still defende uma tese bastante comum na época das manifestações e uma versão fartamente defendida pela CMTC. Ela faz referência à construção do monopólio de operação do serviço pela empresa municipal, que retirou os outros operadores particulares de circulação. Apesar de realmente ser um serviço lucrativo, as empresas que deixaram de operar foram indenizadas pela prefeitura, através de ações da CMTC, portanto continuavam lucrando com o transporte. Outro fator que inviabiliza a afirmação de Still é que o monopólio sobre a operação pela empresa municipal nunca foi efetivo: muitas empresas continuaram em atividade, principalmente em regiões afastadas da cidade. Tanto que, já na década de 1950, a CMTC não tem mais o monopólio oficial de operação do serviço. Além disso, a tensão social contida no distúrbio social de 1947 não é tão simples quanto a descrita por Still, que ignora o elevado custo de vida enfrentado pela população pobre paulistana e sua capacidade de ações por conta própria. A radicalidade do evento também não aparece caber no ideário dos empresários nacionais, pois contou com a depredação da Prefeitura e a tentativa de linchamento de políticos[*17], o que, inclusive levou à renúncia do prefeito em vigência, Cristiano Stockler das Neves.

Entre os políticos, houve grande troca de acusações – colocando oposição e situação em confronto –, que partiram da alegação de que as ações poderiam ser tentativas de criar instabilidade política ao governador do estado, Adhemar de Barros. O próprio governador acusou abertamente a oposição, na figura dos partidos PSD, PR, UDN, PDC e PTP, na edição do jornal A Noite do dia 4 de agosto de 1948. As suspeitas eram grandes, e o delegado de ordem social[*18] fez pronunciamentos de que altas personalidades públicas estavam envolvidas no evento, e de que, logo que cessassem as manifestações e se apurasse o caso, os nomes seriam divulgados. Já o jornal Diário Popular construiu a argumentação de que todos os homens públicos eram responsáveis pela revolta, pois não cumpriram corretamente a sua função técnica e isso possibilitou a revolta do povo:

Nessa emergência, isso é, quando as coisas, mesmo imperfeitamente organizadas, denotavam possibilidade de melhoria e normalização, estourou a bomba, armada por entidades misteriosas e que alastrou o rastilho de caráter popular. Um povo cansado dos homens públicos e até dos não-públicos, oferecerá naturalmente um campo favorável a vindictas, aos atentados, aos tumultos oriundos da multidão acirrada ou simplesmente atraída pelo prazer momentâneo de destruir.[*19]

A estratégia de responsabilização defendida pelo jornal A Noite afasta a responsabilidade dos eventos das classes dirigentes, porém também não atribui o evento ao povo: o jornal reitera em várias edições a manipulação comunista como causa da revolta. Esse jornal fez uma larga cobertura da revolta, com muitas fotografias e grandes capas com títulos chamativos – o que era facilitado por ser um dos poucos jornais que circulavam com duas cores (preto e vermelho). A edição do dia 2 de agosto de 1947 é fartamente dedicada aos acontecimentos do primeiro dia de aumento da passagem – segundo dia da revolta – com a primeira capa inteira tratando do assunto, com um chamativo título que ocupa um quarto da página: “Vandalismo Comunista”. A edição contabiliza dos estragos e dos prejuízos causados pela revolta e apresenta uma investigação da responsabilidade comunista da revolta. Usa a iconografia para defender sua tese, apresentando fotos de diversos pontos da cidade e buscando identificar pessoas que apareçam em mais de um ponto de manifestação: aponta-os como potenciais agitadores profissionais. As pequenas manchetes que acompanham a edição fazem um resumo da posição do jornal:

A justa indignação popular, explorada por comandos soviéticos que implantaram a desordem na capital e promovem depredações em massa – Prejuízos de milhões de cruzeiros – Cerca de 400 veículos danificados – A policia assistiu impassível ao atentado contra a propriedade pública e privada – Os grupos predatórios estavam tão bem organizados que até eram abastecidos de gasolina, por caminhões sem chapa, para atear fogo aos bondes e ônibus.[*20]

Todas essas possibilidades de responsabilidade estão envoltas em uma conjuntura de participação política extremamente complexa e diferenciada do que vivemos hoje na cidade: a saída do governo Vargas deixou uma marca de medo na população, as possibilidades de organização eram pequenas e fragmentadas, e os sindicatos demoraram para retomar sua força após a redemocratização – especialmente porque o nível de repressão policial permaneceu alto. Somando essa forma de tratamento para com os pobres e a pesada carga de exploração por eles sofrida – compressão salarial aliada à expulsão dos pobres e trabalhadores das regiões centrais da cidade – seria lógico que a população buscasse formas de sobreviver, e isso muitas vezes significava lutar. Nesse contexto, ações de sabotagem à produção e de revoltas espontaneas, não organizadas previamente por nenhum partido ou associação de trabalhadores, eram formas comuns da luta da população.

Com uma configuração social dessas, não é de se surpreender a revolta da população contra a majoração das passagens de transporte coletivo. O que não cabia aos jornais da época, e à muitos historiadores, é interpretar as ações como um ato promovido pela própria população, em sua heterogeneidade e sua capacidade de ser agente, e não apenas reagente, não apenas massa manipulável. Analisando uma parte da produção jornalística da época entendemos a construção desse discurso e a quem ele interessava. O jornal Diário Popular, em artigo com posição do editor, intitulado “O povo é sempre vítima dos políticos”, é exemplo claro desse posicionamento:

Em conseqüência dos lamentáveis acontecimentos que resultaram em custosas depredações para os transportes coletivos, a população paulistana volta a locomover-se à custa de expedientes. [...] A verdade, que todos presenciaram, é que houve uma boa vontade geral para fomentar a política de má vontade geral. Em ultima analise, o povo foi a vitima, em sua bolsa, na tranqüilidade das famílias, no transporte coletivo, no aborrecimento causado a faina cotidiana. Ele acaba pagando tudo e, como sempre, servindo de joguete aos politiqueiros, de apetites insatisfeitos, que vivem de ambições e de intrigas, explorando os ideais de um povo que trabalha para engordar os parasitas e os negocistas.[*21]

Esse trecho do jornal traz duas figuras comuns construídas pela imprensa na época, as quais representam muito bem o discurso das classes dirigentes sobre a população pobre: a primeira discute o povo como sem capacidade de força motora, de opinião própria, de ação. O povo é totalmente passivo a manipulações. A segunda, o povo não é nada: não há uma definição do conceito, do que seria povo, de quem seria o povo. O povo é uma abstração, a população pobre não tem significância como povo, povo é uma entidade ideal. Essa é a representação que constrói o tipo ideal de povo, amplamente utilizado nos discursos políticos da época, de Vargas, passando por Dutra, em muitos elementos alcançando o governo JK. A declaração pública do Secretário de Segurança Pública, cel. Flodoardo Maia, ao jornal A Noite mostra as implicações desse discurso:

Assim sendo, convido os elementos pacíficos da cidade, que constituem a sua quase totalidade, a se retiraram tranqüilamente para suas casas e seus afazeres, uma vez que a policia vai agir, por todos os meios ao seu alcance, contra os desocupados que estão a se aproveitar desse momento a lançar pânico no seio da população.[*22]

O povo é pacífico, fica em casa, segue seus afazeres e obrigações, não participa da política, não toma parte em confusão, em reivindicações populares, em badernas. A população imóvel é o povo, o povo só é povo se for o tipo ideal. Quando não couber dentro do discurso, a população revoltosa não tem classificação para o Poder Público: multidões de milhares de pessoas com claras reivindicações sociais e/ou políticas são tratadas como significando a mesma coisa que ladrões, trombadinhas – seus atos são individuais transgressões da ordem cotidiana. Se o povo não é o povo ideal, a única relação que resta ao poder público estabelecer com ele é a repressão. O que é a marca da relação a partir do poder público com a população pobre paulistana durante toda a década de 1940.

Há dois pontos principais na intenção de disfarçar a participação espontânea de um grande contingente da população na revolta urbana, atendendo a interesses aparentemente inconciliáveis. O primeiro parte da própria classe dominante, que utiliza de diversos discursos para suprimir ou desqualificar a ação da população: ao criar uma figura de povo ideal como pacífico – que entende que as elites técnicas e intelectuais têm de conduzir a cidade, pois sabem o que é correto, têm competências para isso – marginaliza toda ação popular que fuja desse enquadramento, classificando-as como criminosas ou comunistas. O segundo parte de elementos da própria esquerda, que, apoiados em uma tradição de estudos sobre o movimento operário, buscam estudar e legitimar apenas as ações dos Partidos Comunistas, deixando as ações da população que não foram realizadas pelo ou em conjunto com o partido no esquecimento, ou mesmo diminuindo a importância de lutas e revoltas tocadas pela população espontaneamente, como se estas não tivessem relevância política por não serem conduzidas pela vanguarda do proletariado organizada – o Partido Comunista (PC). Esses dois pontos estão apoiados no que Chasin classifica como ardil do politicismo, que é a dissociação das esferas política e econômica, dando ênfase à compreensão da realidade apenas através da esfera política, o que, evidentemente, gera uma compreensão incompleta da complexidade social, mas é largamente utilizada pela historiografia e pela sociologia brasileiras.

A despeito dos discursos contidos nos jornais do status quo, uma observação mais detida daquela realidade deixa claro o quadro de uma cidade que está em transformação, por diversas motivações e atores, criando uma configuração urbana que exige a mobilidade de sua população por longos trajetos. Nesse cenário, o transporte coletivo é fundamental, por permitir que as pessoas cheguem a seus locais de trabalho e estudo, constituindo mais uma despesa fixa no orçamento das famílias paulistanas daquele período. Período aquele marcado por um crescente custo de vida, especialmente para as classes trabalhadoras, que conviviam com uma forte compressão salarial para suportar o desenvolvimento industrial da cidade. Isso tudo era comemorado pela classe dominante como um período de modernização da cidade e do país, que estariam se efetivando dentro do desenvolvimento capitalista, para um dia chegar ao topo desse modo de produção.

A revolta urbana de 1947 foi um momento marcante na cidade em seu tempo e hoje reflete muitas facetas de uma vida urbana em transformação, que construía novas premissas de convivência e de enfrentamento entre setores da sociedade. As disputas que foram evidenciadas com os protestos contra o aumento da tarifa deixaram marcas para a posteridade, um complexo quadro de interesses e também a vocação que as classes dominantes nacionais têm para responder às manifestações de descontentamento das classes populares com repressão policial. No entanto, a revolta possibilita entrever também a ação das classes populares na cidade, em suas manifestações e revoltas, organizadas ou espontâneas, e a relevância que essas ações tiveram para a constituição do atual espaço urbano.

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Bacharel e licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Este artigo apresenta parte das conclusões da pesquisa de iniciação científica: “Os Distúrbios Urbanos de 1947: um estudo sobre a luta por transporte coletivo na cidade de São Paulo na década de 1940”, orientada pelo Prof. Dr. Antônio Rago Filho, e que contou com apoio do PIBIC/CEPE.
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