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Artigo publicado na edição nº 40 de fevereiro de 2010.
Os sambas e as áfricas em São Paulo na voz de Geraldo Filme

Amailton Magno Azevedo

Quando conheci Geraldo Filme, não pessoalmente, mas através de sua música, me pareceu sublime, singelo, bonito, sincero. Isso ocorreu através de um amigo músico[*1], que o apresentou numa noite em 2001, não me lembro exatamente da data; lembro do som que me encantara.

Após aquele encontro, a música de Geraldo Filme ficou ali comigo, habitando-me, fazendo bem e me provocando uma vontade de querer saber mais. No fim do ano de 2002, Geraldo Filme retorna, dessa vez não só pelos ouvidos, mas também pela imagem através de uma entrevista que assisti. Aí tudo se confirmou. A admiração que eu havia construído por ele no primeiro encontro ampliou-se, pois pude agora ver a força daquele homem negro, de voz grave e intimista. Os seus sambas me soaram de forma intensa, fazendo-me perceber que ali naquela música haveria possivelmente algo de diferente. Aquilo que soara diferente era a extensa memória que envolvia aquele canto. Mas eu não sabia disso ainda. O que eu comecei a ter naquele momento foi um desejo de pesquisa que nascia para saber mais sobre aquele homem, sua música e sua história.

Na memória do samba em São Paulo, “Seu Geraldo” ou “Geraldão da Barra Funda”, como assim o chamavam, ocupou um lugar de respeito e admiração entre as pessoas envolvidas, pois foi um dos homens que traduzia e trazia em si o que era o samba paulista. Esse respeito e admiração eu percebi e guardei na memória quando estive em um ensaio da escola de samba Quilombo do Educandário[*2]. Nesse ensaio perguntei a um passista quem era Geraldo Filme. Em seu rosto abriu-se um sorriso e uma mistura de respeito e alegria que respondiam a minha pergunta. Ali percebi a importância de Geraldo Filme como uma memória a ser preservada.

O contato com sua obra e com sua imagem levaram-me a pensar sobre as memórias africanas que foram recompostas em São Paulo. As Áfricas[*3] emergem nos ritmos, vocábulos, cantos com significados históricos e culturais seja como memória e imaginário, mas também de modo concreto nas atitudes culturais. A obra de Geraldo permitiu esse olhar para as Áfricas, onde elas surgem ressignificadas do lado de cá do Atlântico em certos territórios da cidade de São Paulo, como os bairros do Bixiga, Barra Funda e Liberdade com costumes e sentimentos vividos em torno do samba, do carnaval e em aspectos de sua vida íntima, amorosa e familiar.

Essa ligação entre samba e os afro-paulistas com as Áfricas não é automática nem mecânica, o que se percebe na experiência social de Geraldo Filme e suas músicas são sinais dessa ligação que aparecem como fragmentos, retalhos de uma memória africana que fora acessada e recomposta entre os afro-paulistas através dos saberes orais manifestados nas relações de família, amizade, práticas de trabalho, musicalidades, nos salões de dança, cordões carnavalescos e escolas de samba.

Os estudos culturais sobre as memórias negras e mestiças no século XX ainda estão se fazendo. No que diz respeito às práticas musicais, já existem reflexões historiográficas que se propuseram a descobrir e problematizar quais foram os caminhos escolhidos, os desejos e as intenções que a população negra teve em São Paulo nesse século. Tais estudos mapearam, entre o pós-abolição e as décadas de 1930 e 40, suas novas formas de sociabilidade como a vivência em rodas de sambas, a instituição de cordões e escolas carnavalescas, a frequência de salões de dança, o que significaram estratégias para resistir culturalmente na cidade[*4]. A partir da década de 1950, essas atividades culturais, sociais e educacionais continuaram sendo as organizações onde os afro-paulistas concentraram suas atenções e ações para reivindicar direitos, igualdade racial e sua herança cultural afro-brasileira[*5].

Reconstruir a memória musical de Geraldo Filme e suas relações de sociabilidade permitiu perceber uma sociedade e uma cidade como marcas culturais dos afro-paulistas, apesar de seu amplo processo de urbanização e industrialização e higienização dos espaços públicos[*6], da racionalização da governança política e da economia. Por entre esse processo contínuo de urbanização e metropolização emerge uma cidade com traços específicos da cultura desse grupo nos costumes, nos gestos, nos cantos e nos territórios apropriados que configuraram aquilo que denomino de áfricas.

Não quero com isso propor uma visão essencialista, racialista ou de busca de raízes originárias e puras. Buscar uma pureza africana não tem sentido algum no mundo contemporâneo, já que a cultura é difusa, dinâmica e histórica. A cultura possibilita a formação de redes de ligação e parentesco que constituem o mundo sob a forma de uma teia multifacetada[*7]. As áfricas foram pensadas a partir da cultura como conceito e a memória de Geraldo como vivência pessoal que permitiram compreender suas práticas sociais em diálogo, conflito e mistura com outras experiências culturais na cidade. Utilizo o termo “áfricas” para mostrar que um olhar voltado para os microprocessos sociais pode iluminar contextos e estruturas maiores que se fizeram com as formas de viver e de resistir dos grupos negros na redefinição de seus valores culturais no espaço urbano.

A memória de Geraldo Filme desvincula-se de datações oficiais estabelecidas que tenha, no movimento dos grupos políticos e na dinâmica industrial, os marcos instituídos de compreensão das histórias da cidade. As áfricas[*8], pensadas no plural e na cidade de São Paulo, foram novas formas de sociabilidade e sensibilidade que expressaram a cultura dos afro-paulistas de modo difuso no espaço urbano, numa conjuntura histórica específica. Estiveram inseridas também nos movimentos sociais que compuseram o ritmo de transformações da cidade com suas múltiplas temporalidades e experiências. A música e a experiência de Geraldo Filme sofreram impactos, resistindo em certos momentos e em outros se modificando de acordo com as imposições políticas, econômicas, ideológicas, urbanas e industriais da cidade de São Paulo.

As áfricas trazem um sentido de história que se fez e se moveu muito em função de um modo de pensar e estar afro no mundo, que penetraram nos diversos fazeres e saberes da vida cotidiana dos grupos negros. Vida essa que se fez não como desenrolar dos dias, da repetição monótona dos acontecimentos; ao contrário, como tensões e conflitos sociais. Um cotidiano que foi vivido com as construções, transformações ou demolições de culturas, sob uma multiplicidade de tempos e experiências sociais[*9]. Com o olhar atento às manifestações afro que se processaram na vida cotidiana é que pude observar uma história a partir dos vestígios que ficaram como sinais de experiências vividas[*10]. O conceito de cotidiano tornou-se uma possibilidade teórica e metodológica para problematizar essas vivências em São Paulo a partir da memória musical de Geraldo Filme.

Com essa opção teórica e metodológica pude descobrir alguns dos sentidos de sua humanidade com a revelação de parte de sua alma a partir dos dilemas, dores, alegrias, prazeres, expectativas e de paixão intensa e incontida pelo samba. Revelou ser um homem com uma experiência sensível às questões ligadas à cultura vivida pelos negros.

Ao articular os sinais e rastros de sua memória pude perceber uma profusão de vivências e territórios que se moviam sob a dinâmica da vida comunitária, artes e musicalidades, carnavais, configurando assim uma politização da imagem negra na cidade.

A rede por onde foi tecida a memória musical de Geraldo Filme é complexa, e inclui seu mundo privado manifestado nas relações familiares, de amizade e romance com sua mulher “Dona Alice”, com o público em torno do samba, do carnaval, das escolas de samba como a Peruche, a Vai-Vai, o Paulistano da Glória, nos lugares de moradia como o bairro dos Campos Elíseos e seu engajamento político na defesa dos direitos dos descendentes de africanos. Com Geraldo descobre-se uma São Paulo diferente daquela que tem no bandeirantismo seu mito de origem. Geraldo Filme é o ponto de fuga dessa construção, pois, com ele, São Paulo deixa de ser túmulo do samba. O que temos é uma memória múltipla da cidade onde outras musicalidades também possuem história.

Uma memória que se fez tanto individual como socialmente, vinculada a uma rede de relações e circunstâncias que se moveram no mundo do cotidiano, coexistindo com modos de vida distintos ao seu, construindo valores de acordo com códigos específicos de sua comunidade cultural, em uma conjuntura histórica específica.

O samba como projeto de vida permitiu também refletir sobre as conexões com o mundo atlântico ligado à África. Foi possível pensar em alguns aspectos das culturas de povos bantos da África Central que permaneceram na musicalidade e na experiência social de Geraldo e foram ressignificadas no espaço urbano da cidade, sendo fundamentais na construção de uma cultura afro-paulista com especificidades e marcas singulares em relação a outras culturas.

Entre os séculos XVI e XIX o Atlântico se configurou como um espaço líquido por onde teias de comunicação entre as Áfricas, as Europas, as Américas e especificamente o Brasil se fizeram constantemente. Mesmo com o fim do tráfico humano, da escravidão e com o pós-colonialismo, os registros culturais dos povos do continente africano não se apagaram. Nem tudo foi desagregado com a tentativa de dominação cultural. Isso se deve às evidências históricas na contemporaneidade que nos mostram a permanência dessa cultura que foi ressignificada em terras americanas e brasileiras.

Um olhar mais atento e arejado considera esses registros uma perspectiva historiográfica onde a História das Áfricas surge como um novo horizonte possível de reflexão. Não é possível negar a força dessas Áfricas, sobretudo no campo religioso e estético onde artes, música, design, decoração, indumentária como tecidos e cores, religiosidades, tipos de cabelos, gestualidade corporal, modos de dançar, falar e cantar revelam fazeres e saberes oriundos de um modo de pensar africano enraizados na vida social dos negros. Essas Áfricas estiveram vivas na experiência social de Geraldo Filme, não como recorrência a um passado, mas como forças ativas e reimpressas na cidade como projeção de futuro[*11].

Na sua produção discográfica, especificamente o disco “Canto dos Escravos” de 1982, percebe-se as nuances de africanidades que existiram nos visungos cantados por escravos de Minas Gerais no século XVIII e que foram regravados e reinterpretados por Geraldo Filme em parceria com Clementina de Jesus e Doca da Portela. Esse disco registra esses “africanismos” sonoros, mesmo sob um processo de intensa urbanização, que tentou alisar as experiências urbanas de uma maneira geral. No disco de Geraldo, essas musicalidades não desapareceram; ao contrário, aparecem como uma perspectiva possível de música que reafirma as culturas africanas em São Paulo.

O disco com suas letras, capa, cores, musicalidades, instrumentações e ritmos permitiu-me perceber um registro histórico que tem na grafia sonora o vestígio de uma memória musical. Essa grafia imprime uma africanidade nas formas de tocar, cantar e na perpetuação de ritmos. A audição dos sons dos instrumentos, como tambores, agogôs e tamborins significam a tradução de uma cultura material com seus saberes e fazeres baseados na oralidade. Esses instrumentos e seus sons sinalizam para um gosto estético e uma consciência de preservação da cultura ao serem, em um primeiro momento, produzidos; em um segundo, executados, e em um terceiro, com a evocação dos ritmos que atualizam e conservam um modo de tocar, dançar e sentir o mundo.

As suas letras significam uma concepção estética onde a arte tem uma interferência política no mundo. E Geraldo, ao fazer essa inferência, recorre aos instrumentos que lhe estão à mão para projetar a história num horizonte prospectivo. Operando no terreno da arte Geraldo faz uso da ambiguidade de sentidos que é próprio dessa linguagem, porque ela não está no mundo para responder, e sim para indagar, questionar e romper com formas dominantes da cultura[*12].

Quem nunca viu
o samba amanhecer
Vai no Bixiga pra ver,
vai no Bixiga pra ver

Nesse sentido, suas letras e músicas provocam sensações e criam mundos que ainda não se cristalizaram como ideologias, convenções ou práticas dominantes[*13]. Nelas, tem-se a oportunidade de perceber o real a partir da sua subjetividade, de onde aparecem sinais dos seus sentimentos íntimos, projetos não consumados, perspectivas que avisam as visões de mundo em que acreditava e que não se impuseram por completo devido ao campo de forças hegemônicas da cidade[*14]. As letras, como microtexto literário, não são espelhos ou reflexo da realidade, mas como Geraldo sentia a realidade e desejava um mundo ainda não vivido[*15].

Geraldo explorava nas letras os modos de vida dos negros e como esses teimavam em não acompanhar algo determinado pela urbanização que projetava a cidade monumental. Outros projetos de cidade foram possíveis para se viver no espaço urbano da metrópole como resistência cultural, que ora enfrentou, ora se desviou, ora incorporou os projetos hegemônicos para redefinir e rearticular as práticas culturais[*16]. Na música “Reencarnação” Geraldo narra o crescimento urbano da cidade, o desaparecimento da “mãe preta” que sobrevivia do pequeno comércio da venda de café, pipoca, pamonha e quentão e do seu desejo de reencarnar-se como negro. O desaparecimento da “mãe preta” e suas práticas de trabalho revelam como uma ideia de urbanidade foi gestada em um processo de hegemonia[*17] que excluiu, segregou, invisibilizou e impôs uma determinada cidade. Como contraponto a essa imposição, Geraldo, ao dizer que gostaria de “nascer negro novamente”, cria uma contra-hegemonia que se faz também em processo vivo e histórico mesmo no campo do desejo que seria o do renascimento. Nesse sentido, na sua cidade as áfricas têm lugar garantido como memória e território se colocadas em perspectiva como expressão cultural que existem, de forma desobediente ao campo de forças das relações de poder e dominações culturais. Desse modo, a cultura popular negra funcionou sob essas possibilidades de relação com o espaço urbano e com as formas dominantes, e em tensão por sofrer obliterações e interferências. O que se vê com isso é que a cultura popular negra não se manteve intacta, pura e autêntica; ao contrário, ela teve que se redefinir nessa tensão entre imposições e resistências para continuar existindo[*18].

A revelação dessas múltiplas cidades e vivências não dominantes se fez a partir do exercício artístico musical estimulado por Geraldo durante toda a sua vida, como analisado nos seus discos. Esse exercício de Geraldo, transformado em músicas e letras, permitiu-lhe capturar pequenos gestos, práticas e formas de sobrevivência.

Geraldo teve uma pequena produção discográfica ao longo de sua carreira artística. Ele foi um daqueles casos de músicos pobres que só conseguiram gravar seu primeiro disco após muitos anos de carreira musical vivido fora dos círculos da indústria fonográfica. No caso específico de Geraldo ele grava o primeiro disco solo aos 53 anos de idade, em 1980.

Os discos que Geraldo gravou não permitiram deixar registrada toda a sua obra. Nesses discos estão apenas algumas músicas que significam fragmentos daquilo que ele produziu[*19]. Seu filho Ailton contou que seu pai possuía um caderno com incontáveis composições que não foram gravadas, o que significa dizer que os discos foram apenas parte de sua obra.

Mesmo sendo restrita sua produção fonográfica, as canções que ali estão recobrem um período específico que esteve circunscrito entre as décadas de 1960 e 1980. As gravações desses discos permitiram a Geraldo imprimir no mundo do samba uma singularidade que se expressa na voz, na interpretação e na forma de compor os temas, além de personagens com vivências históricas que se passam no ambiente urbano e rural. Esses discos definem minimamente o estilo, a especificidade, a estética particular desse sambista que se configurou pelo samba-protesto, pelo samba-denúncia, em que um olhar político sobre a sociedade, a cidade e o presente histórico dele se fez de forma crítica.

O primeiro disco, “Em prosa e samba”, foi feito em parceria com o dramaturgo Plínio Marcos e com os sambistas Toniquinho do Batuque e Zeca da Casa Verde na década de 1960. Desse disco pouco se sabe, pois não se encontra mais em catálogo e nem mesmo nos chamados “sebos” de discos, um comércio informal que havia na cidade nas décadas finais do século XX, os quais eram verdadeiros arquivos sonoros.

O segundo disco, gravado em 1980 pela gravadora Eldorado, foi de fato o primeiro LP em que Geraldo teve a oportunidade de gravar suas composições e expor seu trabalho ao público. Nele, várias são as temáticas, personagens e ambientes sociais que compõem a poética e os arranjos sonoros do disco. Nesse disco aparecem curandeiros, operários, meninos de rua, mulheres negras trabalhadoras, sambistas, escolas de samba como o Paulistano da Glória, espaços como o Bixiga, narrativas sobre a cidade de São Paulo e sobre o afro-brasileiro, formando um mosaico poético e social que definem o sentido desse Long Play. Denunciava a situação desfavorável dos grupos negros diante do processo de urbanização e industrialização que se intensificara na segunda metade do século XX, imprimindo novos rumos para a sociedade, cujo epicentro mais emblemático se fez em São Paulo. Revela as experiências e perspectivas incongruentes com aquilo que passaria a ser chamado de modernidade, pois a pobreza e a exclusão social vividas pelos negros revelam o fracasso que foi a industrialização. Nesse sentido, a leitura e a experiência particular de Geraldo ganham relevos mais acentuados quando é posto o contexto da urbanização como pano de fundo por onde a sua vida e a vida das personagens que construiu se passaram.

As vivências das camadas populares e negras são capturadas e explicitadas nas letras e músicas, quase imperceptíveis e sufocadas frente à cidade que se transformou na metrópole dos edifícios, negócios, serviços e indústrias nas últimas décadas do século XX. Ao fazer desaparecer práticas populares como da “mãe preta”, o processo ativo de modernização urbana como hegemonia cultural passou pela construção/imposição de um tempo único e cidade única. Em oposição a isso, as cidades de Geraldo apresentam múltiplas temporalidades e vivências.

Com a música há sinais de que outras vivências, sonhos e realizações foram possíveis. A concretização desses projetos passou pelo espaço da criatividade artística para sua efetivação, ocorridas em zonas alternativas ao enquadramento e à normatização da cultura. Sua música, ao insinuar outras possibilidades, projetou-se, com estética própria, como ruptura e projeção de novos rumos[*20]. A música como conjunto que engloba literatura, instrumentação e som pode ser vista como “produto do comportamento humano na sociedade na qual está inserida culturalmente”[*21], e enquanto tal traz indagações, conflitos, desejos e delírios íntimos, que se apresentam às vezes como possibilidade de futuro. Como expressão sonora e literária, a música possibilita explorar sensibilidades e pensamentos que se processam social e psiquicamente numa conjuntura histórica específica.

Ao capturar o miúdo, o não estabelecido, o não dominante postos nas vivências negras e populares, protegeu memórias na cidade que foi cruel e apartava os desafortunados. Mais do que dar respostas, a arte de Geraldo produziu inquietações[*22] ao revelar as desigualdades: comprometeu-se mais com aquilo que poderia ser, ao questionar a ordem de como a cidade era, e de como os menos favorecidos a viveram. Não há oposições entre realidade, ficção e desejo. Essas dimensões se misturam para trazer à tona outras realidades históricas pela via da música. Suas letras indagavam sobre os preconceitos étnicos, apontando as feridas sob os efeitos nefastos da marginalização que as personagens viviam ao estarem em zonas trágicas da urbanização de São Paulo. Ao retratar essas experiências de desajustamento em meio a uma estrutura social injusta, sinaliza desejos de mudança. Incorporou a alma do poeta ao apontar o futuro por se afligir com o presente. Moveu-se por um sentimento de descontentamento.

Os seus discos se inscrevem num contexto de redemocratização, anistia política e luta contra a ditadura. Engajado contra o militarismo, Geraldo não se furta de por em evidência as mazelas do país e da cidade de São Paulo por meio das letras de música. Denuncia a pobreza, o racismo, a sensação de modernidade que as classes privilegiadas sentiam, valoriza a experiência da população afro-descendente no processo de formação do país. É um sambista que adota a postura de um militante político e cultural. Opôs-se ao autoritarismo do regime militar mesmo não falando diretamente sobre isso em suas músicas. Utilizou de um caminho diferente dos movimentos políticos e sociais da época que se opunham à ditadura, militou como um músico do samba-protesto, do samba-indignação, do samba-enredo e do samba-de-festa.

Nos limites e espaços que ainda sobravam naquele momento em que produziu seus discos entre os anos de 60 e 80, trabalhou artisticamente o imponderável, o não organizado, a história dos pormenores das vivências que foram abafadas pelo sistema urbano-industrial e pela ditadura, criticou a legitimidade da urbanização e insinuou rumores para uma história que ainda poderia ser vivida.

A tarefa de reconstruir a memória de Geraldo Filme e das áfricas pode ser sinal de uma história que pode ser vista em perspectiva. Sua memória possibilitou perceber, no tempo presente, que o futuro das áfricas estará nas formas de como os grupos negros terão que resistir cultural e politicamente para reinventá-las cotidianamente, seja no âmbito público ou privado. Essa postura política pode projetar as áfricas paulistanas como uma perspectiva de cidade em coexistência com outras cidades e outros modos de vida.

Devido às formas de resistência terem sido operadas das mais diferentes maneiras, Geraldo Filme e os grupos negros forjaram modos de viver modulados pela reconstrução e ressignificação de valores culturais com traços africanos. As cidades com marcas negras existiram sob uma experiência social que se fez no entre-lugar da cidade hegemônica, através da criação de outros projetos, possibilidades e temporalidades. Por dentro da cidade objeto e dominante emergiram vivências movidas por um forte sentimento de comunidade e de tradição oral. As relações familiares, de amizade e musicais tiveram na vivência comunitária e na tradição de oralidade os valores norteadores das escolhas pessoais e posicionamentos políticos para construir as áfricas. A partir dessas estratégias elas foram vividas de forma múltipla e difusa, que se fez em práticas culturais no espaço público, em relações afetivas no espaço privado, na gestualidade corporal, nos falares, saberes, nas danças, musicalidades, nos carnavais, nas organizações culturais e educacionais através de blocos, cordões e escolas de samba e, no caso específico de Geraldo Filme, amplia-se também para o teatro e a pesquisa histórica, pois se dedicou a essas atividades.

Elas funcionaram também em negociação com outras culturas onde tiveram que compartilhar espaços comuns, como foi o caso, por exemplo, do bairro do Bixiga, da Barra Funda e da Liberdade. Desse modo, uma relação de coexistência cultural teve que ser incorporada pelos mais diferentes grupos étnicos na cidade para tornar a vida possível.

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MÚSICA BRASILEIRA deste século: por seus Autores e Intérpretes. São Paulo: Sesc, 2000.

Documentário

GERALDO FILME: Criolo Cantando Samba Era Coisa Feia. Direção: Carlos Cortez. São Paulo: 1998. Documentário.

Fotografia

GERALDO FILME- imagem da capa. São Paulo: OESP, [19--]. Cedida pelo arquivo das escolas de samba de São Paulo.
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Prof. Dr. do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É Professor de História da África e Secretário do CECAFRO (Centro de Estudos Africanos e da Diáspora) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“Lê Menestrel”, músico.
Essa escola não chegou a sair nos carnavais. Ela ficou restrita às rodas de samba que ocorriam aos finais de semana na Cohab Educandário.
O termo Áfricas significa pensar que a África não é um território homogêneo. Ao contrário, há diferenças entre as culturas, os tempos históricos e os povos que a habitam. Nesse sentido, há uma diversidade de áfricas que multiplicam as memórias que lá foram e são vividas. O termo “África” vai aparecer no singular e no plural. Ambas as possibilidades devem ser consideradas, pois a historiografia que trata dessa temática considera os dois conceitos viáveis para a compreensão das memórias e culturas de suas populações. E ao longo do texto vou utilizar o termo “Áfricas” com “A” maiúsculo para tratar do continente e suas populações, o que difere do termo “áfricas” com “a” minúsculo por se tratar do conceito que explica as vivências e memórias negras em São Paulo.
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