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Artigo publicado na edição nº 41 de abril de 2010.
Agenciamento e agenciadores da emigração:
a inserção dos trabalhadores cearenses na lavoura cafeeira (século XIX)

Viviane Lima

A partir de 1850 os grandes proprietários de São Paulo, que constituíam não apenas a elite econômica, mas também política, deram início a uma série de medidas para se precaverem quanto ao fatal declínio do sistema escravista. Auxiliados por seus representantes no Império, buscaram ampliar ao máximo o contingente de cativos, aproveitando o tráfico interprovincial vindo da grande região Norte do Brasil. Por quase 40 anos, fizeram da escravidão um lastro para suas fazendas, e, ao preverem o fim inexorável desse sistema, iniciaram a estruturação de um conflituoso projeto imigrantista marcado pelo surgimento das primeiras colônias de parceria (Vergueiro, 1846), bem como da Inspetoria de Terras e Colonização (1876).

Michael M. Hall, em suas pesquisas acerca da imigração estrangeira, estimava haver, em 1870, um pouco mais de 3 mil trabalhadores livres, incluindo os nacionais, nas lavouras cafeeiras do Oeste Paulista[*1].

Neste período, estavam estabelecidas na região Sul 41 colônias agrícolas, entre as quais 33 eram do Estado e 8 auxiliadas por ele[*2]. Em São Paulo, as quatro principais colônias eram a de Sant’Anna, da Glória, de São Caetano e de São Bernardo, todas do Estado, apenas o núcleo Nova Lousa era particular. O mapa apresentado pelo Presidente da Província de São Paulo em 1880 revela a existência de 129 brasileiros estabelecidos nestes núcleos[*3].

Na história da “grande seca” de 1877-1879, conhecida por suas cenas calamitosas e pelo grande fluxo migratório de cearenses para a região amazônica, pouca ou nenhuma atenção foi dada ao caminho percorrido por diversas famílias sertanejas em direção ao Sul do país devido ao índice numérico não ser tão volumoso quanto para o extremo Norte. No entanto, não são números desprezáveis nem uma rota menos conflituosa de migração interna. Algumas peculiaridades da rota sul de migração interna estão diretamente vinculadas a projetos nacionais de seleção e emprego de mão de obra substitutiva da escrava para as lavouras cafeeiras. Ao acompanhar este caminho, observamos que a Província de São Paulo aparece na documentação como uma das principais receptoras destes emigrantes, que, diferentemente da configuração da rota norte (majoritariamente masculina e solteira), era trilhada por famílias completas, inclusive, conduzindo seus agrados de sangue ou senzala.

Em fins do ano de 1877, um ofício enviado pelo Presidente da Província do Ceará ao Ministro do Império deteve-se em reclamar da dificuldade de administrar uma Província em período de seca para justificar sua opção por uma política de incentivo à emigração para o trabalho nos seringais amazônicos. Efetivá-la, porém, não seria possível sem o auxílio dos cofres imperiais, já que os provinciais estavam deficitários.

Por esta razão, o Presidente recebeu uma importante concessão de transporte da casa comercial R. Singleshust & Cª, de Liverpool, e da Agência Nacional da Companhia Brasileira de Paquetes à Vapor. No entanto, esta concessão não foi suficiente para resolver o problema que havia se estabelecido pela crescente e contínua corrente migratória oriunda dos sertões cearenses. Dizia o Presidente que as 400 passagens concedidas pela Companhia Brasileira rapidamente haviam se esgotado e as viagens feitas pelos vapores ingleses tornavam-se cada vez mais longas, o que provocava um encarecimento no custeio da viagem efetuado pelos cofres provinciais.

Apesar de afirmar ser contrário a esta solução para a calamidade, o Presidente dizia não poder “contrariar os desejos de uma população numerosa que vê na emigração seu único salvatório.” E por esta razão solicitou ao Ministro dos Negócios do Império passagens para o Sul do país porque, segundo ele, em relação ao Norte, “a população começava a sentir uma certa repugnância, receiosa de não encontrar ali prompto os meios que lhe garantam a subsistência e lhe assegurem o futuro.” Segundo ele, no Sul, estes emigrantes poderiam ser inseridos nas colônias do governo, onde encontrariam ocupação e mostrariam “mais que o colono da Europa, mais que o escravo que tem elle disposição para o trabalho.”[*4]

Demonstrando conhecer os debates, anseios e discursos do governo central quanto à suposta “crise de mão de obra” para a produção e exportação do principal bônus dos cofres púbicos naquela ocasião, o Presidente do Ceará se utiliza do grande interesse sobre um número crescente de trabalhadores “válidos” para a grande lavoura cafeeira, reclamado pelos proprietários no sul, para lembrar ao Ministro o lucro que o Estado poderia obter com o aproveitamento destes trabalhadores.

Ao finalizar o ofício, já contando com o auxílio do governo imperial, o Presidente acrescentou que o subvencionamento das passagens para o Sul liberaria a verba provincial para o custeio das passagens de retirantes que queriam se dirigir para o Norte do país por questões pessoais, como reatar laços familiares com parentes emigrados para ali. Certamente, essa solução resolvia não apenas a necessidade de expulsão desta população mendicante das ruas de Fortaleza, mas também reduziria as reclamações efetuadas por determinados Presidentes das Províncias do Amazonas e Pará quanto às dificuldades de receber a grande quantidade de cearenses que desembarcavam em seus portos, apresentando outra opção de rota emigratória[*5].

Havia, no entanto, uma visível contradição no discurso do Presidente cearense. Em muitos documentos de pedidos de verba afirmava que os emigrantes começavam a sentir uma “certa repugnacia” pelo Norte; em outros, “muitos” desejavam dirigir-se para esta região. É perceptível que a intenção do Presidente era desobrigar o governo cearense do “fardo da população retirante”, principalmente evitando os gastos provinciais que seriam utilizados para os vigentes projetos de “remodelação” e “aformoseamento” que ocorriam na capital. Neste aspecto, outro paradoxo se instaura, pois, ao mesmo tempo em que se deseja a partida e a expulsão dos quase 100 mil retirantes que chegaram em um ano à capital, também necessitavam de uma parcela destes para executar as obras públicas previstas no projeto arquitetônico da Belle Époque.

O Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas atendeu ao pedido do Presidente, solicitando um “transporte de guerra” que servisse à emigração, pois segundo o ofício “os vapores não comportam todos os que querem emigrar”. Foi expedida uma ordem ao Ministério dos Negócios da Marinha a fim de que fosse posto á disposição do Presidente “um transporte de guerra para facilitar o serviço de emigração dos retirantes”, possibilitando o embarque de um número maior deles[*6].

Por essa razão, a Inspetoria Geral de Terras e Colonização iniciou modificações na Hospedaria de Imigrantes de São Paulo, a fim de acomodar o aumento do número de “hóspedes”. Uma das primeiras medidas foi a mudança de algumas cláusulas do regulamento que regia a Instituição, que passou a ser denominada Hospedaria de Imigrantes e Retirantes Cearenses[*7].

Havia explícito interesse na atração e permanência dos trabalhadores retirantes dentro da província neste momento. Isso se reflete nos documentos da Agência Oficial de Colonização, dirigidos ao Presidente da Província, tratando da necessidade de médicos e medicamentos para combater os diversos surtos epidêmicos que se alastravam na Hospedaria e nas colônias da região Sul. Pois as notícias sobre as doenças contagiosas já eram manchetes importantes utilizadas pelos jornais da província do Ceará, ou mesmo de São Paulo e do Império, que se posicionavam contra a emigração de trabalhadores nacionais a fim de evitar que os cearenses migrassem em direção a terra do café.

O estado sanitário das Hospedarias e das Colônias realmente parecia ser bastante precário, provocando o alastramento de inúmeras doenças como tifo e sarampo entre os imigrantes estrangeiros e cearenses. O Dr. Jayme Soares Serva, responsável pelo tratamento médico nas Hospedarias do Campo Grande da Luz e Ponte Grande de Sant’Anna, fez constar, em seu pedido de pagamento, as visitas feitas a imigrantes estrangeiros e a retirantes cearenses, que totalizaram 99 em 138 dias, de dezembro de 1877 a abril de 1878[*8].

Medidas como o aluguel de duas casas para servir de Hospedaria, com o objetivo de auxiliar a recepção de retirantes cearenses, e os pedidos de fornecimento, “sem atraso”, de gêneros alimentícios para evitar que qualquer “embaraço” atrapalhasse a “corrente de emigração espontânea” que se encaminhava para São Paulo, denotam uma preocupação em manter uma imagem positiva da emigração para essa Província.

Muitas famílias e indivíduos que se dirigiram para São Paulo, principalmente durante o ano de 1878, deram entrada nesta Hospedaria. No total, foi registrada, nos meses de maio a setembro daquele ano, a seguinte movimentação:


* Fonte: Agência Oficial de Colonização em São Paulo. Mapas do Movimento da Hospedaria da Capital. Núcleos Coloniais, ordem 7215. APESP.

É importante atentar para a diversidade de imigrantes que estiveram nestes espaços de hospedagem, o que nos leva a dimensionar que cada fazenda ou colônia compõe outro universo complexo e provavelmente conflituoso de convivência. Um estudo neste aspecto é imprescindível para compreender o conjunto de espaços de trabalho e sociabilidade que compõe a cafeicultura paulista no âmbito da História da imigração no Brasil.

Porém, esta documentação não pode servir de base para a quantificação dos cearenses que emigraram para São Paulo no período, pois só foram localizados documentos referentes a alguns dias de cada um desses meses, e os documentos do mês de agosto são completamente inexistentes. Em segundo lugar, os cearenses, bem como os imigrantes estrangeiros, podiam chegar a São Paulo por duas vias, o Porto de Santos e o do Rio de Janeiro. Em Santos, alguns eram encaminhados diretamente ao interior paulista a fim de evitar gastos para o governo provincial na Hospedaria.

Em alguns casos, famílias chegavam com “colocação” predeterminada. Esta colocação era resultante de contratos preestabelecidos por fazendeiros com o Agente Oficial de Colonização, ou os agentes contratados por donos de fazenda para arregimentar trabalhadores na hospedaria e nos portos da província.

Este poderia ser um capítulo à parte a ser estudado dentro do tema imigração. A atividade do agenciador de colonos foi imprescindível para o sucesso do projeto imigrantista na cafeicultura paulista. Podemos considerá-lo responsável direto pelos números e rotas estabelecidos por alguns migrantes dentro do território. Os agenciadores estavam a serviço dos grandes proprietários e de seus projetos particulares que envolviam escolhas políticas, étnicas e técnicas – esta, por vezes, menos determinante – do trabalhador a ser empregado em sua propriedade.

Joaquim José do Rego Rangel era o Agente Oficial de Colonização do período em questão. É de sua autoria um ofício dirigido ao Ministro do Império, no qual informava estar “havendo falta de braços para a lavoura e sendo preferido pelos fazendeiros os nacionais”. Afirmava também ter “diversos pedidos de retirantes cearenses” para serem empregados na lavoura paulista[*9].

Vejamos um destes ofícios:

Tendo recebido um pedido do fazendeiro – padre João Juliano de algumas famílias de retirantes cearenses para a sua fazenda no Amparo, e achando-se na hospedaria 9 famílias, compostas de 42 pessôas que desejam ir para a mencionada fazenda, rogo a V. Exª [...] que se digne conceder passagem aos mesmos, sendo 28 inteiras, 11 meias e 3 gratis.[*10]

Esse texto é modelar, pois se assemelha a todos os outros ofícios de Rangel, caracterizados pela utilização de uma linguagem bastante comercial. No telegrama ao qual faz referência, o fazendeiro dizia estar esperando as famílias na estação do Amparo no mesmo dia. Chama-nos atenção a pressa com a qual os pedidos são encaminhados, levando a deduzir acordos e comunicações anteriores aos próprios pedidos. Nos textos deste departamento, as expressões e o tom com o qual se referem ao trabalhador é semelhante a um contrato de compra e venda de mercadoria.

Algumas regiões aparecem com bastante frequência nos ofícios da Agência de Colonização deste período: Guaratinguetá e Rio Claro. Assim como o nome de alguns proprietários.

Nos documentos de Guaratinguetá era recorrente o nome do fazendeiro Dr. Rafael Brotero. Em 23 de maio de 1878, foram enviadas à sua fazenda cinco famílias, totalizando trinta e três emigrantes cearenses. Em 14 de junho, foram-lhe enviados mais doze desses trabalhadores. Neste mesmo dia, deixou de embarcar em direção a Rio Claro o cearense José Romão de França, com sua família composta de oito pessoas, em virtude de sua mulher ter adoecido. Novamente, em 19 de junho, nove pessoas dirigiram-se para esta propriedade. No entanto, em 20 de junho, o agente oficial enviou ao Presidente da Província de São Paulo uma lista com quinze nomes de retirantes cearenses expulsos da Hospedaria porque “se achavam ali ha bastantes dias e não se queriam empregar, recusando-se irem para Guaratinguetá com os demais”. No topo desta última lista estava o nome de José Romão e abaixo dele vinha o nome de apenas sete de seus familiares, sendo que o nome de sua esposa não estava incluído, o que pode indicar que ela tenha falecido. Seguidos à família de Romão estavam José Pinto Monte-Negro, com três pessoas de sua família, e Raymundo Theodorico de Castro, também com três familiares.

Após cinco dias deste ofício, encontramos as famílias de José Pinto Monte-Negro e Raymundo Theodorico compondo uma lista destinada à fazenda do mesmo Dr. Brotero. Isso indica que eles, juntamente com seus familiares, acabaram cedendo às pressões do agente e se submeteram ao emprego que lhes foi estipulado; diferente do que pode ter ocorrido com a família de Romão, cujos nomes não constavam nesta lista[*11].

A Hospedaria do bairro do Brás em São Paulo, órgão oficial de direcionamento de trabalhadores livres nacionais e estrangeiros, ao abrir as portas para o imigrante do Ceará, buscou enquadrá-lo dentro de um projeto de exploração, visando a sua inserção na cafeicultura paulista. Muitos foram sujeitados a essa política, outros insistiram no direito à escolha. Como o caso de Romão, indiciando ações de resistência, bem como recusas em aceitar qualquer “colocação”. Tornando-se agentes de seu próprio destino.

Nem todos os cearenses aceitaram o direcionamento que lhes foi imposto. Por essa razão, foram expulsos da Hospedaria como uma forma de pressionar a submissão ao projeto imigrantista que atendia, majoritariamente, aos interesses particulares da cafeicultura paulista.

A região de Rio Claro recebeu um grande contingente de trabalhadores nacionais, inclusive cearenses, formando um grupo heterogêneo de sujeitos provenientes dos mais diversos lugares do país[*12]. No entanto, já na estação da Luz, cinco pessoas, de um grupo de “cento e tantos” retirantes, recusaram-se a seguir para a Fazenda Rio Claro como fora acertado[*13].

Em documentos da Inspetoria de Terras e Colonização do Rio do Janeiro[*14], há informações sobre fazendeiros paulistas que se dirigiram diretamente à Corte para contratar trabalhadores nacionais. Como no caso do contrato firmado com o Sr. Scoth Blacklaw para transportar cento e dezesseis retirantes cearenses para a Fazenda Angélica, em Rio Claro, de propriedade do banco inglês London & Brazilian Bank, comprada da família Vergueiro[*15].

No mês posterior, a mesma Inspetoria da Corte remeteu vinte e duas famílias, compostas por cento e vinte e cinco retirantes, ao porto de Santos para serem destinadas à Fazenda Angélica, fruto de um contrato firmado com o seu representante. O Império, na gestão do Ministro Sinimbú, participou ativamente da intermediação entre fazendeiros paulistas e trabalhadores cearenses[*16].

As ações e estratégias empregadas pelos agenciadores oficiais e particulares tinham diversas facetas. No entanto, a precariedade de registros desses “nacionais”, provavelmente por se tratar do deslocamento de trabalhadores internos do território, dificulta tornar essa informação mais abrangente.

No município de Limeira eram contratados emigrantes que haviam deixado suas famílias no Ceará e que buscavam, através do emprego na lavoura, meios de auxiliar os parentes em situação de calamidade. A chegada de alguns destes emigrantes no sul do país, em geral, era subvencionada pela província de origem, mas trazia um trabalhador em condição inadequada para a estrutura contratual nas fazendas cafeeiras que, em geral, funcionavam sob regime de parceira e colonato, privilegiando o emprego de famílias e não de indivíduos. Neste caso, os agenciadores ou os fazendeiros contratantes solicitavam passagens ao governo para o restante da família dos emigrados.

O Sr. Francisco do Amaral, fazendeiro da região de Limeira, tendo firmado contrato com o retirante Antonio Coelho de Brito, solicitou passagem para que este voltasse ao Ceará a fim de buscar a sua família[*17]. Desta maneira, os próprios cearenses tornavam-se agenciadores não oficiais de um tipo específico de movimento migratório. Relações ligadas à afetividade e solidariedades vicinais podiam ser estabelecidas, pois, segundo Denise Aparecida de Moura, a “vinda para São Paulo nessa época, longe de restringir-se às negociações e interesses das elites e autoridades das duas Províncias, fez-se através de ajustes ligados a solidariedades vicinais, às formas de sociabilidade na terra natal, à afetividade e vínculo familiar e às relações de dependência.” Pautados em relações de vínculo familiar e local, muitos parentes, agregados e vizinhos emigraram para São Paulo, confiando nas informações levadas por seus parentes ou amigos quanto às boas condições de vida oferecidas pelo fazendeiro contratante.

Muitos cearenses que aportavam na Província de São Paulo traziam nos bolsos cartas contendo o endereço do local a ser procurado ou o nome da pessoa que iria buscá-los no porto. Por vezes, as cartas também podiam ser endereçadas ao Agente Oficial, devendo ser entregues no ato da entrada na Hospedaria para indicar o contrato preestabelecido com determinado fazendeiro.

O teor destes documentos, em especial sua linguagem textual, revela importantes indícios encobertos pelas artimanhas do discurso oficial, e tende a nos desviar das pequenas evidências que auxiliam no emaranhado político interesses que envolvem o tema das migrações. O caso citado abaixo pode ser um bom exemplo que contraria aquela vertente da “afetuosidade” abordada por Moura.

Compadre e amigo
Limeira, 24 de maio de 1878.

Tenho a presente sua cartinha datada de 22 do corrente que apresso-me em responder.
Ainda homtem estive com o fazendeiro com quem arranjei agasalho para Vmê., e disse que está pronto para recebel-o por isso logo que esta receber poder vir para esta. O Vicente e seu genro também podem vir hem sua companhia. As quatro famílias de que falla, se forem pessoas affeitas ao trabalho da lavoura, também podem vir, porque ainda que este fazendeiro não os queira acceitar, tenho uma encomenda de um fazendeiro importante de S. Carlos do Pinhal, de dez ou dozes famílias cearenses e que estou autorizado para isso.
Se encontrar algum obstáculo da parte do Exmº Sr. Presidente da Província em dar passagem, procure ahy o meu amigo Sr. coronel João de M. Pimentel, que mora na rua do Imperador, nº 29 e apresente-lhe esta carta que lhe prestará serviços no sentido de arranjar passagem com o Exmº Sr. Presidente.

Aqui o espero, seu companheiro e amigo
Lucas Ribeiro do Prado.[*18]

Segundo Denise Moura, o “fato de se ter alguém da própria região encarregado de arranjar trabalho e agasalho familiarizava e estimulava a vinda”. Observando que havia entre os comunicantes do documento uma relação afetuosa e familiar[*19].

Certamente estava estabelecida, neste caso, uma relação de confiança que pode ter sido um elemento fortalecedor da escolha feita por inúmeras famílias que se destinaram a São Paulo. Mas é fundamental não perder de vista que Lucas Ribeiro, apesar de cearense, desempenha a função de agenciador, ou seja, atende, em primeira instância, as necessidades do fazendeiro. Isso fica claro quando ele impôs uma condição para a vinda das quatro outras famílias sob o argumento de serem “pessoas afeitas ao trabalho da lavoura”. Além disso, ele deixa claro que recebeu “encomenda de um fazendeiro importante”. Fica evidente que se trata de uma pessoa conhecida, com considerável influência na região em que atuava. Tinha uma rede de influências que se estendia até o Ceará, onde certamente não era pessoa de pouca monta, já que estabelecia também boas relações com o coronel João Pimentel, morador da região administrativa da capital, bairro nobre do centro, dotado de condições de contato com o Presidente da Província.

O trato afetuoso, “compadre e amigo”, e o uso de diminutivos, “sua cartinha”, não revelam, necessariamente, uma relação afetiva[*20]. Vale lembrar que essas expressões “cordiais” estão no mesmo texto em que aparece a frase “encomenda de um fazendeiro importante”. E “encomenda” é um termo que encontramos reiteradamente nos ofícios da Agência Oficial da Colonização que primava pelo uso de uma linguagem comercial em seus textos.

Essa questão torna-se mais evidente quando lemos o discurso pronunciado, durante o Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, pelo Sr. Dr. Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, fazendeiro de Rio Claro, que protestou contra a introdução de trabalhadores chineses no Brasil:

[...] enthusiasta do braço livre, quer o trabalho sem escravos. Sua Província natal, o Ceará, victima da secca, da miséria, tem enviado homens para todos os pontos do Império, e em sua casa acham-se 55 cearenses, que trabalham. Seu sogro, o Barão do Porto Feliz, tem numerosos trabalhadores livres, justamente com os mesmos contractos que fizeram os barões de Indaiatuba e de Souza Queiroz. Estes três lavradores são os que em S. Paulo tem mais desenvolvido o emprego do braço livre e demonstrado perfeitamente ser possível obtel-o no Brasil de diferentes procedências, sem haver necessidade de recorrer aos coolies.[*21]

Jaguaribe Filho é cearense. Mas não é um fazendeiro do Ceará. Sendo um grande proprietário de São Paulo e genro do dono de uma das maiores fazendas cafeeiras desta Província, o Barão de Porto Feliz, está comprometido com as questões econômicas e políticas da cafeicultura paulista. Assim, sua naturalidade pode ter sido utilizada como um elemento de convencimento dos trabalhadores cearenses, já que esta região de Rio Claro encabeça tantas listas de passagens concedidas a imigrantes cearenses. Por isso não podemos cair na armadilha de considerar a existência de qualquer relação afetuosa entre ele e os trabalhadores cearenses empregados na fazenda de seu sogro.

Em mapa oficial da Agência Oficial de Colonização em São Paulo, o envio de trabalhadores às duas fazendas do Barão de Porto Feliz apresenta, em 1878, os respectivos números:


* Fonte: Núcleos Colônias, ordem 7215. APESP.

Mesmo sabendo da grande diferença numérica entre imigrantes estrangeiros e brasileiros estabelecidos na cafeicultura de São Paulo, impressiona-nos o reduzido número de brasileiros nestas fazendas. Isso considerando-se o discurso do Sr. Jaguaribe Filho, anteriormente citado, que enaltece a grande utilização de nacionais feita por seu sogro. No entanto, este mapa não menciona outra fazenda de propriedade do mesmo Barão, sob nome de Cascaio, para onde foram destinados, em um só dia, 49 cearenses remetidos diretamente pela Inspetoria de Terras e Colonização do Rio de Janeiro. E mais cinquenta enviados pela Agência Oficial de São Paulo dias depois, no mesmo mês[*22].

O Agente Oficial Joaquim José do Rego Rangel observou que, na segunda metade do ano de 1878, diminuiu consideravelmente o fluxo de emigrantes cearenses em São Paulo. Por esse motivo, recomendou ao Presidente da Província, João Baptista Pereira, que deveria ser dispensada uma das casas alugadas para servir como Hospedaria. Sugeriu ainda que fosse devolvida a que pertencia a senhora D. Lina Pereira de Castro, por se tratar de um aluguel mais caro e oferecer “menos comodidade”. O contrato das casas a que se referiu o agente foi estabelecido para dois anos, indicando que o governo provincial tinha perspectiva de que este fluxo, decorrente da seca, durasse por mais tempo.

No ano de 1879 foram registrados índices muito pequenos de entrada de retirantes cearenses nas Hospedarias de São Paulo. Em relatório, o Presidente registrou a entrada de apenas vinte e quatro cearenses na Hospedaria, de novembro de 1878 a novembro de 1879[*23].

Observando que este fluxo já havia diminuído, pautando-se nas informações dadas pela Presidência da Província de São Paulo, o Ministro do Império encerrou o subvencionamento de passagens para emigrantes cearenses com a seguinte justificativa:

Não tendo o governo Imperial até ao presente poupado esforços no intuito de soccorrer, nas respectivas provincias, aos individuos victimas da sêcca que as tem flagellado e não havendo por conseguinte necessidade de retirarem-se taes individuos para outras provincias, na immensa escala em que o fazem com o fim de procurarem meios de subsistencia, haja V. Exª de providenciar para que se restrinjam as passagens por conta do Governo, áquelles que a titulo de retirantes as solicitam; porquanto os retirantes que para aqui veem de longe de alliviarem os cofres publicos, ao contrario os aggravam com as despezas de alojamento, sustento e tratamento na hospedaria de imigrantes estrangeiros, sem que se procurem trabalho ou por desanimo ou indolência, e sem que sejam seus serviços aproveitados pelos proprietarios ruraes, ou emprezarios e gerentes de outras industrias, que os acham inhabeis e mal-acclimados. Nestas circunstancias não se demoraram em pedir passagem de volta com o que dupla vem ser a despeza do governo, que convem prevenir.[*24]

O Ministério do Império, na pessoa do Conselheiro Sinimbú, que esteve bastante envolvido com o agenciamento dos retirantes do Ceará, no final década de 1870, passou a justificar a indisposição financeira do Ministério em manter o subvencionamento de um índice de imigração considerado pequeno, através de desqualificações dos próprios trabalhadores.

Diferente do que a pouco acontecia com relação aos mesmos trabalhadores, esse discurso contribuiu para o reforço de uma representação degradante do pobre e livre nacional, sob a pecha de “inaptidão” à grande lavoura cafeeira, culminando no apagamento do seu emprego, ainda no século XIX, em concomitância com a escravidão africana e a imigração estrangeira, e sua contribuição para o desenvolvimento da cafeicultura no Sul do país e, principalmente, em São Paulo.

A firma Gomes & Moutt, do município de Amparo, proprietária da Colônia Orphanológica São Paulo das Cachoeiras, apresentou ao Presidente da Província desta região considerações bastante divergentes sobre os trabalhadores nacionais ali existentes:

Os cafesaes teem sido plantados por empreiteiros cearenses e paulistas, os quaes tomao de empreitada o plantio e tracto do café por 4 annos, á razão de 400 reis por pé, e teem o direito de plantarem no intervallo dos pés de café todos os cereaes necessários ao seu sustento, e são obrigados a conservarem as plantações no limpo, e no caso de mora, sempre que lhes for exigido. [...] A directoria da colônia não faz adiantamentos senão na proporção do serviço feito, de modo que a qualquer momento o empreiteiro que queira se retirar, lequida a sua conta, e se retira em paz, recebendo o saldo, se o tem, a seu favor; [...]
De 12 famílias cearenses contractados para os serviços da colônia 7 lequidaram suas contas e retiraram-se pagos e na melhor harmonia com os proprietários, sendo entregues as plantações que haviao tomado a si realizar.
Restão portanto 5 famílias que satisfeitas continuam a desempenhar os serviços á que se obrigaram.
Os empreiteiros morão em casas proprias e por elles contruidas junto as plantações a seu cargo.[*25]

Ainda se faz necessário, no entanto, buscar mais indícios que clarifiquem a inserção efetiva destes trabalhadores nacionais. Paula Beiguelman afirmou que eles foram empregados apenas como camaradas e jornaleiros em áreas mais novas da cafeicultura. E que o regime de colonato era reservado apenas à família do imigrante estrangeiro[*26]. No entanto, alguns cearenses registrados na Hospedaria de São Paulo solicitaram passagens para se empregar nos núcleos coloniais do governo, como no caso do Núcleo São Bernardo, sendo que a grande maioria, porém, foi destinada a propriedades particulares e nelas empregada em diversas atividades extremamente árduas e de baixa remuneração.

Um dos representantes dos lavradores de São Paulo no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, Sr. Antonio Moreira de Barros, fornece-nos uma concepção divergente da defendida pelo Sr. Dr. Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, anteriormente citado, também representante de São Paulo no Congresso:

Além do serviço da cultura de terras e da colheita de productos, o agricultor precisa ainda de jornaleiros para muitos trabalhos (Apoiados). [...] o trabalho dos terreiros; mas não é só este: um estabelecimento rural tem necessidade de fazer grande quantidade de serviços, como auxiliares directos ou indirectos de suas culturas (Apoiados, muito bem). [...] é preciso limpar pastos, aviventar vallos, fazer derrubadas, construir açudes, [...] matar formigas, seccar café, beneficial-o, salval-o das intempéries, etc., serviços que dificilmente se fazem empreitada; não são serviços de colonos, e tanto que os mesmos agricultores, que têm colônias no melhor pé de desenvolvimento, são obrigados a ter escravos no manejo desses serviços (Muito apoiados). Ora, desde que escassêa o trabalhador actual, que é o escravo, onde irão os lavradores procurar outros? Quaes são aquelles que têm melhor provado? Incontestavelmente são os chins.[*27]

O documento nos permite entrever, com melhores detalhes, as atividades desempenhadas no conjunto de serviços existentes na lavoura cafeeira de São Paulo. Na proposta do Sr. Antonio Moreira de Barros, tais atividades deveriam ser executadas dentro de uma divisão social e étnica muito clara no trabalho. Em geral, os jornaleiros eram mestiços pobres e livres (nacionais), comumente acusados de incompatibilidade com a agricultura comercial por sua rotatividade nas fazendas, e empregados em ações de preparação dos solos, plantio e colheita em regiões diferentes, dividindo o espaço com escravos e estrangeiros.

Ambos os representantes de São Paulo, o Sr. Moreira de Barros e o Sr. Dr. Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, condensaram em seus discursos a complexidade de propostas e concepções dos fazendeiros da grande lavoura paulista em torno da questão do trabalho no Brasil.

Moreira de Barros entendia por imigração a vinda de indivíduos estrangeiros para se estabelecerem por conta própria no país, em áreas despovoadas. E colonização a importação de famílias, através de “contratos anteriores”, para trabalharem na agricultura a serviço dos proprietários. Segundo a sua compreensão, um sistema empregado por fazendeiros para obter bons resultados com o regime e colonato consistiria na colocação das famílias em estabelecimentos “alheios ao da fazenda”, onde os colonos trabalhariam na colheita dos cafezais e na plantação de “cereaes para si ou para partilhar com o proprietário.” Modelo já empregado por alguns fazendeiros. Finalmente, o regime de trabalho definido pelo orador era o de “introdução de trabalhadores” chineses que desempenhassem as atividades mais pesadas nas fazendas.

O objetivo do discurso deste fazendeiro era deixar claro que a preocupação sobre a questão da índole racial do trabalhador a ser trazido para o país deveria ser do governo, já que o objetivo deste, segundo o orador, era povoar as áreas “incultas”. Ao grande proprietário caberia a preocupação com questões práticas que estavam ligadas à economia e necessidades da lavoura. Desta forma, afirmava que o maior problema para o cafeicultor, naquele momento, era resolver que tipo de auxílio capital o Governo poderia dar-lhe. Resolvida esta questão, ele (o fazendeiro) poderia buscar outros trabalhadores auxiliares de que necessitava, estrangeiros que pudessem ser mais facilmente “compelidos ao trabalho”.

Em sua opinião, não havia propriamente “falta de braços” no país, havia um mau aproveitamento dos braços existentes, bem como dos processos usados nos estabelecimentos agrícolas. Sobre esta questão afirmou que todas as soluções possíveis para aproveitar melhor os braços existentes deveriam considerar as medidas de “ordem social”, porque, em sua opinião, “o trabalhador brasileiro seria um auxilio immenso para a grande lavoura, si fosse aproveitado, porque existe em grande número; mas também ninguém ignora que, infelizmente, é elle por demais indolente...”[*28].

Neste momento, o domínio agrícola passava por um marcante processo, deixando de ser o que Sérgio Buarque de Holanda denominou de “baronia” para transformar-se “em um centro de exploração industrial”. Esse proprietário paulista, diante dos novos horizontes abertos pela expansão da cafeicultura, distanciou-se da tradição rural — no momento de agonia do sistema escravista —, passando a compreender a fazenda “simplesmente [como] seu meio de vida, sua fonte de rendas.”[*29] A ele pouco importavam, como se depreende do seu discurso, questões como o embranquecimento da raça ou o tipo de trabalhador a ser empregado nas fazendas, contanto que pudessem ser facilmente submetidos aos regimes de trabalho da cafeicultura.

A constante queixa a respeito da escassez de braços, declarada pelos cafeicultores do século dezenove, não passou de uma estratégia para manter uma corrente imigratória – não apenas estrangeira – intensificada na década de 1880. E manter os baixos valores dos salários pagos aos trabalhadores nacionais livres, ocasionando consideráveis índices de mobilidade e abandono nas fazendas de café.

Na década de 1880, o regime de colonato ainda permaneceu ativo devido à margem de lucro que proporcionava, que era maior do que o assalariamento do trabalhador. Os fazendeiros, portanto, mantiveram o trabalhador imigrante sob um sistema de remuneração por tarefa e por produção.

No entanto, para compreender como se processou a emigração cearense durante os últimos anos da década de 1880, durante a seca final daquela década, é fundamental a análise dos Ofícios da Inspetoria Geral de Emigração do Ceará, nos quais constam as relações de emigrantes embarcados para o Norte e o Sul do país, bem como os Ofícios da Emigração, em que constam as solicitações de passagens do ano de 1889[*30].

Maria Silvia Beozzo Bassanezi, utilizando-se dos Ofícios da Inspetoria Geral de Emigração para compreender a mobilidade de indivíduos e famílias emigrantes desta Província em direção às diversas Províncias das regiões Norte e Sul, forneceu-nos material estatístico importante para calcular o total oficial desta emigração e o seu perfil.

Bassanezi calcula que as 5.795 autorizações para transporte marítimo permitiram que 31.835 pessoas emigrassem do Ceará nos anos de 1888 e 1889. Destas autorizações, “91,6% foram concedidas a grupos de duas ou mais pessoas, na sua grande maioria aparentadas entre si e as restantes (487) para indivíduos viajando sós, desacompanhados de parentes e/ou agregados.”[*31]


* Fonte: Livros da Companhia de Vapores, APEC apud BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. Migrantes no Brasil da segunda metade do século XIX. In: Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP, XII., 2000, Caxambu/MG. Anais... Belo Horizonte: ABEP, 2000. p. 18.

Bassanezi concluiu que os cearenses emigrantes compunham um grupo relativamente jovem (38% tinham entre 0-10 anos; 45,7% entre 10-15 anos; 49,3% entre 15-49). Desta população, os que se encaminharam para o sul apresentavam índices maiores de crianças (42,8%) em relação ao Norte (36%). Com relação ao estado civil, destinaram-se ao “Sudeste”, no conjunto de uma população de 15 anos ou mais, uma porção maior de casados (67,3%) sendo viúvos (5,3%). Em relação ao Norte (54,5%), sendo viúvos (6,1%). Esta migração pode ser ainda dividida por grupos ou indivíduos. Estes grupos, segundo a pesquisadora, “podiam combinar apenas parentes consangüíneos de diferentes gerações e graus ou ainda estes parentes por afinidade e agregados.”[*32]

Apesar da diversidade de combinações desses grupos, a maioria, 52,1%, era composta de casais com filhos. Destes, 60,6% foram para a região Sul-SE e 47,3% para a região Norte. A maioria dos grupos era chefiada por homens, 93,3%, dos quais 84,6% tinham idades entre 15 e 19 anos. Das pessoas que efetuaram emigração individual, a maioria era solteira (69,4%), com idade entre 15-34 anos e do sexo masculino. Calculando a tabela por faixa etária observamos que, dos homens solteiros, entre 15-34 anos, emigraram 134. E mulheres, com mesma idade e estado civil, 34[*33]. Esses dados revelam que a emigração de cearenses para o Sul do país em 1888-1889 era caracteristicamente jovem, masculina e familiar.

Paulo César Gonçalves apresentou uma outra tabela, formulada a partir da mesma documentação, mas com consideráveis diferenças em relação a de Bassanezi, principalmente no que se refere aos números de cearenses destinados à São Paulo.


* Fonte: Livros da Companhia de Vapores, APEC. apud GONÇALVES, Paulo Cesar. Migração e Mão-de-Obra: Retirantes Cearenses na Economia Cafeeira do Centro Sul (1877-1901). 2002. Dissertação (Mestrado em História Econômica)– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002 p. 128.

Segundo Gonçalves, emigraram para a região Sul 9.399 pessoas. A Província de São Paulo recebeu 547 famílias, compondo um grupo de quase 3 mil pessoas, excluindo as que foram enviadas pelo porto da capital do Império, não constantes nos livros de registros da companhia de vapores[*34].

No relatório apresentado à Corte pelo Ministério dos Negócios do Império no ano de 1889, os números que quantificam a emigração de retirantes para São Paulo trazem um registro de 3.368 pessoas (638 famílias)[*35].

Observamos que a documentação produzida para registrar os emigrantes em 1877-78 trata apenas de registros de embarque. Nela está registrado apenas o nome do chefe da família e o número de “pessoas de família” que emigraram com ele. O destino destes é informado no cabeçalho da lista. Num outro formato de documento do mesmo período constam o nome do chefe da família e o número de familiares divididos em “até 5 anos” e “mais de 5 anos”. O destino permanece no cabeçalho[*36].

Observando os documentos que registraram esta segunda leva de emigração do Ceará, percebemos que os mesmos apresentam estruturas diferentes. Ao longo destes anos, essa documentação ganhou maior complexidade. A maioria das listas traz o nome dos chefes das famílias, o total de pessoas que as compunham e o destino de cada uma delas. Apresenta também um texto inicial, em que consta o número dos bilhetes de passagens de cada um dos chefes de família, o nome do vapor que conduziria a família, o custo da viagem e o financiador, em geral, o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.

Gradativamente surgiram alguns documentos, separados por grupo de emigrantes e, por vezes, discriminando as famílias, com um texto introdutório tratando da procedência destas pessoas e do destino almejado. Em alguns deles estão inclusos dados referentes ao grau de parentesco com o chefe da família, o estado civil e a idade. Em uma das últimas listas do ano de 1889 as informações sobre os emigrantes estão divididas por família, trazendo os nomes de cada um dos membros, suas idades, estado civil, naturalidade, destino e observações (onde consta o grau de parentesco com o chefe da família, que permanece encabeçando a lista)[*37].

No período em que Caio Prado esteve na presidência da Província do Ceará, outra documentação foi elaborada: os ofícios de pedidos de passagem. Estes pedidos eram feitos de forma individual ou por família. No texto introdutório consta a justificativa para emigração e o destino escolhido. Alguns ofícios trazem listas dos familiares, outros os incluem no texto introdutório. Na maioria destes textos encontramos informações como a região de procedência e a naturalidade, além da profissão dos emigrantes (em geral agricultores). Ao final, consta sempre a assinatura de delegados, vigários ou outras pessoas consideradas “idôneas”, atestando ser verdade o que alega o peticionário.

Consideramos que o conjunto destes documentos de 1889, permeado de pequenos indícios da vida dos emigrantes, permite adentrar um pouco mais na compreensão histórico-social dos processos de migrações no Brasil. Nestes trechos de vida foi possível perceber que o estudo da emigração de homens pobres e livres do Ceará desfaz-se de obviedades. E que a presença destes retirantes, emigrantes, imigrantes e, posteriormente, nordestinos não teve início no século XX, assim como não obedece a nenhuma rota “natural” de deslocamento, mas está vinculada a projetos políticos, econômicos e ideológicos pensados para a nação brasileira. Projetos que produziram discursos tão potentes, capazes de forjar representações negativas acerca destes trabalhadores. Representações que permanecem vivas ainda hoje nas falas e textos pelo país.

Referências bibliográficas e fontes

ANTONACCI, Maria Antonieta. Atravessando o Atlântico: memórias de imigrantes espanholas no fazer-se de São Paulo. Trajetos: Revista de História da UFC, v. 2, nº 2, p.131-164, 2002. (Dossiê: Trabalho e Migrações)
BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. Migrantes no Brasil da segunda metade do século XIX. In: Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP, XII., 2000, Caxambu/MG. Anais... Belo Horizonte: ABEP, 2000.
BEIGUELMAN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos. 2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Pioneira, 1977.
CONGRESSO AGRÍCOLA. Edição Fac-Similar dos Anais do Congresso Agrícola no Rio de Janeiro em 1878. Introdução de José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rio Barbosa, 1988.
DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura (1820-1920). Trad. de Waldívia Portinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
GONÇALVES, Paulo Cesar. Migração e Mão-de-Obra: Retirantes Cearenses na Economia Cafeeira do Centro Sul (1877-1901). 2002. Dissertação (Mestrado em História Econômica)– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
HALL, Michael M. Italianos em São Paulo (1880-1920). In: Anais do Museu Paulista. Tomo XXIX. São Paulo, 1979,
______. The origins of mass immigration in Brazil (1871-1914). Columbia University, PhD, 1969.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Herança Cultural. In: ______. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. Prefácio do Tradutor. In: Davatz, Thomas. Memórias de um Colono no Brasil (1850). 2. ed. Tradução, prefácio e notas de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Livraria Martins, 1972.
MINISTÉRIO. Ministério do Império ao Presidente da Província do Ceará, avisos. (Série) Ala: 19; Estante: 407; FUNDO: Executivo Provincial, Livro nº 09 (1878-1880),Ofícios Diversos, Arquivo Público do Estado do Ceará — APEC/Ce
MOURA, Denise A. Soares. Saindo das Sombras: homens livres no declínio do escravismo. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1998. p. 125. (Coleção Campiniana, nº 17).
OFÍCIOS DA AGÊNCIA Oficial de Colonização em São Paulo, 1878, 1.2 Núcleos Coloniais – Ordem 7215, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
REGISTRO DE MINUTAS de ofícios da Presidência da Província do Ceará dirigidas ao Ministro Secretário do Estado dos Negócios do Império; ao Ministro dos Negócios da Agricultura Comércio e Obras Públicas, ao Ministro da Fazenda. 1877. Livro: 121 B, Ofícios Diversos, Arquivo Público do Estado do Ceará — APEC/Ce.

ANEXO

Relação das Colônias a cargo do Estado e fundadas com o seu auxílio


Fonte: Inspectoria Geral das Terras e Colonização. Núcleos Coloniais. Ordem 7.215. APESP

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Possui graduação em História pela Universidade Federal do Ceará (2001) e mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003). É doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009). Atua desde 2004 na área de Educação em Museus. Atualmente é Coordenadora do Museu da Memória do Gás.
HALL, Michael M. Italianos em São Paulo (1880-1920). In: Anais do Museu Paulista. Tomo XXIX. São Paulo, 1979, p. 21.
No anexo deste artigo consta a listagem dessas colônias distribuídas entre Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de S. Paulo pelo Presidente da Província, Laurindo Abelardo de Brito, no dia 5 de fevereiro de 1880. Segundo Paulo César Gonçalves, o relatório do Presidente da Província de São Paulo, de 1855, registrava, em cinco colônias paulistas, a presença de 10% de trabalhadores brasileiros. No relatório de 1858, aponta a presença de 80 famílias de trabalhadores nacionais compostas por 511 pessoas num universo de 26 colônias produtoras de café. Essas pessoas dividiam o espaço com 654 famílias de imigrantes estrangeiros, entre eles alemães, suíços, portugueses e belgas. GONÇALVES, Paulo Cesar. Migração e Mão-de-Obra: Retirantes Cearenses na Economia Cafeeira do Centro Sul (1877-1901). 2002. Dissertação (Mestrado em História Econômica)– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 37.
Registro de Minutas de ofícios da presidência da Província do Ceará, 8 de Setembro de 1877. Livro: 121B.
“Considerando que os soccorros ministrados aos retirantes cearenses, nas condições, e no modo como são distribuídos, importam o consumo, não simplesmente improductivo, mas prejudicial, de elevadissimas sommas, illudidas as benevolas intenções do governo imperial.” Fala com que o exm. Senr. Dr. José Joaquim do Carmo abriu a 1ª sessão da 21ª legislatura da Assembléia Legislativa da Província do Pará em 22 de abril de 1878.
Registro de Minutas de ofícios da presidência da Província do Ceará, 22 de Outubro de 1877. Livro: 121B.
Observamos mudanças no regimento feitas a bico-de-pena pelo Presidente da Província de São Paulo por sobre o texto impresso enviado pelo Agente Oficial de Colonização, José do Rego Rangel. Estas incluíam a supressão de dois artigos, inclusões de algumas palavras e o acréscimo de um novo parágrafo, referente à expulsão de imigrantes caso não estivessem prontos a embarcar no horário e local determinados pelo governo. Agência Oficial de Colonização em São Paulo. 27 de Junho de 1878. Núcleos Coloniais, ordem 7215, APESP.
Agência oficial de Colonização em São Paulo. 27 de Junho de 1878. Núcleos Coloniais, ordem 7215, APESP. Em abril do mesmo ano, o professor José Luiz Flaquer, enviado pelo Presidente da Província, informa o aparecimento de casos de varíola. Novamente em maio, o Presidente é avisado sobre este surto pelo Cirurgião do exército, Flávio Augusto Falcão, identificando casos inclusive de varíola hemorrágica. Agência Oficial de Colonização em São Paulo. 29 de Abril de 1878 e 4 de Maio de 1878. Núcleos Coloniais, ordem 7215, APESP.
Agência Oficial de Colonização em São Paulo, 3 de Maio de 1878. Núcleos Coloniais, ordem 7215, APESP.
Agência Oficial de Colonização em São Paulo, 20 de Abril de 1878. Núcleos Coloniais, ordem 7215, APESP. As passagens cobradas integralmente são referentes às pessoas com mais de 9 anos, meias passagens eram cobradas para pessoas com idade entre 2 e 9 anos e os menores de 2 anos não pagavam passagem.
Agência Oficial de Colonização em São Paulo, 20 de Abril de 1878. Núcleos Coloniais, ordem 7215, APESP. Idem.
Warren Dean afirma que a emigração constante desses trabalhadores, inclusive emigrantes da seca, contribuiu de tal maneira para o crescimento das fazendas “que é surpreendente que tenha recebido tão pouca atenção.” p. 108-109.
Agência Oficial de Colonização em São Paulo, 27 de Maio 1878. Colônias, ordem 7 215. APESP.
Essa documentação está localizada no acervo do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
GONÇALVES, Paulo Cesar. Migração e Mão-de-Obra: Retirantes Cearenses na Economia Cafeeira do Centro Sul (1877-1901). 2002. Dissertação (Mestrado em História Econômica)– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 123.
Em telegrama enviado ao Presidente da Província de São Paulo, o mesmo ministro faz o seguinte questionamento: “Constando que alguns fazendeiros paulistas desejao contractar trabalhadores cearenses diga-me V. Exª que funcamento há e no caso affirmativo que número se poderá enviar.” 14 de setembro de 1878. Núcleos Coloniais, ordem 7215. APESP.
Limeira , 29 de Maio de 1878. Ofícios diversos, ordem 1094. APESP.
Anexada em ofício de pedido de passagem feito pelo Agente Oficial em 26 de maio de 1878. O que indica que estas pessoas emigraram e deram entrada na Hospedaria de onde foram encaminhadas para a região de Limeira, provavelmente à fazenda deste contrato. Não consta a lista de pessoas emigradas. Colônias, ordem 7215. APESP.
MOURA, Denise A. Soares. Saindo das Sombras: homens livres no declínio do escravismo. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1998. p. 125. (Coleção Campiniana, nº 17).
A autora conclui com este documento que o “trato afetuoso e a possibilidade de familiarização compuseram a personalidade da cultura brasileira.” Pautada na questão da “cordialidade brasileira” de Sergio Buarque de Holanda ela afirma que estes parentescos por laços de amizade “são significativos no contexto da migração de cearenses para São Paulo, pois revelam a presença de práticas costumeiras e tradicionais”. No entanto, é importante refletir também sobre as estratégias deste “homem cordial” de que fala Holanda – aqui representado pelo agenciador Lucas Ribeiro —, já que o mesmo apresenta uma “aversão ao ritualismo”, que o leva à constante tentativa de estabelecer uma relação de intimidade. Traço marcante, segundo Sergio Buarque, das relações financeiras ou comerciais no Brasil.
CONGRESSO AGRÍCOLA. Edição Fac-Similar dos Anais do Congresso Agrícola no Rio de Janeiro em 1878. Introdução de José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rio Barbosa, 1988. p. 157.
Agência Oficial de Colonização em São Paulo, 7 de Abril de 1878. Colônias, ordem 7215. APESP.
Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de S. Paulo pelo Presidente da Província, Laurindo Abelardo de Brito, no dia 5 de fevereiro de 1880.
Rio de Janeiro, 27 de Setembro de 1879. Ministério dos Negócios do Império. Livro: 09. APEC.
O objetivo principal dessa colônia, fundada em 3 de novembro de 1877, era fornecer o aprendizado agrícola “através da moralidade, ordem e disciplina aos órfãos”. Estes, por sua vez, obtinham nesse espaço a possibilidade de formação de um pequeno pecúlio que era previamente acertando entre os proprietários da colônia e o juiz de órfãos. Certamente os órfãos cearenses direcionados para essa fazenda eram fruto do alto grau de mortalidade apresentado durante a seca de 1877-1879, que lançou na orfandade inúmeras crianças do Ceará. Ofícios diversos, Amparo, ordem 796. APESP.
BEIGUELMAN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos. 2. ed., rev. e ampl. São Paulo: Pioneira, 1977. p. 108.
CONGRESSO AGRÍCOLA. Edição Fac-Similar dos Anais do Congresso Agrícola no Rio de Janeiro em 1878. Introdução de José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rio Barbosa, 1988. p. 189.
CONGRESSO AGRÍCOLA. Edição Fac-Similar dos Anais do Congresso Agrícola no Rio de Janeiro em 1878. Introdução de José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rio Barbosa, 1988. p. 185-190.
HOLANDA, Sergio Buarque. Prefácio do Tradutor. In: Davatz, Thomas. Memórias de um Colono no Brasil (1850) . 2. ed. Tradução, prefácio e notas de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Livraria Martins, 1972. p. 13-4.
Esses ofícios da Inspetoria Geral de Emigração, antes da reformulação do acervo do Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), estavam identificados como Livros das Companhias de Vapores.
BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. Migrantes no Brasil da segunda metade do século XIX. In: Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP, XII., 2000, Caxambu/MG. Anais... Belo Horizonte: ABEP, 2000. p. 15.
BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. Migrantes no Brasil da segunda metade do século XIX. In: Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP, XII., 2000, Caxambu/MG. Anais... Belo Horizonte: ABEP, 2000. p. 20.
BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. Migrantes no Brasil da segunda metade do século XIX. In: Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP, XII., 2000, Caxambu/MG. Anais... Belo Horizonte: ABEP, 2000. p. 17-23.
GONÇALVES, Paulo Cesar. Migração e Mão-de-Obra: Retirantes Cearenses na Economia Cafeeira do Centro Sul (1877-1901). 2002. Dissertação (Mestrado em História Econômica)– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. p. 128-129. Essa tabela constitui uma versão resumida da apresentada pelo pesquisador, em que estão inclusas as datas e vapores que transportaram cada leva de emigrantes às capitais sulistas.
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, 1889.
Os documentos de 1877-78, que apresentam essa estrutura, foram equivocadamente catalogados junto com os documentos referentes à seca de 1888-1889, assim, fazem parte do grupo sob o título: Governo da Província do Ceará, Ofícios – Emigração (1889). APEC. É provável que um montante mais significativo das listas de emigrantes de 1877 ainda esteja por catalogar.
Idem. Eles também contêm pedidos de passagens de cada família o indivíduo em separado.