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Artigo publicado na edição nº 42 de junho de 2010.
Direitos de Escravos:
maus-tratos e jusnaturalismo em petições de liberdade (América portuguesa, segunda metade do século XVIII e início do XIX)

Priscila de Lima

O chocante documento publicado por Luiz Mott, em 1984, revela os extremos a que podiam chegar os castigos impostos por senhores aos escravos na América portuguesa do século XVIII[*1]. No auto da denúncia feita à Inquisição contra o mestre de campo Garcia Dávila Pereira de Aragão - homem muito rico, pertencente a uma das famílias nobres da capitania da Bahia - encontram-se descritos minuciosamente os vários atos de crueldade imputados a seus escravos. Ao escravo Jerônimo de oito anos, por exemplo, "[...] depois de o esbordoar com uma tábua, deixando-o quase morto [...] o mandou açoitar rigorosamente [...] mandando depois por-lhe uns grilhões nos pés e uma argola de ferro no pescoço." Em seguida, deixou-o pendurado com a cabeça para baixo e novamente o açoitou com rigor, quase o levando a morte[*2].

No Maranhão, entre os anos de 1799 e 1800, encontra-se outra ocorrência dos procedimentos rigorosos de senhores para com seus escravos. O andamento deste caso, no entanto, sugere um tratamento diferenciado por parte das autoridades e dos próprios escravos se comparado àquele dado a conhecer no caso envolvendo os atos praticados por Garcia Dávila Pereira, que, aliás, nada sofrera em decorrência das acusações. Na representação feita pelo Procurador Geral dos Índios e Liberdades do Maranhão, Antonio Correa Furtado de Mendonça, Maria Isabel Madalena Belfort foi acusada de praticar uma série de suplícios horrendos para com seus escravos [*3] . Essa distinta senhora é descrita pelo Procurador como alguém "[...] esquecida de todos os sentimentos de humanidade, de religião cristã, e das leis do Reino." Manteve presos num cárcere dois escravos, chamados Aportázio e Balbino, os quais, "[...] entre rigorosas sevícias, de açoites e pancadas com que os maltratava [...] passou a lhes coser as bocas com aguilhão de ferro grossas, com que se costumam coser sacas de algodão, concorvando-lhes nos beiços pontos de barbante grosso e por cima mordaças ou chapas de ferro." Mesmo padecendo de tantos males, os ditos escravos conseguiram fugir e foram socorrer-se com o governador, o qual, "[...] cheio de caridade católica, de zelo de justiça e da observância das leis [...]", os mandou até o ouvidor da comarca. Este decidiu colocá-los em depósito sob a guarda do procurador geral dos índios e liberdades, a fim de que fosse efetuado o corpo de delito e iniciada as devidas ações legais para fazer justiça aos ditos escravos.

Apesar de não se ter conhecimento do fim desta causa, seu conteúdo indica que existiam outros caminhos aos escravos violentados por seus senhores, que iam além de esmorecerem perante as violências extremas ou fugirem para outras paragens. Ao socorrerem-se com o governador, demonstraram que havia certo conhecimento disseminado entre os escravos de que podiam contar com determinadas proteções legais em situações de grande perigo e violência.

Este artigo discorre sobre os argumentos mediante os quais se procurava dar sustentação legal aos pedidos de liberdade de escravos na América portuguesa durante a segunda metade do século XVIII e os primeiros anos do XIX, os quais foram submetidos à decisão do rei, através do Conselho Ultramarino. Em petições provenientes de localidades tão diferenciadas entre si como eram o Maranhão, a Bahia, o Rio de Janeiro, as Minas Gerais e São Paulo, percebeu-se que os maus-tratos e as violências exacerbadas figuravam entre as considerações de maior apelo entre aqueles que almejavam se libertar. Da análise dessas petições, bem como dos pareceres das autoridades coloniais e ultramarinas, pretendeu-se inquirir também se o ideário de liberdade tão presente ao pensamento do século das luzes encontrou ressonância de alguma forma no mundo colonial.

***

No interior do vasto campo historiográfico dedicado aos estudos sobre escravidão, os trabalhos voltados para a compreensão dos caminhos percorridos por escravos rumo à liberdade apresentam metodologias e interesses variados. Em conjunto, revelam aspectos da complexidade das relações sociais presentes no mundo escravista colonial e imperial, minimizando leituras que outrora entendiam o escravo tão somente enquanto produto de relações econômicas, sendo incapaz de revelar-se sujeito ativo[*4] . Dentre as formas através das quais o escravo obtinha a liberdade destacam-se as alforrias concedidas pelos senhores, as quais podiam ser gratuitas, dadas em vida ou após a morte do senhor como recompensa pelo bom andamento e pelos serviços do cativo ou mediante pagamento, o qual poderia ser dado na íntegra ou parcelado[*5].

Existiram, no entanto, outros meios de obtenção da liberdade, os quais não passavam necessariamente pela concessão do senhor. Destacam-se desses as fugas, muito importantes para a vertente historiográfica que, centrada principalmente na formação dos quilombos, ressalta a resistência escrava[*6]. No entanto, além das fugas para longe de seus senhores, situação que conformava o cativo num permanente estado de medo do iminente retorno ao cativeiro, era também possível entrar em juízo e, através de meios legais, tornar-se liberto.

Os autores preocupados com a atuação dos escravos buscando a liberdade pela via judicial começaram a ganhar expressão na historiografia brasileira na década de 1980. Procedendo a uma renovação de abordagens, metodologias e fontes, passaram a acentuar o dinamismo do relacionamento senhor-escravo e demonstraram que o cativo era sujeito passível de certos direitos[*7] . Dado o interesse do presente artigo, dentre esses trabalhos salienta-se o de Silvia Lara, intitulado Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808, publicado pela primeira vez em 1988. Nesse livro, a autora tem como problema central entender o relacionamento senhor-escravo - sob o ponto de vista do controle social - a partir da violência que marcava essa relação. A noção de violência está diretamente associada aos castigos físicos, acerca de cuja prática Lara salienta que "[...] fazia parte do governo econômico dos senhores como exercício de dominação, instrumento de controle e disciplina." Tomando como ponto de referência principalmente os escritos dos padres jesuítas Antonil, Jorge Benci e Manoel Ribeiro Rocha, os quais procuravam normatizar o governo dos escravos, afirma que o uso do castigo era uma prática comum e aceitável no contexto colonial, tanto por parte de religiosos, das autoridades e mesmo dos escravos. Porém, esse castigo deveria ser moderado, justo, corretivo, educativo e exemplar. Assim, apesar dos castigos serem admitidos como algo natural, era conhecimento disseminado que deveria ser moderado[*8] . Essas normas, não estando registradas no principal código legislativo português, as Ordenações - visto que nada ali se encontra a respeito de como os castigos aos escravos deveriam ser aplicados -, estavam assentadas principalmente na tradição e no costume, apesar de terem sido matéria de preocupação régia em fins do século XVII[*9].

O fato de o castigo justo ter sido uma prerrogativa incontestável do poder dos senhores sobre seus escravos teve consequências que corroboraram para a criação das normas que regulavam o relacionamento entre ambas as partes. Isso garantiu um certo respaldo aos escravos para questionarem o poder de seus senhores quando estes incorriam em abuso dessas normas. Tendo isso em vista, entende-se porque se encontram casos em que a alegação de maus-tratos constitui um dos pontos-chave de petições de liberdade encaminhas às altas instâncias do Estado português, notadamente ao Conselho Ultramarino e ao próprio Rei. Ora, ao se analisar as várias petições de liberdade que subiam à avaliação régia, pode se afirmar que a fundamentação para tal medida estava assentada no conhecimento de que havia certas proteções legais para com os cativos, mesmo que não estivessem registradas em códigos escritos. Nesse sentido, o caso das alegações de sevícias é significativo. Em decorrência, apelar ao rei constituía-se numa medida extraordinária, a qual estava assentada na ideia de que o monarca era árbitro da justiça, mediador de conflitos, daí advindo a necessidade de sua intervenção quando noções de justiça eram transgredidas[*10].

Da capitania da Bahia, sabe-se de fragmentos da vida do escravo Carlos, que em 1775 requereu sua liberdade através de petição enviada ao Conselho Ultramarino[*11] . Nela indica-se que Carlos já teria pagado por sua liberdade, mas ainda assim continuava tiranizado por seu senhor. Era maltratado e sofria com duros castigos, relatados como desumanos. Essa situação por si só já constituía elemento favorável a sua libertação, mas na retórica em prol de Carlos vem corroborar o fato de que a "[...] liberdade é devida ao homem por Direito Natural. É favorável por todas as leis, amplificada, e protegida paternalmente pelas justas, pelas santas, e pelas sábias leis de Vossa Majestade." Decorrentemente, o cativeiro havia sido introduzido "pelas gentes contra o natural direito"[*12] . Seu dono, o cônego José da Silva Freire, buscando defender-se das acusações proferidas por Carlos, alegou que o escravo era de propriedade de seu pai e não dele [*13]. Segundo informações do cônego, Carlos havia proposto no juízo da cidade um libelo para obter a liberdade e, por estar perdendo a causa,

[...] recorreu ao extraordinário meio do presente requerimento, em que para enganar a Vossa Majestade não só ocultou a verdade de todas estas circunstâncias, senão que argüiu tantas falsidades de que ele quis compor o dito requerimento, sem mais outra prova que a sua livre asserção.

Contra as acusações de maus-tratos, justificava-se dizendo que tinha apenas aprisionado Carlos com uma corrente na casa de seu verdadeiro dono "[...] pelas repetidas insolências que havia cometido estando fugitivo seis meses." Segundo José da Silva, esse castigo era permitido pelo livro 5, título 95, parágrafo 4 das Ordenações Filipinas [*14]. O cônego também se defendia das acusações que lhe imputavam afirmando que enquanto Carlos esteve depositado na prisão, esperando a decisão do processo de liberdade, não fora assistido com alimentação, pois que "[...] mandando-lhe sempre o sustento, nunca o quis receber com o fingido pretexto de que poderia vir envenenado, ao mesmo passo que não consta que falecesse nenhum dos presos com quem ele no princípio o repartia." Por despacho do Conselho Ultramarino, ficou assentado que o Chanceler da Relação da Bahia deveria averiguar a causa e dar o parecer sobre a concessão ou não da liberdade. A resposta do Chanceler foi contrária aos anseios de Carlos e deixava a decisão final para o Rei, não se sabendo qual foi o parecer final.

Sem fazer juízo de valor sobre a veracidade dos fatos alegados na petição do escravo Carlos, o que chama atenção é o fato de que ao lado dos maus-tratos o direito natural figura como um valor legitimador de qualquer causa de liberdade. A referência ao direito natural remete a debates que estavam ocorrendo, na Europa, acerca da liberdade - e neles a condição dos negros não era de todo ignorada - os quais ganhavam cada vez mais notoriedade principalmente ao longo da segunda metade do século XVIII. Segundo Maria do Rosário Pimentel, "[...] no século XVIII, a liberdade natural era um princípio irrefutável." Tomando como referência as reflexões do abade Reynal em sua Histoire des Deux Indes (1770), essa autora identifica alguns dos principais significados dessa noção naquele contexto, indicando que seria: "[...] o direito que cada um tem de dispor de si; a qualidade mais distintiva do homem após a razão, um bem inalienável; a propriedade de seu corpo e o aproveitamento de seu espírito; liberdade una e individual."[*15] Saliente-se o fato de que, apesar dessas discussões serem provenientes de meios letrados e ilustrados, seus reflexos não passaram despercebidos àqueles que seriam seus verdadeiros beneficiários. Como indica Maria Beatriz Nizza da Silva, nas petições de liberdade da segunda metade do século XVIII, a referência ao direito natural passou a ser cada vez mais frequente.[*16]

Francisco Cipriano, homem pardo, escravo do reverendo doutor Antonio Caetano de Almeida Vilas Boas, vigário colado da Igreja de Nossa Senhora do Pilar da vila de São João Del Rei, também não hesitou em recorrer aos meios legais disponíveis para obter sua liberdade[*17] . Como não poderia arcar com as despesas de um processo comum de liberdade, não só devido à "[...] sua pobreza, tão inerente a sua infeliz condição de cativo, mas por ter de lutar com tanta desproporção de forças com o reverendo vigário [...]", Francisco remeteu petição ao Conselho Ultramarino em abril de 1802, a qual fora assinada por ele mesmo, o que traz indicações de que sabia ler e escrever. Recorrer diretamente ao monarca significava ficar isento da maior parte dos gastos exigidos num processo que corresse nas instâncias judiciais locais, bem como mais uma alternativa à causa de liberdade, a qual não seria contestada se emanasse diretamente do Rei.

Francisco pedia a graça régia para que "[...] se dignasse mandar conhecer pelo ouvidor da comarca de São João Del Rei das sevícias praticadas com o suplicante, interpondo a sua informação sobre a verdade do que alega, para que em tal caso Vossa Alteza Real se dignasse mandar conceder sua liberdade pelo mesmo Conselho." Seu senhor foi ali descrito como alguém violento, que antepunha seu "[...] gênio cruel e violento aos sentimentos da natureza e clamores da razão [...]" e que tratava "[...] ao suplicante e aos mais escravos com estranha tirania, praticando severos e desumanos castigos de sorte que repetidas e freqüentes vezes tem conservado ao suplicante pelo longo tempo de seis meses em cárceres, carregado de ferro." Este procedimento era "[...] ofensivo às saudáveis máximas do cristianismo e deveres da brandura e caridade [...]", ainda mais por se tratar de um religioso, cujo dever era "[...] instruir com doutrina e exemplo a todos os fiéis e particularmente aos seus fregueses, família e domésticos." Mas ao lado do aspecto religioso, havia a agravante temporal, pois tratar aos escravos com severos castigos era "[...] repugnante com as sábias leis desta Monarquia, as quais tolerando cativeiro nos domínios ultramarinos guardam os efeitos do poder dominical, proibindo aos senhores com severas penas o uso de cárcere privado"[*18]. Destaca-se também o argumento de que mesmo quando o escravo incorresse em delitos graves, a punição dos mesmos deveria ser "[...] regulada pela utilidade pública, a fim de se evitar a injustiça e abuso de direito [...]" e, que segundo as referidas leis, o mau-trato "[...] induz necessariamente à perda de domínio da parte dos senhores, e constitui um dos legítimos modos porque os escravos adquirem a sua liberdade."

A petição de Francisco Cipriano - que pode ter sido executada por ele próprio sem mediação de um procurador, pois não se encontra referência a tal figura no requerimento - foi construída de forma muito bem organizada retoricamente, sendo que seus argumentos foram tomados como plausíveis pelos procuradores e secretário do Conselho Ultramarino. Sua petição foi despachada para a América com parecer favorável, determinando que o ouvidor da comarca do Rio das Mortes averiguasse a denúncia de maus-tratos praticados contra o suplicante e informasse ao Rei sua conclusão. Se ficasse comprovado que Francisco Cipriano fora tratado com violência, seria assistido com a graça real e entende-se que ganharia a liberdade. Infelizmente, como em tantas situações semelhantes, não se sabe qual o desfecho final desse caso, mas o parecer inicial do Conselho Ultramarino indica que as denúncias de Cipriano foram tomadas como válidas e poderiam lhe garantir a liberdade. Como se observa, as leis alegadas no requerimento eram provenientes de interpretações de certas leis, como parece ser o caso do cárcere privado, ou eram decorrentes de um repertório de direitos advindos do costume, notadamente aquele referente aos maus-tratos. Nesse ponto específico, também se nota um uso da lei que ia além do que estava contido nas já mencionadas Cartas Régias do final do século XVII, pois nelas a principal punição do senhor cruel seria a obrigação de vender seu escravo para outrem e não a concessão da alforria.

Histórias como as de Carlos e Francisco Cipriano foram recorrentes durante a segunda metade do século XVIII e sugerem que, naquele período, os novos ideais de liberdade divulgados por sujeitos vinculados ao pensamento ilustrado tiveram impacto no mundo colonial. Às noções tradicionais de direito, como no caso dos maus-tratos, vieram somar-se aquelas que reclamavam a naturalidade da liberdade para todos os homens. Mesmo entre as autoridades coloniais, os reflexos dessas ideias fizeram-se presentes. O Governador de São Paulo, Melo Castro e Mendonça, em 1789, escreveu ao ouvidor de Paranaguá a fim de persuadi-lo a convencer a senhora de uma escrava a libertá-la, visto que a escrava já se encontrava avaliada e seu marido possuía o dinheiro para custear a compra de sua liberdade. Nas palavras de Melo Castro, "[...] a justiça e a humanidade me fizeram interessar nesta alforria [...]", por isso pedia ao ouvidor para que fizesse "[...] entrar nesses corações ímpios sentimentos de compaixão e ternura por uma classe de indivíduos que Deus não deve fazer desgraçados, visto que em tudo o mais nos são semelhantes."[*19]

A interveção de governadores em causas de liberdade e com parecer favorável pode ser observada em outros espaços da América portuguesa durante a segunda metade do século XVIII. D. Diogo de Souza, governador do Maranhão, em 1799, ao dar seu parecer acerca do pedido de liberdade que o escravo Luiz da Costa Lama intentava para seu filho, refletindo sobre o "espírito" das leis portuguesas, afirmou que elas tinham por odiosa a escravidão, a qual era responsável por "indecência, confusões e ódios entre os vassalos". Também era prejudicial ao Estado, visto manter tantos vassalos "lesos, baldados e inúteis" [*20]. Apesar de não mencioná-lo diretamente, D. Diogo estava citando as mesmas justificativas presentes no alvará de 16 de janeiro de 1773[*21] . Para finalizar suas declarações, admitia que as leis portuguesas toleravam a escravidão, mas que, ao mesmo tempo, favoreciam muito a liberdade, por ser aquela "[...] contrária ao direito das gentes, ofensiva dos direitos de homem, e sem título ou direito algum." Em 1804 novamente vê-se D. Diogo de Souza envolvido numa causa de liberdade e dando-lhe parecer favorável. A beneficiária de seu posicionamento fora a escrava Marciana, de propriedade de Manoel Antonio Leitão Bandeira, o qual não hesitou em recorrer ao Rei a fim de reclamar seus direitos de proprietário [*22]. Na petição, acusava o Governador de interferir na causa de forma abusiva, posto que estando em andamento o processo de liberdade "[...] mandara ele avançar os autos a Secretaria daquele governo, e ordenara ao ouvidor que se avaliasse e se lhe passasse carta de alforria." Mesmo admitindo que "a liberdade é preciosa ao Estado", seus direitos de senhor deveriam ser resguardados.[*23]

Ao longo desta exposição foi possível perceber que, durante a segunda metade do século XVIII e início do XIX, aos escravos que recorriam ao Rei a fim de obterem a liberdade havia a disponibilidade de um campo argumentativo legitimador de suas demandas. Entre as alegações mais recorrentes estava a de maus-tratos, que, apesar de não constar em nenhum código legal, era considerada uma das formas legítimas através da qual os escravos poderiam obter a liberdade. Numa perspectiva mais geral, observou-se que as ideias acerca da liberdade natural não ficaram restritas aos meios ilustrados da Europa, mas seus reflexos chegaram ao mundo colonial. A circulação desses ideais pode ser observada tanto no nível das autoridades coloniais como entre a população comum, notadamente entre os escravos. Mesmo tendo em vista que naquele contexto a escravidão dos negros era legítima no espaço colonial português, bem como em colônias de outros Estados europeus, sugere-se que, a nível individual, os escravos souberam tomar proveito das possibilidades de sua época na busca da tão almejada liberdade.

Referências bibliográficas

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Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É vinculada ao grupo Espaço e Sociabilidades com linha de pesquisa em Espaços de Sociabilidades de Escravos e Negros Livres (séculos XVIII e XIX). É bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e tem apoio, em forma de auxílio, da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná. Desenvolve pesquisa sobre os usos e interpretações que foram feitos por parte de escravos e homens de cor livres na América, durante a segunda metade do século XVIII e início do XIX, da legislação sobre escravos decretada no período pombalino. E-mail para contato: cila_lima@yahoo.com.br.
MOTT, Luiz. Terror na Casa da Torre: tortura de escravos na Bahia colonial. In: REIS, João José (Org.).Escravidão e Invenção da Liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
Apud MOTT, Luiz. Terror na Casa da Torre: tortura de escravos na Bahia colonial. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 31.
Cf.: Aviso do Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, para o Presidente do Conselho Ultramarino, Conde de Resende, D. Antonio José de Castro, referente à carta do Procurador Geral dos índios e liberdades do Estado do Maranhão, Coronel Antonio Correia Furtado de Mendonça, queixando-se dos procedimentos de Maria Isabel Madalena Belfort contra seus escravos. 5 de maio de 1800. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU-MA), caixa 110, documento 8635.
Dentre os trabalhos divulgadores dessas abordagens, pode-se citar o de Fernando Henrique CARDOSO. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962.
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 249; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Tradução de Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 62.
"Houve um tipo de resistência que poderíamos caracterizar como a mais típica da escravidão. Trata-se da fuga e formação de grupos de escravos fugidos". No entanto, ressalta o autor, a fuga nem sempre levava à formação de grupos. REIS, João José. Uma história de liberdade. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 9.
A exemplo, pode-se citar: LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CUNHA, Manuela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei. Lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In: ______. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987; SCHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 342-343.
LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 364-365. As cartas régias de 20/03/1688 e 23/03/1688 prescreviam que todos aqueles senhores que tratassem cruelmente seus escravos seriam obrigados a vendê-los. Todas as denúncias, inclusive aquelas feitas pelos cativos, deveriam ser investigadas. No entanto, como esses boatos causassem "perturbações entre eles e seus senhores com a notícia de que tiveram das ordens" as duas cartas régias foram revogadas por carta de 23/02/1689. Cf.: LARA, Silvia. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Coor.). Nuevas Aportaciones A La Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 198-199. (Cd-rom).
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Acts of grace: Portuguese monarchs and their subjects of African descent in eighteenth century Brazil. Journal of Latin American Studies. v. 32, n. 2, p. 307-332, 2000. p. 308-309.
Cf.: Requerimento do escravo do reverendo cônego José da Silva Freire, Carlos Crioulo, ao Rei, D. José I, solicitando provisão para lhe seja concedida a respectiva carta de liberdade. 30 de março de 1775. AHU-BA, caixa 176, documento 13267.
Salienta-se que, apesar da grande maioria das petições ser executada através de procuradores, é plausível afirmar que os escravos tomavam conhecimento das alegações passíveis de serem usadas em prol de sua liberdade e que esse conhecimento era apreendido, na maioria das vezes, através da oralidade. A respeito da relação de escravos e homens de cor livres com o conhecimento, com a escrita e a oralidade ver: PAIVA, Eduardo França. Leituras (im)possíveis: negros e mestiços leitores na América portuguesa. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL: POLÍTICA, NAÇÃO E EDIÇÃO, 2003, Belo Horizonte. Caderno de resumos do colóquio internacional: política, nação e edição. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em História, 2003. v. 1.
Cf. : Carta do chanceler da Relação da Bahia, Miguel Serrão Dinis, ao Rei, D. José, referente ao requerimento de Carlos Crioulo, escravo do cônego José da Silva Freire, no qual solicitava que se passasse carta de liberdade, pois já tinha pagado por ela ao seu senhor. 7 de setembro de 1775. AHU-BA, caixa 171, documento 12894.
Nas Ordenações Filipinas há uma lei referente aos "que fazem cárcere privado", contida no livro V, título XCV, a qual não permitia a qualquer sujeito fazer cárcere privado. No entanto, no parágrafo 4º da dita lei fica assentado que tal determinação não valia para cárceres praticados contra os filhos ou escravos, posto que tinham a função de emendá-los de seus erros. LARA, Silvia. Legislação sobre escravos africanos. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 72.
PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das consciências. A escravatura na época moderna. Lisboa: Edições Colibri, 1995. p. 208.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A luta pela alforria. In: ______ (Org.). Brasil: Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 306.
Cf.: Requerimento de Francisco Cipriano, homem pardo, escravo do reverendo Antonio Caetano de Almeida Vilas Boas, vigário colado da Igreja de Nossa Senhora do Pilar da Vila de São João Del Rei, pedindo para que o ouvidor daquela comarca conheça com imparcialidade as sevícias praticadas com ele e interponha a sua informação, a fim de recorrer na causa de sua liberdade. 9 de abril de 1802. AHU-MG, caixa 162, documento 37.
É interessante notar que a referência ao cárcere privado foi utilizada no caso já tratado do escravo Carlos, mas na defesa de seu senhor. Com base na lei sobre cárcere privado contida nas Ordenações, alegava ser direito do senhor corrigir os cativos com cárcere, posto que este tinha por objetivo de emendá-los por maus procedimentos.
Cf.: ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, V. 87. São Paulo: [s.n.], [190-]. p. 117 e 125-126.
Cf.: Ofício do Governador e Capitão-general do Maranhão e Piauí, D. Diogo de Sousa, para o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, a informar as averiguações que mandou efetuar sobre as pretensões do escravo Luís da Costa Lama. 25 de fevereiro de 1799, São Luis do Maranhão. AHU-MA, caixa 102, documento 8234.
Esse alvará determinou que todos os escravos residentes em Portugal que se encontravam na quarta geração de cativeiro e os que nascessem a partir da publicação da lei, e estivessem na terceira geração, seriam libertados. Aos agraciados pela lei, não mais caberia a nota infamante de liberto, o que lhes habilitava para o exercício de todos os ofícios e honras da monarquia. Cf.: Alvará Com Força de Lei de 16 de janeiro de 1773 em LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 359.
Cf.: Consulta do Conselho Ultramarino ao Príncipe Regente D. João, sobre o requerimento de Manuel Antonio Leitão Bandeira, que se queixa do procedimento do Governador relativamente à alforria de um escravo seu. Lisboa, 6 de agosto de 1804. AHU-MA, caixa 136, documento 9968.
Protestos por parte de senhores que viam seus direitos de proprietários questionados em causas de liberdade movidas por seus escravos e acolhidas pelas autoridades com possibilidade de parecer favorável, foram comuns. Lauriana da Rosa, da capitania do Rio de Janeiro, aproximadamente em 1800, recorria ao Rei para que este lhe concedesse o direito de apelar à Casa da Suplicação da decisão de liberdade iminente de sua escrava Matilde Bernardina. A impossibilidade de apelação era devida ao alvará de 16 de janeiro de 1759, o qual determinava que as causas de liberdade fossem decididas na instância local onde foram propostas. Como justificativa de seu pedido, Lauriana chamava atenção para os perigos que a concessão de liberdade a escravos na América causava ao Estado, pois vendo o exemplo, muitos outros escravos "[...] entrarão logo a comportar-se pessimamente para que conferindo-se lhe o justo castigo, procurarem o ser livres, ficando por este caminho destruída a boa harmonia e pública tranqüilidade." Cf.: Requerimento de Lauriana Rosa, por seu procurador Constantino José de Abreu, ao Príncipe Regente D. João, solicitando provisão para agravar ordinariamente para a Relação do Rio de Janeiro, o processo que lhe moveu a escrava Matilde Bernardina, acusando a suplicante de maus tratos, com o objetivo de ter a liberdade. Anterior a 25 de agosto de 1800. AHU-RJ, caixa 184, documento 13385; Alvará de 16 de janeiro de 1759. LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 337.