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Artigo publicado na edição nº 42 junho 2010.
Os conflitos do ilícito comércio e a marinha brasileira
Gustavo Pinto de SOUZA

Nós então nos alinhamos ao lado dele e olhos ávidos examinavam cada pedaço do bergantim. Figuras negras e nuas passavam pelo convés removendo qualquer sombra de dúvida que pudéssemos ter quanto ao gênero da embarcação e mostrava que ela estava com sua carga humana a bordo. O escaler tendo sido içado, um oficial foi enviado para tomar posse enquanto a bandeira britânica substituía a brasileira.[*1]

Ao examinar os conflitos do ilícito comércio e sua relação com a Marinha brasileira, nada melhor do que narrar o cotidiano da apreensão de um “tumbeiro”[*2]. O frei Pascoe Grenfel Hill descreveu a captura do navio negreiro Cleópatra nas águas do Atlântico. Sua estadia a bordo do navio por cinquenta dias é um exame da situação desgastante que a vida nos mares suscitava aos marinheiros e às almas de cor. Em relação ao cotidiano de um tumbeiro, Gilson Rambelli argumenta que “[...] passar privações como sede, fome e desconforto não eram características apenas dos transportados como mercadorias, muitos tripulantes, e também passageiros, enfrentavam esses desafios.[*3] A carga humana destacada pelo frei mostra o problema que as leis e os tratados internacionais criaram para o comércio de escravos no Atlântico. A presença de diferentes nacionalidades em torno do ilícito comércio corrobora os múltiplos interesses econômicos e políticos que o tráfico de escravos concedia às elites mercantis. Em relação ao Brasil e Inglaterra, alguns interesses eram amplamente direcionados e defendidos. Segundo Leslie Bethel, as práticas britânicas em relação ao tráfico de escravos tinham como objetivo a manutenção dos interesses comerciais na América, especificamente no Brasil. Já em relação ao Brasil, o tráfico negreiro sustentava todo um complexo sistema econômico. Para Manolo Florentino, esse aparato econômico concatenava-se em três pontos: 1) os sistemas e procedimentos para arrumação dos navios mercantes que iam para África; 2) o desembarque e os procedimentos para o retorno com as cargas humanas para o Brasil; e, por último, 3) a chegada dos “tumbeiros” nos portos brasileiros, o que aglutinava uma série de serviços e empregados para recepção das almas de cor.

No entanto, o que levou a embarcação Cleópatra a ter sua bandeira substituída? Por que as figuras negras e nuas identificavam certo tipo de embarcação? O frei Pascoe Grenfel Hill apresenta a ineficácia da execução dos conjuntos de tratados internacionais, que desde 1815 pretendiam combater o comércio de escravos. Indo além, Hill denuncia as matizes da lei de 7 de novembro de 1831. Conhecida na historiografia do assunto como “lei para inglês ver”, o caput da lei era claro e objetivo: “Declara livres todos os escravos vindos de fora do império, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos.[*4] Só que a repressão ao tráfico de escravos não acontecia de forma tão rápida e eficiente. Vários jogos de interesses e disputas políticas estavam no epicentro das tramas em prol da escravidão. O conturbado contexto do período regencial não tinha a escravidão como carro chefe de suas preocupações. As tramas políticas regenciais direcionavam-se para a construção da nacionalidade e aos ajustes da Carta de 1824. Assim, a lei de 7 de novembro de 1831 criou novos agentes históricos, como os africanos livres, e obscureceu a aplicação das penas, pois era comedida a punição dos embarcadores.

Desse modo, procuro expor neste trabalho uma análise dos conflitos criados no decorrer da lei de 7 de novembro de 1831, mapear e identificar as embarcações ilícitas apreendidas, sem obliterar, é claro, o papel da Marinha. Busco pensar também a cultura política das bandeiras e a representação política de suas nações no tráfico negreiro e, por fim, levantar a questão diplomática que o policiamento marítimo construía no diálogo de acusações entre Brasil e Inglaterra. A documentação eleita para o trabalho são os relatórios do Ministério da Justiça elaborados entre os anos de 1831 a 1850. Vale ressaltar que cada relatório elaborado pelos Ministros da Justiça corresponde à produção política do período. Pois é mister que a elite política que compunha os quadros do “mundo do governo” tinha influências de suas facções políticas. Dessa maneira, a documentação empreendida no trabalho lida com as referências e valores políticos esquematizados e defendidos pelos grupos políticos no período regencial. Por fim, o balanço anual desses relatórios contribui para situar a visão do Governo brasileiro e seus interesses marítimos na política escravista. A leitura pública desses relatórios na Assembleia dividia e acirrava os conflitos políticos, pois uma parcela da elite política beneficiava-se com a não implementação da lei de 7 de novembro de 1831, assim, como a outra parcela, que se privilegiava com o serviço dos africanos livres, instaurados a partir da aprovação da lei.

Os impasses da lei de 7 de novembro de 1831

O Ministro Diogo Feijó, na efervescência política dos acordos internacionais a favor da abolição do comércio de escravos, assina no Brasil a extinção do comércio negreiro. Os diálogos internacionais fortalecidos a partir do Congresso de Viena e dos acordos bilaterais entre as nações brasileira e britânica marcam uma nova dinâmica para o fim da escravidão. O tráfico negreiro, cada vez mais limitado em áreas internacionais, é extinto no Brasil em plena ambiência de construção da nacionalidade. Como escreve Ilmar Rohllof de Mattos “[...] fundadores e consolidadores do Império do Brasil tinham os olhos na Europa e os pés na América – eis o segredo da trajetória de individuação de uma classe, e que se revestia da forma de construção de um ‘Corpo Político’ soberano.[*5] A ideia dos olhos na Europa, como argumenta Mattos, lembra o desejo de construir um Estado soberano semelhante aos Estados nacionais europeus, que simbolizavam os ideais do progresso. Enquanto os pés na América eram mais uma condição geográfica do que influência, pois, ao contrário do Império do Brasil, as demais nações latino-americanas constituíam-se em repúblicas federativas, diferentemente do caso brasileiro, o que, segundo Manoel Luís Salgado Guimarães, representava a diferença para a nação brasileira .[*6]

Ajustado o ideal do que seria uma nação e seu contraponto, a “boa sociedade” passou a configurar os modelos de construção da identidade brasileira. Cidadania e liberdade eram as condições fundamentais para se entender a construção das formas civis no Brasil. O processo de afirmação da nacionalidade agrupava cada segmento social em seu devido lugar. O éthos senhorial revestido pelo viés aristocrático ordenava os distintos grupos sociais, tais como define Mattos entre “cidadão ativo” – boa sociedade –, os “cidadãos não ativos” – a arraia miúda – e os “não cidadãos” execluídos do âmbito da liberdade, constituindo o “mundo do trabalho” e da “desordem”. Eram os escravos e os índios não catequizados. O processo de construção da nacionalidade admitia a questão da cidadania em consonância com os limites da liberdade..

Mas é no “mundo da desordem, do trabalho e da rua” que repousa a seguinte indagação: o que de fato a lei de 1831 modificava para os sujeitos históricos desse segmento? Em termos das relações do cotidiano, pouco a referida lei alterou a sociedade brasileira. Sua invenção foi somente a de criar um novo quadro para a escravidão no Brasil, ou seja, a condição dos africanos livres. Os africanos livres instituídos a partir de tal lei eram um grupo social juridicamente livre. No entanto, a liberdade e a cidadania para as almas de cor eram cerceadas pelos mecanismos e dispositivos jurídicos, que procuravam subordinar os africanos livres ao complexo sistema do Governo. Como discorre Beatriz Gallotti Mamigonian “[...] ser juridicamente livre não garante aos africanos livres mobilidade espacial ou direito à autodeterminação.[*7] O problema do emprego da mão de obra dos africanos livres no Brasil gerou eloquentes debates dos ministros na Assembleia do Império. Destaco e comparo os balanços ministeriais de Diogo Feijó, autor da lei de 7 de novembro de 1831, e Antonio Paulino Limpo de Abreo, que protagoniza com o representante de Sua Majestade Britânica acusações sobre o estado dos africanos livres no Brasil em 1845. Nos dizeres de Feijó:

A Administração da Justiça civil He desgraçada: hum grito unisono se houve de todos os pontos do Imperio: os Magistrados em grande parte ignorantes, frouxos, e omissos deixão que as demandas se eternisem; [...] Outro tanto, e ainda acontece com esses desgraçados Africanos conduzidos á nossos portos por contrabandos: não tendo parentes, ou amigos interessados na sua sorte, vão ser perpetuamente reduzidos á escravidão: ignora-se até o poder em que se achão, e não ha meios de remediar similhante falta.[*8]

De forma enérgica Feijó informa a situação dos africanos livres no Brasil. Ao denunciar a desobediência da legislação brasileira contra o tráfico de escravos, ele assume a falência das instituições imperiais na fiscalização e no cumprimento das resoluções. Seu julgamento ferrenho dos magistrados confirma-se pelos interesses que os grandes proprietários tinham sobre tal profissão. Ele prossegue afirmando que a sorte dos africanos é o símbolo da passividade brasileira perante o “vergonhoso” e “infame” comércio no Atlântico. Feijó enrijece suas críticas aos Magistrados relatando que, na estrutura do Império, muitos continuam insensíveis e ignorantes dos novos tempos, da luta contra a escravidão.

No mesmo tom de Feijó, Antonio Paulino Limpo de Abreo, em 1835, relata as insuficiências da aplicação da lei de 1831. Para o Ministro:

Com o fim de acabar o deshumano, e bárbaro trafico de Africanos se confeccionou a Lei de 7 de Novembro de 1831, que pareceo sufficiente para isto se conseguir. Com tudo ella sérvio somente para excitar a cobiça dos especuladores, que nella enxergarão meios de promover melhor os seus lucros e interesses, os quaes podião bem compensar todos os riscos da empresa. A necessidade de braços para a agricultura associou o lavrador ao especulador, e não tendo os Juizes empregado á principio todo o vigor para evitar o contrabando, elle se generalisou dentro em pouco tempo, e hoje será impossível remediar os males, e a continuação desta introducção por meio da Lei, á que me refiro.[*9]

Como diz o Ministro Abreo, a banalização e a sistematização do tráfico negreiro preexistiam no Brasil de forma intensa. O comércio ilícito no Atlântico fomentava os pilares da mão de obra no país. O problema central era a questão da mão de obra empregada nas grandes fazendas. É preciso destacar que o Ministro Antonio Paulino Limpo de Abreo propôs ao Governo o reenvio dos africanos livres para África, criando uma colônia semelhante à Libéria. Seu pedido foi negado, com base na avaliação de que os cofres públicos não suportariam tal ônus econômico. A insuficiência da lei esbarrava no potente interesse das elites mercantis, emperrando a aplicabilidade da lei. O interessante é destacar a afirmação de um Ministro de Estado assumindo a debilidade do Governo em reprimir as peripécias dos tumbeiros no Brasil. Assim, o lavrador e o especulador corrompem os magistrados por meio de sua influência, afrouxando a eficácia da lei.

Após o reconhecimento da falência do Estado nas questões repressoras do tráfico, é oportuno levantar a seguinte questão: quem sairia perdendo com a extinção da escravidão? Segundo Gilson Rambelli, o comércio negreiro entre Brasil e África fomentava um quadro informal na economia. Para ele, essa prática comercial envolvia uma considerável parcela de prestadores de serviços, que garantia o soldo do segmento de pobres livres da população.

Se analisarmos as disciplinas da escola do Gabinete Topográfico, podemos verificar muita similaridade ao conteúdo disciplinar da escola francesa que se tornava um modelo. À frente desta escola estava o engenheiro Daniel Pedro Müller, formado na Real Escola dos Nobres de Lisboa.

O tráfico de escravos trazia consigo uma movimentação econômica nas regiões portuárias do Brasil. Como analisou Florentino, além dos produtos para subsistência e escambo, as organizações das embarcações negreiras ainda reuniam a necessidade de trâmites burocráticos, tais como: taxas alfandegárias, seguros e gastos extras para eventuais cobranças em portos. Então, a restrição do tráfico de escravos atingia diretamente a economia imperial. O fim do tráfico negreiro, portanto, prejudicaria aos homens e mulheres residentes nas regiões portuárias. Os lavradores estavam convencidos de que o trabalho no campo era por excelência exercida pelos africanos. Em suma, a aprovação da lei não inibiu a importação de escravos do comércio negreiro.

A Marinha no jogo do escravismo

Reconhecida a debilidade e a morosidade em lidar com as resoluções dos acordos contra a escravidão, os Ministros da Justiça reconhecem a dificuldade do Estado em reprimir as embarcações negreiras pelo território nacional. Os conflitos entre especuladores e instituições fiscalizadoras foi o meio do Governo afirmar que apresentava medidas contra o tráfico de escravos. Os grupos políticos imbuídos pelo projeto de nacionalidade criaram diversos projetos para modernizar o país, tais como a construção da Casa de Correção, o Colégio Pedro II, o Hospício, entre outras instituições.

Dessa maneira, não poderia ser diferente a importância da Marinha brasileira nos conflitos do comércio ilegal. Manoel Alves Branco, na apresentação de seu relatório à Assembleia, descreveu a necessidade de a Marinha atuar contra os especuladores da escravidão. Em seu balancete diz o Ministro:

Se huma ideia ha neste negocio a todos os amigos do Brasil, e He que a Marinha Brasileira não so tem rivalisado, mas até excedido á Estrangeira na actividade e empenho, que tem mostrado de combater o crime desse trafico deshumano. Das apprehensões de 1834 duas são Brasileiras, e duas Inglezas; das deste anno de 1835 duas são Brasileiras, e huma so Ingleza: he neste facto, Senhores, que eu espero, mais ver hum dia extirpada pela raiz a tendência viciosa, e horrivel de ávidos especuladores: e daqui se mostra a conveniencia da continuação do cruzeiro em toda a Costa do Brasil.[*10]

Alves Branco celebra o sucesso da Marinha na apreensão de uma embarcação a mais do que a Marinha britânica. O esforço da Marinha brasileira em fiscalizar as costas do litoral do país mostra a eficiência dos brasileiros em proteger o território nacional. A ideia de rivalidade marítima potencializava as discussões entre as nações brasileira e britânica. As disputas marítimas encenadas pelas Marinhas brasileira e britânica acirravam os debates nas Comissões Mistas estabelecidas entre os dois países desde a aprovação do Ato Adicional de 1817. Segundo Jaime Rodrigues:

[...] logo depois da promulgação da lei de novembro de 1831, o poder legislativo passou a discutir diversos pontos dela, tais como a atuação das comissões mistas anglo-brasileiras e a própria ineficiência da lei, e o tráfico continuava motivado por uma “maldita sede de torpes ganhos” e realizado por pessoas “malvadas”.[*11]

O papel da Comissão Mista era arbitrar sobre a punição e o destino que as embarcações apreendidas teriam em terra. Assim, as comissões eram criadas em cada localidade onde houvesse o apresamento de mercadorias ilícitas. Para além do Brasil, existiam comissões mistas em Havana, Cabo da Boa Esperança, Luanda, Ilha de Santa Helena, entre outros locais. Em sua composição, as comissões eram distribuídas por um comissionário juiz, um comissionário árbitro e um secretário oficial, nomeados pelo Chefe de Estado onde a comissão estivesse estabelecida. Para além da ordem burocrática das comissões, é interessante destacar que o julgamento das embarcações capturadas pelos navios de repressão ao tráfico marca a polaridade dos interesses das nações em relação à escravidão. Ana Flávia Cicchelli Pires analisa que a função das comissões mistas “[...] era destinada a julgar, sem apelação, sobre a legalidade da detenção dos navios empregados no tráfico de escravos [...][*12] , ou seja, cabia às comissões estabelecer as indenizações e as punições aos tumbeiros.

Outro problema político que se apresentava em relação à ação da Marinha brasileira contra o ilícito comércio era a questão das bandeiras dos navios apreendidos. As bandeiras das embarcações serviam como um mecanismo de identidade dos navios. Dentro do caloroso debate da lei de novembro de 1831, o Governo brasileiro problematizava o internacionalismo do tráfico negreiro. O Ministro Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho expressava a cultura política brasileira na questão do combate do tráfico. Ele enfatiza:

[...] como o julgamento summario pela Comissão mixta Brasileira, e Ingleza rezidente nesta Côrte em virtude da Convenção de 23 de Novembro de 1826, só pode ter lugar a respeito dos Subditos das duas Potencias Contractantes, tem acontecido, que tão deshumano trafico he quase sempre protegido pela Bandeira Portugueza. Navios cobertos com a referida Bandeira partem continuadamente de nossos Portos para as Costas d’Africa, a pretexto de irem ali carregar marfim, cera, azeite, e outros gêneros de comercio; porem so com o fim de importarem os infelizes negros, que lhes affianção hum melhor lucro.[*13]

Ao culpar os portugueses pelas ações ilícitas do tráfico de escravos, Oliveira Coutinho traz à tona a necessidade de associar o comércio ilícito aos portugueses “pés de chumbo”, que atrasavam os ideais brasileiros. Para Lúcia Bastos Pereira das Neves [*14], a carga pejorativa de “corcundas” ou “pés de chumbo” estava associada ao elemento português que remetia ao atraso do período colonial. Assim, a pungente nacionalidade brasileira precisava eleger uma forma de negação das estruturas coloniais. A bandeira portuguesa vinculada aos interesses especuladores foi um mote encontrado pelo segmento político para responsabilizar a perpetuação do tráfico negreiro. Os políticos brasileiros destacando as mercadorias do comércio português – marfim, azeite e óleo – denunciavam que tais produtos eram a forma de troca por escravos na costa da África, pois os negros africanos representavam maior lucro do que os produtos portugueses. Por fim, a imagem negativa associada aos portugueses na época da Independência é retomada no período regencial como uma forma de legitimar as ações brasileiras e condenar os portugueses pela manutenção do “vil e desumano” tráfico negreiro.

Em 1842, o Gabinete Topográphico da Cidade de São Paulo achava-se então sob a direção do Engenheiro da Província José Jacques da Costa Ourique. Em 1843, o Gabinete instalara-se finalmente

Nos rastros dos tumbeiros: as embarcações apreendidas do ilícito comércio

No debate sobre a extinção do tráfico negreiro, promovida desde 1815, muitas táticas e estratégias foram construídas para a manutenção da lucratividade do ofício dos comerciantes de grosso trato. Como já foi mencionado anteriormente, o escravismo brasileiro movimentava um complexo sistema econômico, tanto aqui como na África. Como argumenta Ana Flávia Cicchelli Pires, “[...] temendo o cumprimento destas convenções os interessados no prolongamento do comércio negreiro fizeram um grande esforço para importar o máximo possível de africanos, o que resultou num aumento brutal do volume dos escravos traficados para o Brasil.[*15] O fato interessante é que após as investidas internacionais e nacional contra o comércio de escravos, o montante das mercadorias das almas de cor aumentou substancialmente nas costas litorâneas do Império. É no bojo desse aquecimento comercial que o policiamento marítimo do Brasil e da Grã-Bretanha se acirrava na busca pelos navios suspeitos. Em relação à captura e aprisionamento dos tumbeiros, Luciano Figueiredo reúne em um texto analítico a listagem de embarcações ilícitas e suas mercadorias do período de 1839 a 1841. O trabalho de Figueiredo traz o detalhamento de informações como: nomes de pessoas, das embarcações e a procedência dos grupos africanos (quita, garanga, soco, ganguela, oariba, barundo, bié, cumba, mungo, dulo, curibindo, samba, mongo, luanda, oanda, damba, dondé, dunbo, tiaca, garabgue, ogijunba, benguella, pumbo, peió entre outras)[*16].

Os relatórios aqui pesquisados dão o rastro de alguns tumbeiros capturados, apreendidos e julgados pela Comissão Mista Brasil e Inglaterra. Em seus balanços anuais os Ministros destacavam a relevância dos julgamentos das embarcações ilícitas, mostrando que o Governo não descansava em repreender tão desumana atividade. Foram identificadas 39 embarcações no período de 1831 até 1850, quando se decretou a Lei de 4 de setembro de 1850, (re)extinguindo o tráfico de escravos. Entre alguns bergantins, brigues, escunas, iates e patachos capturados, é possível destacar o lugar da apreensão, assim como a bandeira nacional das embarcações. Infelizmente, algumas informações não foram identificadas nos relatórios. As ações do ano de 1836, que identificaram, entre julho a dezembro, 26 embarcações suspeitas, as quais foram liberadas pelo Juiz de Paz. Assim como em 1837, quando identificaram conco embarcações com bandeiras portuguesas, que não chegaram a ser julgadas pela Comissão. Para os anos de 1841 e 1848 não foi possível identificar as embarcações ilícitas devido à ausência dos relatórios. Já nos documentos dos períodos de 1842, 1843, 1845, 1846, 1847 e 1849[*17] não constam os nomes das embarcações apreendidas. Os Ministros da Justiça do período apenas mencionam que as atividades ilícitas persistiam pelas costas litorâneas do Império e que o Governo continuava incessantemente reprimindo tal atividade.

Entre as embarcações relatadas pelos Ministros da Justiça, o Brigue Orion, capturado pela Curveta de Guerra Britânica, possui uma história um pouco curiosa. O Ministro Antonio Paulino Limpo de Abreo, ao apresentar o relatório, diz que o Brigue Orion, antes de ser abordado pela Curveta Britânica, estava com a bandeira portuguesa, tendo sido constatado após a apreensão que a embarcação era brasileira. A tentativa de burlar a fiscalização marítima com bandeiras trocadas era uma possibilidade para ludibriar as resoluções dos tratados internacionais. Em sua carga constavam 243 africanos. Após seu julgamento, pelos comissionários brasileiros e ingleses, os africanos foram emancipados e distribuídos pelas obras públicas do Império. E os quatro marinheiros oriundos da embarcação foram reenviados para a costa d’África por ordem da polícia.

Por fim, os tumbeiros após 1831 ainda continuavam a cruzar as águas do Atlântico. O contrabando de africanos era um tópico com cuidados especiais nos relatórios ministeriais. Os Ministros da Justiça atentavam que as costas litorâneas do Império recebiam navios com escravos sequer reconhecidos pelas autoridades competentes. A fiscalização perpassava pela frouxidão das relações políticas, econômicas e sociais. Eusébio de Queiroz, Ministro da Justiça em 1849, compreendia que os esforços da Marinha, das autoridades judiciais e da Polícia foram fundamentais na atuação contra o tráfico, apesar da corrupção muitas vezes denunciada pelos Ministros anteriores. Dessa forma relata Queiroz: “Felizmente a nossa Marinha, e as Autoridades de Justiça e Policia tem, geralmente fallado, cumprindo os seus deveres de um modo tanto mais honroso, quanto maiores tem sido as difficuldades de toda espécie com que ha sido necessário lutar.[*18] Entre o período de 1831 e 1850, o tráfico negreiro corrompeu as legislações antiescravista. Assim, somente com pós-1850 as águas do Atlântico fecham-se para as embarcações que transportavam escravos para o Brasil.

Referências bibliográficas

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Atualmente é mestrando em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com bolsa CAPES. Possui Graduação – Bacharelado e Licenciatura – em História pela mesma universidade. Foi bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/UERJ) durante dois anos, trabalhando com assuntos relacionados a africanos livres, prisão e casa de correção. Participa do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES) vinculado ao Programa de Pós-graduação em História Política (PPGH-UERJ). Contato: gsousarj@gmail.com
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