:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 43 de agosto de 2010.
A documentação do patrimônio imaterial: desafios e perspectivas

Lucieni de Menezes Simão

Na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, ocorrida na cidade de Porto Seguro (BA) no período de 1º a 4 de junho de 2008, observou-se um intenso debate entre os campos da Antropologia, Museologia e no campo patrimonial. Em um dos Simpósios Especiais desse encontro, tratou-se da relação entre Antropologia e museus. Dentre os debatedores dessa mesa, destaco a figura de Ramiro Matos, representante do Museu Nacional do Indígena Americano (The National Museum of the American Indian), instituição pertencente ao Instituto Smithsonian (Smithsonian Institution) , em Washington DC. Em sua explanação, Matos referiu-se à Política de Repatriação do Museu Nacional do Indígena Americano e relatou uma experiência muito particular.

Sabe-se que muitos dos artefatos coletados por antropólogos em seus trabalhos de campo nas antigas colônias da América Latina, África, Ásia e Oceania são depositados em instituições museológicas das grandes metrópoles europeias e norte-americanas. Artigos que foram apropriados de maneira duvidosa, seja por meio de trocas assimétricas ou através de furtos ou pilhagem desses bens . No entanto, nem sempre tais objetos foram adquiridos de modo espúrio; muitos deles foram incorporados aos acervos dos museus sem a preocupação, daqueles que os coletavam, de descrever pormenorizadamente os objetos e de localizar a sua procedência. Essa carência na obtenção das informações, efeito de uma produção científica ainda incipiente, provocou uma imensa descontinuidade na documentação desses objetos.

Durante o Simpósio, Ramiro Matos relatou um exemplo deste último caso. Tratava-se de uma coleção de artefatos indígenas da América do Sul, recolhida de maneira bastante precária e com muitas falhas em sua identificação. Nesse sentido, quando alguns desses grupos indígenas passaram a reivindicar a “repatriação” dos seus objetos rituais, o Smithsonian decidiu conduzir uma equipe de pesquisadores da instituição para essas localidades e documentar todo este processo de reapropriação dos artefatos. Matos referiu-se, particularmente, às experiências de documentação desses processos na América Latina pelos povos indígenas. Com efeito, tais objetos, que se encontravam em precárias condições de registro, passaram por um processo de ressignificação em suas práticas simbólicas: isolados e mal identificados dentro de um acervo museológico, seus usos foram potencializados nessa nova expedição. Para tal fim, os pesquisadores registraram a chegada desses objetos às suas comunidades de origem; em algumas ocasiões, foram organizados rituais com o objetivo de contextualizar esses artefatos.

Matos concluiu a sua apresentação argumentando que as instituições museológicas pertencentes ao Smithsonian estavam sensíveis aos debates sobre a “repatriação” de objetos de seus acervos às comunidades de origem, dando-nos a impressão de que essa atitude “politicamente correta” pressupunha a “perda” dessas coleções ao reafirmar a necessidade de novas aquisições para complementar coleções já existentes. No entanto, analisando de modo reflexivo todo esse processo de repatriar objetos de uso ritual, observa-se uma estratégia surpreendente de um novo tipo de aquisição de bens patrimoniais, que estão enquadrados na rubrica do “patrimônio imaterial”. Nesse sentido, artefatos que estavam isolados desse sistema de documentação institucional, sem maiores informações que os contextualizassem, passaram por um processo de reapropriação e de documentação, constituindo um novo “repertório de documentos”.

Segundo o antropólogo Alfredo W. B. de Almeida,

[...] o conceito teórico de archivo contribui para desvelar esta arbitrariedade dos agrupamentos ao apontar que seu significado não se restringe a acervo, não se confunde com massa documental, com quantidade ou volume de títulos ou com uma coleção infinita de objetos diversos.[*1]

Ao desnaturalizar determinados sistemas classificatórios, Almeida refere-se ao “jogo das regras que determinam um campo intelectual determinado ou numa dada contingência histórica, o surgimento e o desaparecimento de argumentos”. Ademais, a articulação desses argumentos compõe “um esquema interpretativo tornado hegemônico pelos poderosos mecanismos de instâncias de consagração de museus e sociedades científicas desde finais do século XVIII.” É sobre esses aspectos da documentação dos objetos “patrimonializáveis” e da sua capacidade de gerar novos sistemas de informação que irei problematizar na próxima sessão deste artigo.

O Inventário e o Registro do Patrimônio Imaterial: as várias fases da documentação

Primeiramente, e buscando o sentido etimológico da palavra, inventário vem significar relação de bens; por extensão, descrição e enumeração minuciosa; levantamento individuado e completo de bens e valores. Consequentemente, uma característica importante de qualquer inventário é a sua exaustividade; e, para ser exaustivo, deve ser sistemático. Inventariar significa também encontrar, tornar conhecido, identificar; portanto, descrever de forma acurada cada bem considerado, de modo a permitir a sua adequada classificação. Os inventários passaram então a ser considerados importantes instrumentos de proteção dos bens culturais, apesar de ainda não se implantar uma política específica para esse fim.

Marcel Mauss aborda em seu Manuel d’Ethnographie os problemas referentes ao método etnográfico, como observar, coletar, construir séries lógicas reunindo o máximo de informações em torno de um mesmo objeto, localizando ao mesmo tempo sua produção e seu uso social. Enfatiza a necessidade de precisão (mencionar locais, datas e condições da observação) e exaustividade na reconstituição analítica de fatos sociais totais.

Com a nova legislação sobre o patrimônio imaterial, lançou-se um novo olhar sobre as ideias de inventário e de registro dos bens culturais. Tais instrumentos da política pressupõem um sistema de documentação através de gravações, fotografias, filmagens, utilização de mapas e diagramas, além da implementação de sistemas informatizados, digitalização de documentos em suporte papel, adoção de vocabulários controlados e política de segurança de dados e de acessibilidade da documentação a pesquisadores e ao público em geral.

Nos atuais processos de patrimonialização da cultura, constata-se a necessidade de mobilização dos atores sociais envolvidos na produção desses bens. O patrimônio imaterial é fonte de identidade, criatividade e diversidade e se constitui por meio de múltiplas manifestações culturais (conhecimentos, técnicas, representações e práticas singulares). Somente a boa condução dos inventários de referências culturais e a identificação do objeto do registro possibilitarão ações de salvaguarda consistentes e compatíveis com os objetivos dos grupos e comunidades. O Inventário Nacional de Referência Cultural (INRC) do IPHAN é peça fundamental para que se possa instruir o Registro do bem de natureza imaterial, caso se siga a metodologia proposta pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

O manual do INRC foi elaborado para mapear a diversidade das expressões culturais, em seus marcos de identidade e alteridade. Destarte, não deve ser pensado como o recorte de um e outro elemento que constitui uma paisagem regional ou local, ou mesmo de uma cidade, mas sim para os grupos sociais, protagonistas e criadores de referências culturais, para quem essas mesmas referências fazem sentido e dão significado aos seus modos de vida.

O dossiê de estudo das paneleiras de Goiabeiras: inventário e registro

Para ilustrar a problemática discutida acima, tomo como estudo de caso o primeiro registro do patrimônio cultural imaterial. A condução dos estudos referentes ao pedido de instrução de Registro do Ofício de Paneleira de Goiabeiras na cidade de Vitória, Espírito Santo, reuniu referências bibliográficas e documentais, levantamentos fotográficos e audiovisuais, além de mapas do território (cidade e bairro). A existência de uma farta documentação produzida sobre a tecnologia de confecção do artefato cerâmico utilitário, principalmente através de trabalhos etnográficos e materiais jornalísticos, fundamentaram todo o processo de identificação desse ofício. Além disso, consta no dossiê de estudo o levantamento preliminar de

[...] sessenta e seis fotografias ampliadas em papel fotográfico no formato 10x15cm e fotocópia de duas fotos panorâmicas, de autoria do arquiteto Márcio Viana (6ª SubR II), feita entre os meses de outubro de 2000 e junho de 2001.[*2]

Na década de 1980, a escritora e antropóloga Lélia Coelho Frota, em documentos oficiais do Instituto Nacional do Folclore (INF), já afirmava a necessidade em se identificar o produto artesanal no seu contexto social e natural de produção, levando-se em conta “a tecnologia, a tipologia e os aspectos simbólicos e funcionais, além das formas de comercialização.”[*3] Em termos de política pública para a preservação de bens culturais, esse primeiro registro de patrimônio cultural imaterial está totalmente imerso no campo das culturas populares, em especial nos programas de apoio às comunidades artesanais desenvolvidos pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), iniciados na década de 1980, ainda sob a denominação de Instituto Nacional de Folclore.

Ao pesquisar o objeto cerâmico, procurou-se dar conta de sua origem, tecnologia de confecção – produção manual com a queima das peças em fogueira a céu aberto –, e matérias-primas empregadas – barro de uma mesma jazida e demais insumos naturais encontrados no meio ambiente. Mas, além disso, deslocou-se a atenção do produto para o processo, preocupando-se em compreender seu significado simbólico dentro de um quadro mais amplo das relações sociais na comunidade de Goiabeiras Velha, identificando a função de cada um dos executantes da produção de panela de barro. Observou-se, ainda, que a aplicação do INRC excede o estudo do patrimônio imaterial, uma vez que se pretende, com esse instrumento, mapear os bens culturais significativos de um determinado território, quer sejam eles materiais ou imateriais.

Toda iniciativa de inventário pressupõe cortes, incorporações e um constante processo de tradução. A dimensão da autoria na formulação, na condução e na apresentação dos dados nos inventários de identificação deve ser considerada como fator determinante no processo de registro, de guarda e de disponibilização do material inventariado. No caso do “ofício de paneleira”, a ênfase recaiu no processo de produção, com a descrição das etapas de confecção do bem e a identificação dos principais envolvidos com o processo de produção e suas respectivas funções. As descrições dos lugares da atividade e de obtenção das matérias-primas são também pontos levantados pelo estudo.

Este artigo pretendeu traçar um panorama dos atuais instrumentos de preservação do patrimônio cultural brasileiro, explorando a natureza particular dos inventários dos bens denominados imateriais ou intangíveis. É necessário dizer, não obstante, que uma atitude mais autorreflexiva na condução dos inventários de identificação do patrimônio cultural imaterial torna-se fundamental, quer pela natureza simbólica dos bens culturais a eles identificados, quer pelo processo de negociação com as comunidades, grupos e pessoas portadores desses bens.

Bibliografia

ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8; Fundação Universidade do Amazonas, 2008.
FROTA, Lélia C. Produção de artesanato popular e identidade cultural. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 19, p. 138-148, 1984.
IPHAN. Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC: Manual de Aplicação. Brasília: MINC; IPHAN; DID, 2000.
______. Inventário Nacional de Referências Culturais. Manual de aplicação. Brasília: IPHAN; DID, 2000.
______. O Registro do Patrimônio Imaterial: dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. 2. ed. Brasília: IPHAN, 2003.
MOTTA; SILVA (Orgs.). Inventários de Identificação: um panorama da experiência brasileira. Rio de Janeiro: IPHAN, 1998.
MAUSS, Marcel. Manuel d' Ethnographie. Paris: Petite Bilbiothèque Payot, 1967.
PRICE, Sally. Arte Primitiva em Centros Civilizados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.
SIMÃO, Lucieni de M. A Semântica do Intangível: considerações sobre o registro do ofício de paneleira do Espírito Santo. 2008. Tese (Doutorado)– Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Topo
Doutora em antropologia pela UFF/RJ. O presente artigo é resultado na pesquisa: SIMÃO, Lucieni de M. A Semântica do Intangível: considerações sobre o registro do ofício de paneleira do Espírito Santo. 2008. Tese (Doutorado)– Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense.
ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8; Fundação Universidade do Amazonas, 2008. p. 9.
Cf. IPHAN/ 6a SSR/ Vitória, 20 de junho de 2001.
FROTA, Lélia C. Produção de artesanato popular e identidade cultural. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 19, p. 140, 1984.