Artigo publicado na edição nº 44 de outubro de 2010.
Prof. Dr. Antonio Emilio Morga [*1]
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Desde a sua fundação pelo brigadeiro Francisco Dias Velho, em 23 de março de 1673, Nossa Senhora do Desterro mereceu, dos viajantes estrangeiros que a visitaram no século XVIII e primeira metade do século XIX, referências aos modos femininos de sociabilidade, afetividade e urbanidade.
Todos foram unânimes em tecer elogios à grã-finagem do Desterro, mesmo quando dela havia apenas um pequeno círculo bastante reduzido e de pouca significação. E, tais elogios, tais referências lisonjeiras, não raro se fizeram na base de comparação com outros centros, outras comunidades que não lhes pareceram superiores, antes, bem ao contrário.[*2]
A visibilidade feminina testemunhada pelos viajantes nos leva a uma mulher que transitava com desenvoltura nos jogos de sedução. Contudo, devemos ficar atentos para a construção da mulher naquele período, pois uma das características mais marcantes dos séculos XVIII e XIX foi a veiculação de uma série de manuais de diversas procedências, orientando às práticas de sociabilidade, urbanidade e afetividade.
O recato no viver e no vestir fazia parte das clivagens das condutas femininas e deveria ser atentamente observado para evitar constrangimentos. Essas prescrições comportamentais, referentes às atitudes femininas e ao seu modo de trajar, como veremos mais adiante em Nossa Senhora do Desterro, causaram uma série de interpretações por parte dos viajantes estrangeiros.
Neste sentido, podemos perceber que o olhar dos viajantes não era linear. Alguns se diferenciavam na maneira de perceber a mulher no espaço público. Uma dessas distinções poderia ser de ordem moral. Condicionados por valores provenientes da cultura europeia, os viajantes, ao vivenciarem os usos e costumes da população da Ilha, não estavam isentos de um pré-julgamento. É bom lembrar que, mesmo sendo filhos da cultura europeia, eles tinham formação, experiências e interesses diversificados, que transparecem nos seus relatos e na maneira de ver os mesmos objetos.
No olhar dos viajantes, as mulheres da Ilha de Santa Catarina eram belas, meigas e cordiais com os estrangeiros, adoravam conversar sobre o amor e recebiam de bom grado os presentes oferecidos. Tinham predileção por música, moda, reuniões sociais, passeios românticos, teatro, galanteios, saraus literários, dança e pelas intrigas amorosas que corriam soltas.
Ao traçar o itinerário da proverbial sociabilidade feminina de Nossa Senhora do Desterro, Louis Isidore Duperrey assevera nas páginas do seu relato que as mulheres “freqüentemente fazem amizade com os marinheiros que aportam em suas portas.[*3]” Georg Heinrich von Langsdorff, além de registrar a sociabilidade e a elegância das mulheres, por meio de seu olhar perspicaz, observa: “Tão sem importância que possa parecer tal observação, não faltam pequenas intrigas de amor que se espalham aqui.” Diante dos fuxicos das paixões, o naturalista não deixou passar despercebido: “Presentes europeus, mesmo os mais insignificantes, como fitas, brincos, etc., são gratamente recebidos.[*4] ” Langsdorff nem sequer tenta compreender que, no século XIX, a paixão das mulheres por objetos que as remetessem ao jogo lúdico da lembrança de um momento vivido correspondia a “mil nadas”. E essas lembranças muitas vezes pertencem à intimidade amorosa, lugar da imaginação e do contato. Portanto, “presentes recebidos por ocasião de um aniversário ou de uma festa, bibelôs trazidos de uma viagem ou de uma excursão” [*5]têm, para a intimidade feminina, uma correspondência de significações.
Em leitura subjacente, percebe-se que, na tentativa de aguçar a leitura do seu relato de viagem, Langsdorff sutilmente deixa transparecer certa fragilidade moral das mulheres ao afirmar que qualquer bibelô, mesmo os mais insignificantes, “são gratamente recebidos”. Ao fazer insinuações quanto ao gosto da população feminina pelos atavios, induz seus leitores a pensarem que as mulheres se deixavam levar pela delicadeza dos viajantes ao oferecerem presentes, que, segundo ele eram “insignificantes”.
No olhar clínico de um abade beneditino, as mulheres eram “muito brancas de pele, apesar do calor do clima. Elas possuem, em geral, olhos grandes e bem puxados, mas de rosto pouco embelezado.” Seu arguto senso de observação perscrutou em um baile, no qual participou até altas horas, que homens e mulheres aparentavam muita animação “em perfeita liberdade de modos entre damas e cavalheiros.[*6] ”
Em suas andanças pela província de Santa Catarina, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire avaliza o que o engenheiro militar Miguel de Brito fez sobre a cordialidade e sociabilidade da população feminina e confirma o que um abade beneditino registrou, em 1763, sobre a beleza feminina.
As mulheres são muito claras; de um modo geral têm olhos bonitos, os cabelos negros e muitas vezes uma pele rosada. Elas não se escondem à aproximação dos homens e retribuem os cumprimentos que lhes são dirigidos.[*7]
Após essas observações sobre os modos desembaraçados e sociáveis das mulheres, constatou que a população feminina era habitualmente maior que a população masculina. Justifica tal fato em duas direções: a primeira, devido ao pendor natural dos homens pelo mar; a segunda, ao temor do serviço militar. Esses dois fatores conjugados, conforme o viajante, contribuíram para que grande número deles se decidisse pela vida no mar. Ocorrendo com isto que, na Ilha de Santa Catarina existissem virtualmente mais mulheres do que homens. Conclui, então, que essa desproporção e o “exagerado amor das mulheres pelos atavios tornaram a prostituição extremamente comum.[*8]”
É importante observar a sequência da narrativa do viajante. Inicia descrevendo o desembaraço das mulheres e sua preocupação com a beleza, com o vestuário e o gosto pelos atavios e, finalmente, sugere que a desproporção existente entre o número de homens em relação ao de mulheres e o gosto das mulheres por uma vida de luxo eram os responsáveis pela prática da prostituição em Nossa Senhora do Desterro. Embora formule explicações sobre as causas da prostituição, não explicita a partir de que elementos concluiu que a prostituição era comum nesta localidade. Que atitudes femininas o naturalista leu como sinais exteriores da prostituição? Poder-se-ia dizer que Saint-Hilaire, como outros viajantes o fizeram, pré-julga as práticas afetivas femininas a partir de valores éticos provenientes, como não poderia deixar de ser, de sua formação, experiências e interesses, que numa leitura atenta transparecem no seu relato.
Otto Von Kotzebue vivenciou, em 1815, o cotidiano dos moradores, particularmente o tempo que eles despendiam com o lazer. Conta o coevo viajante que no entardecer os moradores se agrupavam ao redor das tendas espalhados sobre a relva esverdeada, “o que aumentava a nossa alegria, convidava-os a dançar e cantar, e dando-nos a oportunidade de apreciar a graça com que as meninas dançavam o fandango.[*9]”
Foi no gingado daquela dança em noites de prelúdio e olhares inebriados em cobiças que, diante do que vivenciava e experimentava, Lesson não deixou passar despercebidas as múltiplas formas de sedução que os estrangeiros possuíam.
Núbeis desde muito cedo, as jovens estão com a idade de doze ou treze anos engajadas nos laços do himeneu. Elas revelam aos estrangeiros uma benevolência que se declarou desde o primeiro vislumbre. É verdade que estes possuem números meios de sedução, e que os presentes temperados com suas palavras apresentam-se de uma forma tão arrebatadora que é difícil resistir.[*10]
Carl Seidler, mercenário suíço-alemão contratado pelo exército imperial para lutar na campanha da Cisplatina, desembarcou no porto da capital da província de Santa Catarina numa manhã de 1825. A noite que passou, até o rompimento da manhã redentora, é narrada por ele como longa, cheia de expectativa e ansiedade diante do paraíso do novo mundo. E assim que o dia se fez presente, Seidler desembarcou e, segundo ele, “o vento ia crescendo, a uivar como sedenta ave de rapina”. Logo, o movimento da capital da província chamou atenção:
A vida intensa em todas as ruas, a aglomeração no mercado de peixe e de legumes, a burburinho das muitas tropas então aqui estacionadas, a incessante chegada e partida das canoas, o alegre drapejar das bandeirolas dos navios no porto, tudo enquadrado no maravilhoso contorno da cidade, recortado de montes e riachos – tudo isso constituía um panorama para sensibilizar o mais insensível.[*11]
Das bucólicas esquinas e ruelas da cidade, o suíço-alemão ouviu atentamente o balbuciar dos segredos das práticas de afetividade e sociabilidade feminina. Sensível ao que ouvia e no olhar suscitado por tantas conversas, logo percebeu: “e com uma amabilidade e olhares tais que bem se podia compreender que os oficiais estrangeiros lhes eram hóspedes bem apreciado.[*12]”
Contudo, deixa transparecer em seu relato de viagem que não fora bem sucedido nos jogos amorosos na Ilha. Entretanto, no pitoresco povoado da Armação das Baleias – litoral norte –, o viajante e seus amigos embriagaram-se diante de uma orgia transatlântica. A narrativa ocorre quando ele chega ao povoado.
Tendo chegado ao povoado de pescadores já no meio da noite e não sabendo a localização precisa da residência do velho amigo pescador, bateu na primeira porta que avistou. Logo foi recebido com muito agrado, pois a casa que aleatoriamente escolhera morava uns dos filhos do velho pescador que o viajante tinha conhecido na cidade de Nossa Senhora do Desterro. Após as devidas apresentações e muita insistência do dono da casa, o viajante e seus amigos dispuseram-se “a passar o resto da noite em casa dele”. Enquanto jantavam, o dono da casa saiu como “possesso” a visitar outras casas, “a despertar os moradores e convidá-los a irem passar a noite a bailar na casa dele.[*13]”
Segundo Seidler, no início “tudo estava meio rígido e cerimonioso”, somente os viajantes estavam distraídos e desembaraçados. Os pescadores conservavam-se “como se não soubessem abrir a boca”. Mas, depois de esvaziadas algumas canecas de cachaça, repentinamente desembaraçou-se “a língua aos homens e às mulheres, de tal maneira que ao mais calmo observador parecia que queriam depressa ressarcir o tempo perdido.[*14]” Diante da atmosfera inebriante pela cachaça, iniciou-se um baile em homenagem aos visitantes. Ao referir-se ao baile no qual participou ativamente, juntamente com seus amigos, qualificou-o como “louco escândalo, divertimento imoral e de folguedo reles”. Continua:
e começa o baile mais indecente que jamais tive a honra de ver [...]. As mais repugnantes contrações musculares, obscenidades murmuradas em voz baixa ou cantadas alto ao compasso da música, contatos cadenciados e nojentas concretizações de atitudes dos mais lúbricos desejos, caracterizavam todos os movimentos.[*15]
Enquanto vivia e participava intensamente da embriaguez propiciada pelo folguedo dos pescadores, o mercenário viajante formula juízo moral sobre o vivenciado e experimentado. Ao constatar a fluidez dos corpos femininos em movimentos e ao condená-los diante das obscenidades “murmuradas em voz baixa”, observou que:
Uma européia teria corado de vergonha à contemplação de tais cenas, mas as nossas belas, divertidas filhas de pescadores, parecem que não achavam, apenas sentiam extraordinária cócegas e grande prazer naquele folguedo reles. Naturalmente não tardou que nos sentíssemos em extremo entediados com a coisa, pois nenhum de nós se sentia tentado a tomar parte naquele divertimento imoral, naquele barbaresco dispêndio de esforços, além de que nos sentíamos muito fatigados da penosa cavalgada.[*16]
O suíço-alemão relata ainda que, para o “horror” dele e de seus amigos que o acompanhavam nesta incursão pelo litoral continental, depois do café da manhã, “começou de novo a dança de São Guido e as quatro em ponto outra vez a horrível festa de consumação.[*17]” E entre um gole e outro de cachaça, Seidler e seus amigos enfim sucumbiram aos encantos das suarentas filhas dos pescadores: “a terra tornou-se mar e no turbilhão da ebriedade produzida pela cachaça as sereias do meio dos caniços subiam ao carro de coral a puxar para o fundo, ao voluptuoso leito, o ansioso cavaleiro.[*18]” Segundo seu relato, a festa vivenciada e experimentada desenrolou-se “sob incessante comer, beber, bailar, namoriscar [...], a dança prosseguiu nessa orgia transatlântica, até que no outro dia soou a hora da redenção.” Na hora da partida, com o coração espedaçado pelo convívio gratificante que o sexo feminino lhes oportunizaram, e absortos pela caminhada que os levaria de volta à cidade de Nossa Senhora do Desterro, os viajantes foram despertados pelos cochichos e palavras inteligíveis. E, ao saírem da sua introspecção, “notamos muitas que à despedida tinham os olhos escuros rasos d'água. Pobres ondinas![*19]”
Em nenhum momento de sua narrativa Seidler tenta compreender qual juízo ético fundamentava as práticas afetivas das mulheres da comunidade em que se encontrava. Ao omitir uma leitura que levasse seus leitores ao entendimento do que acontecia naquela região, o suíço-alemão provoca a imaginação do leitor, para que este elabore a mulher sedutora da Ilha e do litoral continental. Avaliando as condutas das mulheres a partir de princípios morais pretensamente universais, as narrativas refletem esses valores, que eram destinados a leitores que a princípio pertenciam ao mesmo universo cultural do viajante.
Em leitura atenta é possível constatar intensos e agradáveis momentos vividos pelo viajante e por seus amigos. Ora entregando-se por completo aos braços das suarentas brasileiras, ora negando ter experimentado desses prazeres. Contudo, na sua narrativa sobre a população feminina da Armação da Piedade, o viajante deixa transparecer em leitura subjacente que a benevolência dessas mulheres, quando comparada ao comportamento feminino europeu, aproxima-se das graciosidades dispensadas pelas prostitutas europeias aos seus amantes. Outra pergunta que se poderia fazer é se estaria o suíço-alemão a dizer que as mulheres que visitava, e com as quais passou dias de intensas práticas de sociabilidade e afetividade, eram mulheres de vida mundana.
A narrativa mais surpreendente sobre as mulheres do litoral de Santa Catarina foi a do aventureiro suíço Heinrich Trachsler (1828), na Vila de São Francisco de Laguna. Sobre o cotidiano dos moradores, o viajante registrou: “Em toda parte fomos recebidos atenciosamente”, inclusive pelo “belo sexo”. Diante dessa amabilidade, todo batalhão arrumou namorada, “e pouco importava aos soldados se eram brancas ou pretas.[*20]”
Enquanto perambulava pelas sinuosas ruelas da vila em busca de entretenimento, sucumbiu, ao primeiro olhar, aos encantos do belíssimo rosto de Madona numa manhã ensolarada.
Debruçada a meio corpo fora da janela, avistamos, tomados de encanto e dignos de inveja um opulento e ondeante colo, cuja brancura e volume harmonioso transpareciam velado, traiçoeiramente, por um simples e leve vestido de trabalho caseiro; por aí chegava-se à conclusão dos ricos e viçosos encantos desta Psique tropical.[*21]
O coevo viajante, sem pudores, instiga o imaginário do seu leitor construindo imagens que seu olhar inquieto languidamente deixa transparecer nas entrelinhas do seu relato de viagem. A “sedosa cabeleira negra, o soberbo pescoço” e o “sinuoso seio” faziam com que essa esplêndida e “amável moça nada mais representava para nós [...] que a própria senhorita Vênus.” E, como se estivesse se interrogando, pergunta:
[...] que artista seria capaz de reproduzir na tela a doce perturbação neste rosto de anjo tingido pelo rubor de pejo, quando casualmente percebeu nossa temeridade e como que adivinhou o segredo descoberto, que nosso olhar indiscreto observava através do seu vestido. [...]. e, mesmo um pouco envergonhada, com um olhar que certificava com agrado o acolhimento da nossa muda homenagem e admiração pela encantadora beleza, e com esta persuasão íntima, tão cara para toda mulher, interiormente feliz, retirou-se ao interior do quarto.[*22]
Após a ceia, constituída de galinha, peixe, arroz, vinho e doces, teve início um pequeno fandango: “era-nos dada ocasião de apreciarmos largamente as evoluções voluptuosas requeridas pela dança e contemplar demoradamente a perfeita formação de seus corpos, verdadeiras obras magistrais da natureza.[*23]” A conversa despretensiosa e a troca de gentilezas, embaladas pelo pequeno fandango, ocorridas entre os viajantes e as mulheres que visitavam, é descrita pelo aventureiro: “É fácil imaginar como nós, jovens rapazes, íamos nos derretendo como açúcar.[*24]”
Nesta passagem “íamos nos derretendo como açúcar” não estaria nosso aventureiro possuído pelo desejo que fluía diante do aconchego familiar propiciado pelos encantos que esse encontro proporcionava? Teria Trachsler discernimento do que realmente acontecia? Ou estaria entregue a sua imaginação ao registrar os momentos vivenciados e experimentados por ele e seus amigos? Parece-nos que o momento lúdico e o aconchego familiar no qual o viajante permaneceu inserido por algumas horas proporcionaram uma convivência prazerosa. Em certos momentos, o aventureiro deixa transparecer a ambiguidade do seu olhar diante do vivenciado naquele momento por sua existência.
As doces pombinhas mostraram-se realmente afáveis e até confiadas para conosco, mas com muita decência, pois eram filhas de família. Uma vez que eram solteiras, debaixo da vista da mãe, nem por sombra pensar em excessos se podia; elas queriam satisfazer sua curiosidade feminina e introduzir a nós, forasteiros, com cordial liberdade, no santuário familiar. As brasileiras não costumam ser vistas por homens, mas há muita exceção, principalmente na intimidade do lar. Tanto mais gostam de exibir-se nas igrejas e festividades públicas.[*25]
Trachsler deixa transparecer o desejo que aflora diante do experimentado por ele e seus amigos. Ora colocando-se como observadores ativos na construção do lúdico –“desejávamos e esperávamos por elas” –, ora como observadores inocentes, pois se consideravam “verdes na arte do amor”, diante da voluptuosidade feminina, é importante observarmos a trajetória de sua narrativa, pois, através dela, podemos perceber a ambiguidade da sua fala. Primeiro, induz seus leitores a imaginarem que as mulheres com quem dialogava se insinuavam graças aos seus ardis sedutores. Num segundo momento, coloca-se na condição de seduzido e de uma ingenuidade angelical. Em outro momento, não afirma e nem nega a construção de sua fala; ele orienta, guia, conduz seus leitores a fazerem a leitura que melhor lhes convier. E, finalmente, reconhece que é “pela boca profana dos soldados extasiados” que são proferidos os elogios diante das práticas afetivas das mulheres que visitava.
Em certa altura do seu relato, o viajante pede desculpa aos “indulgentes leitores” pela sua narrativa pormenorizada dos acontecimentos. Trachsler deixa transparecer que deseja aprisionar seus leitores num jogo de sedução com uma serie de descrições provocantes: “doces lábios, “boca de cereja”, “voluptuosos saracoteios com o corpo”, “sinuoso seio”, “rosa certamente ainda não tocada” e “íamos nos derretendo como açúcar”[*26] são expressões que ponteiam a trajetória da trama narrada. Posteriormente, recua pedindo desculpa aos seus “indulgentes leitores” pelo relato detalhado, argumentando que sua narrativa poderia servir “eventualmente de introdução a um capítulo sobre os costumes brasileiros”. É como se, para explicar o modo como foi envolvido a participar dos acontecimentos, Trachsler colocasse na narrativa uma leitura capaz de tornar evidente sua participação, mas mediante um princípio que supostamente ele considerava nobre. Ao eximir-se da culpa por ter usufruído dos prazeres mundanos narrados, inocenta as mulheres que visitava de qualquer referência à prática da prostituição. Esse tema é abordado no final do seu relato, quando seu batalhão deixa a cidade de São Francisco de Laguna: “As mulheres mundanas seguiram-nos até aqui e teriam acompanhado os soldados ainda mais longe, não fosse dada ordem pelo coronel de enxotá-las com varas de carregar fuzil.”[*27]
O viajante não nos oferece qualquer possibilidade de identificação de quem eram essas mulheres que classifica como “mundanas”. Sua observação se torna interrogativa na medida em que coloca uma diferenciação entre as mulheres que acompanharam os soldados até um determinado percurso da marcha, daquelas com quem dividiu momentos de inesquecível felicidade. Ao discernir com nitidez entre mulheres honradas e prostitutas, estaria Trachsler informando para seus leitores que as mulheres com quem se envolvera não eram prostitutas e, dessa forma, tornando sua narrativa mais consistente e instigante na medida em que exigiria do seu leitor um exercício de decodificação dos rituais de sedução? Ou estaria pré-julgando, como o fizeram outros viajantes, determinados comportamentos que seu olhar observava a partir dos seus valores, experiências e interesses?
Demais, para nós estrangeiros, esta aventura foi de tanta novidade e teve sobre nós uma influência extremamente benéfica, pois trouxe alguma variação à triste vida de um soldado, sendo nós introduzidos inesperadamente na intimidade de uma roda familiar, o que ainda hoje permanece como viva recordação.[*28]
Com base nesse conjunto de falas sobre as mulheres da Ilha de Santa Catarina e do litoral, podemos acreditar na benevolência das mulheres desta região para com os viajantes ou estas atitudes femininas reincidentemente relatadas seria uma criação do imaginário deles. Que instrumentos teríamos para testar a veracidade dos fatos narrados pelos viajantes ao descreverem as mulheres da Ilha e do litoral de Santa Catarina dadas a benevolências com os estrangeiros?
Parece-nos que as mulheres da Ilha e do litoral não eram indiferentes ao jogo da sedução. Pelas narrativas dos viajantes, podemos observar – resguardando o que fazia parte do imaginário de quem narrava – que as mulheres dessas regiões também, em determinados momentos, eram partícipes de situações envolventes.
Se, de um lado, só temos falas masculinas construindo a mulher sedutora, portanto, é a partir delas que contamos o que se passou na Ilha; de outro, fica uma pequena dúvida diante dos papéis que elas encenaram. Em momento algum estamos dizendo que as mulheres eram desenvoltas, apenas chamamos a atenção do leitor para o fato de que os viajantes registraram uma mulher sedutora nessa região e em muitas ocasiões associando os jogos amorosos com a prostituição.
Nesta perspectiva, os viajantes estrangeiros que visitaram a Ilha de Santa Catarina e seu litoral continental foram “sedutores seduzidos” pelos encantos das mulheres que visitavam e, por que não dizer, do próprio acontecimento. Eles também foram os convidados das mulheres para o vivenciado e experimentado naquele momento, em que o café, a dança, a música, os adornos, os passeios clandestinos, a bebida, os presentes, a conversa solta, os olhares e a ceia configuravam os jogos das possibilidades sedutoras. Os viajantes, em determinados momentos, sucumbiram a todos os encantos das mulheres e foram expostos aos seus jogos: “É fácil de imaginar como nós, jovens rapazes, íamos nos derretendo como açúcar.”[*29]
Nessa eterna primavera pueril, “íamos nos derretendo como açúcar”. Como se estivessem negando o vivenciado e o experimentado, os viajantes, em algumas passagens dos seus relatos de viagem, colocam-se como observadores dos usos e costumes da população de Santa Catarina. Eximindo-se de qualquer juízo ético e na condição de perscrutador dos acontecimentos, os estrangeiros, ao olharem o dia a dia da população catarinense, permitem a leitura da possibilidade do itinerário da prática da prostituição em Nossa Senhora do Desterro.
Por outro lado, advertimos nosso leitor de que não encontramos nos relatos de viagens pesquisados referência a um território específico onde pudéssemos identificar a circulação exclusiva de prostitutas.
Entretanto, é possível, no conjunto das imagens reincidentes relatadas, extrair-se elementos que positivarão nas práticas de sociabilidade, urbanidade e afetividade das mulheres da Ilha de Santa Catarina e do seu litoral continental comportamentos que os viajantes estrangeiros, nos séculos XVIII e XIX, identificaram e associaram como exercício da arte da prática de prostituição sem, contudo, identificar um território onde estas mulheres circulavam e exerciam suas atividades.
Esse território só será mencionado na segunda metade do século XIX, em estudo feito pelo médico João Ribeiro de Almeida em 1863, identificando bairros pobres e ligando a atividade econômica das mulheres com a prostituição.
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