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Artigo publicado na edição nº 45 de dezembro de 2010.
A FERVURA DOS CORPOS:
cenários de insalubridade na cidade da Parahyba (1850-1889)

Azemar dos Santos Soares Júnior [*1]

Era domingo. Dia de Nossa Senhora das Neves. No ano de 1889, as senhoras preparavam-se para a procissão da padroeira da cidade da Parahyba[*2]. O calor parecia quase insuportável naquela tarde. Localizada na parte alta da capital, a igreja Matriz já deveria estar toda ornamentada com flores do campo e velas acesas, esperando a chegada da imagem. Na frente da capela, homens e mulheres já de idade se amontoavam na intenção de poder tocar no andor pedindo curas para suas mazelas, outros para lançar sobre o cortejo pétalas de rosas em forma de agradecimento pelas graças alcançadas.

As lágrimas rolavam nas maçãs rosadas das moças que faziam promessas para conseguir um bom casamento. O suor escorria na face dos rapazes fortes que acompanhavam toda a procissão. As beatas rezavam fervorosamente à padroeira, seguindo-se de fortes alaridos: “Viva Nossa Senhora!”. Os demais, com mesmo entusiasmo, respondiam: “Viva! Viva!”.

Enquanto o dia parecia ser de festa e devoção para alguns, outros, nas proximidades daquela igreja, sofriam em seu corpo a dor e o desespero de ver seus filhos esquálidos de fome. Segundo o relato do jornal Gazeta da Parahyba, uma mulher de estatura mediana e corpo franzino sentiu um fio de saliva grossa se misturar às lágrimas, molhando sua roupa suja, acentuando o cheiro de azedo. Ela soluçava o rosto forte de mulher sofredora. Não havia cama, nem lençol para se encolher e chorar sozinha. De dia fazia calor, de noite, frio. Assim começa a história de Alexandrina Maria da Conceição.

Nascida no vilarejo de Serra Redonda, chegou à cidade da Parahyba acompanhada de seu marido Joaquim Barbosa da Silva, seus quatro filhos e sua sogra. Era mais uma família de retirantes que fugia do torrão da seca e vinha aventurar uma vida melhor na capital da Província. No ano de 1889, era comum chegar diariamente famílias inteiras em busca de uma vida nova perto do mar e dos poderes públicos. O Sr. Gama Rosa, então presidente da Província, incumbido de acomodar esses homens e mulheres em algum lugar, encaminhou a família de Alexandrina Maria da Conceição para o sítio da Cruz do Peixe, local onde “bem ou mal, ahi iam passando, graças a generosidade das cozinheiras do hospital e ao serviço que ao mesmo prestava o seu marido”[*3].

Com a chegada dos dias chuvosos em meados de junho, Joaquim Barbosa da Silva partiu de volta à sua terra natal na esperança de “ver se as chuvas permitiam-lhe fazer plantações e vir neste caso buscar sua família”[*4]. Na capital, ficou sua mãe, esposa e seus quatro filhos. A primeira, já velha, estava impossibilitada de realizar qualquer tipo de trabalho, e os filhos ainda eram pequenos, sendo o último ainda de peito. A responsabilidade recaía toda sobre a mulher.

Durante a ausência de seu marido, a família de Alexandrina Maria da Conceição passou a sofrer pelas torturas da fome e com os maus tratos do diretor do hospital, o sr. Major Francisco de Sá Pereira. O trabalho prestado por Joaquim Barbosa não mais acontecia pela sua distância; consequentemente, a ajuda em comida vinda da cozinha do hospital imediatamente cessou. Um dia antes da comemoração religiosa, Alexandrina havia “supplicado muitas veses, de joelhos, uma esmola para seus pobres filhinhos e sua velha sogra que morriam a fome e tudo foi baldado”[*5]. Decidida a mudar aquela situação, resolveu falar diretamente com o diretor do hospital. Nas primeiras tentativas, o Major Francisco de Sá Pereira não a atendeu, fazendo com que a mulher continuasse insistindo. Após várias tentativas, o desespero levou-a de joelhos aos pés desse homem, que então “deu-lhe elle tão grande empurrão que ella rolou no chão, provocando isto de uma sua companheira nomes injuriosos ao Sr. director do hospital que respondeu-lhe nos mesmo termos”[*6].

O jornal Gazeta da Parahyba passou a fazer severas críticas à direção do hospital Cruz do Peixe, clamando a ação do presidente da Província para que medidas urgentes fossem ali tomadas:

Não admira-nos o que se passa do hospital da Cruz do Peixe, porquanto nós prevíamos estas e outras scenas desde que vimos a sua direção confiada ao major Sá Pereira, e, convém dizel-o, já não é a primeira vez que chegam ao nosso conhecimento queixas e reclamações contra aquele major, as quais temo-nos abstido de tornar públicas por falta de melhores e mais seguras provas. Entre os fatos que nos tem sido denunciados figura o de utilizar-se o Sr. director os serviços dos empregados do hospital e especialmente das cozinheiras e serventes para seu uso particular.[*7]

Outras queixas foram publicadas, tocando sempre na ética moral do profissional que havia sido jogado ralo abaixo por suas atitudes. Mesmo assim, a situação não havia sido resolvida. Como o marido de Alexandrina Maria da Conceição ainda não havia voltado de Serra Redonda, só restou a ela uma alternativa: perambular pelas ruas da cidade pedindo esmolas. Foi para o Varadouro que Alexandrina rumou em busca de ajuda para alimentar o seu corpo e o de seus filhos. As ruas eram o território dessa personagem.

A cidade da Parahyba, nos últimos anos do século XIX, pouco havia sofrido mudanças em relação aos séculos anteriores. Uma cidade onde podíamos facilmente identificar suas ruas, largos, praças, becos, prédios e ladeiras. Geograficamente, a cidade nascera às margens do rio Sanhauá e de lá ganhava vida para as outras extremidades. O cais do Varadouro era a porta de entrada: por ali entraram o colonizador europeu, as ordens religiosas, os engenheiros que edificaram os prédios e planejaram as ruas, as várias epidemias que assolaram a população, as principais notícias do poder central, os alimentos, os medicamentos, as vestimentas, os cosméticos e os sinais da modernidade.

A Cidade Baixa parecia ser o território de consumo, local onde o setor econômico era apurado. Localizavam-se ali botecos, mercados, alfândegas e prostíbulos. Local de verdadeiro consumo de sedução que aflorava através de propagandas, imagens, barulhos, músicas, dentre outros, que são próprios do cotidiano das cidades em sua conjuntura. Dela e de tantos outros homens e mulheres que circulavam todos os dias. Ao falar sobre as ruas, Iranilson Buriti de Oliveira [*8] nos diz ser o território desejado por homens, mulheres, ricos e pobres, trabalhadores e vagabundos, senhoras moralistas e meliantes, homens de negócios e pedintes, território no qual circulam memórias e economias simbólicas.

Emoções, ansiedades, força de viver pareciam ser elementos vivos na personalidade de Alexandrina que, com seu filho agarrado aos peitos, era envolvida pela sedução das ruas da cidade baixa. Seu corpo ganhava espaço para gesticular, para deixar extravasar sua sensibilidade. As ruas eram o cenário para enamorados, procissões, folias, crimes, prostituição, sujeira, comércio, pobreza e também para ostentar a riqueza. Os ânimos naquelas ruas estavam sempre à flor da pele, afinal, nos primeiros dias do mês de agosto, um “bando de aproximadamente trinta mulheres famintas, haviam tentado saquear o Armazém da Diretoria Geral de Socorros Públicos”[*9].

Corpos exaltados pareciam ser uma recorrência na Paraíba do século XIX. Na serra de Araruna, inúmeras mulheres iam às missas armadas com paus e pedras escondidas em suas roupas para se defenderem do regulamento de 18 de junho de 1851, que instituía o registro de nascimento e de óbitos[*10] . O medo presente no imaginário daquelas mulheres de cor era o de tornarem-se cativas.

A capital da Paraíba parecia ainda muito pequena em relação a outras capitais de províncias do país. Poderia se dizer que era a mais atrasada, mas não seria totalmente verdade. A cidade começava a crescer. Na última década do oitocentos, como assegura Lenilde Duarte Sá, a cidade estava dividida entre o Varadouro, ou Cidade Baixa, e a Cidade Alta, pois

em ambas distribuíam-se cinqüenta e nove ruas, ou melhor, sessenta e duas, contando com as três, que sem denominação específica ocupavam um lugar conhecido na Cidade Baixa por Jardim. Eram trinta e quatro na parte baixa e vinte e oito na Cidade Alta. Entre todas, apenas em onze podia andar sobre calçamento. [...] Preenchendo essas ruas, de forma esparsa, encontravam-se dois mil e noventa e seis prédios. Desses noventa e quatro eram sobrados, o que indicava a presença de uma tímida elite urbana. Contavam-se ainda oitocentas e setenta e seis casas de palha distribuídas ao sabor das conveniências, pelas ladeiras e ruas.[*11]

Observar as representações da cidade da Parahyba nesse momento me faz perceber um conjunto de problemas acumulados ao longo de sua história, e que só se tornavam objeto de atenção dos poderes públicos em momentos de apuros. Foi assim nas epidemias de cólera em 1855 e febre amarela em 1856. A mesma denúncia pode ser percebida na obra de Vicente Gomes Jardim, intitulada Monografia da Cidade da Parahyba do Norte (1911), que revela uma realidade urbana precária. Praticamente, até então, não houvera esforços para promover o apagamento dos rastros da cidade colonial em sua estrutura física, em sua configuração e na não adoção de novos padrões estéticos, higiênicos. Percebo um desprezo pelas prescrições de higiene das ruas, dos prédios, dos largos e das praças provocado não só pela falta de uma educação hígida mas também pela construção de edificações tortuosas, como a proliferação de casas de palha no centro e nos arredores da cidade. Os novos padrões estéticos, higiênicos e de modernidade tiveram que aguardar as primeiras décadas do século seguinte.

Embora as ruas contassem com quase nenhuma infraestrutura, algumas delas se destacavam por serem aquelas que se envolveram com a indumentária da sedução, seja comercial, sentimental ou sexual. Elas são: a rua Maciel Pinheiro, a rua da Areia, a rua Nova e a rua do Comércio, todas de caráter “eminentemente comercial e que atendiam a necessidade de habitar e trabalhar no mesmo local[*12] ”. Eram ruas que ligavam o Varadouro à Cidade Alta e concentrava o comércio grosso e o retalho da cidade. Homens e mulheres subiam e desciam, são marcas da historicidade do cotidiano.

Após um longo dia de peregrinação pelas ruas e ladeiras da cidade, Alexandrina voltava para perto de seus parentes quase de mãos vazias. O frio da noite arrepiava os corpos. O uivo dos ventos amedrontava as crianças. Com o raiar da manhã, Alexandrina Maria da Conceição, faminta, partiu em busca de ajuda passando pelas ladeiras íngremes e empoeiradas da Cidade Alta. Ali estavam localizados os edifícios públicos administrativos, onde foi diretamente queixar-se ao então Presidente da Província, o Sr. Gama Rosa, os desmandos do diretor do hospital da Cruz do Peixe. Sem conseguir encontrá-lo no Palácio do Governo, partiu novamente para o centro comercial como pedinte, onde mais uma vez, foi violentada. Ao bater na porta de um rico comerciante e pedir-lhe esmolas, “foi lançada a ponta pés e gritos pelo dono do estabelecimento” . Provavelmente machucada, a mulher, mesmo enfraquecida pela fome, voltou para perto de seus filhos cambaleando de dor.

No dia 13 de agosto de 1889, as páginas da Gazeta da Parahyba estampavam na coluna intitulada “Diz que...” as últimas informações que tive sobre Alexandrina:

[...] ontem voltou da Serra Redonda o marido de Alexandrina, extropiado e enanido; e ella, sem recurso algum já não sabe mais onde a levará o desespero da fome e da miséria. Pedimos ao Exmo. Sr. Gama Rosa providências para o problema da fome do elevado numero de retirantes que se amontoam pelas ruas dessa cidade[*14].

O corpo de Alexandrina Maria da Conceição, assim como centenas de outros corpos na cidade da Parahyba, revelam gemidos e sussurros de corpos famintos, fedorentos e pedintes. São corpos perebentos pela pobreza, pela sujeira; corpos empurrados escada abaixo pelas mãos limpas e elitizadas do Major Francisco de Sá Pereira, por exemplo. Corpos que podiam ser considerados monstros anônimos, espectros sem voz, amedrontadores da elite. Corpos esquecidos no tempo, mas que possuem historicidade para os estudiosos do corpo como metáfora da vida, como uma escrita de si. Esses corpos passeavam por uma cidade suja, insalubre, malcheirosa. Os relatos publicados pela Inspectoria de Higiene da Paraíba divulgam uma cidade onde os porcos desfilam garbosamente como cidadãos, como discípulos da imundície; espaços do sujo, onde a água jogada porta afora se mistura ao lixo e às fezes criando aquele caldo pavoroso.

Cuidar da higiene da cidade era dever do governo imperial no combate à proliferação de doenças que ordinariamente atacavam a população como a febre amarela, a cólera, as bexigas, dentre outras moléstias que

igualmente aparecem na estação invernosa, bem como os ingurgitamentos de fígado, do baço, as hidropezias, as asthmas, as inflamações das vias aéreas, anemia, a thisica pulmonar, sem fallar das moléstias siphilicas, que formam o quadro das que afligem a população na mesma estação invernosa, e que se tem dado em maior escalla no corrente ano em razão da maior força do inverno.[*15]

Os discursos médicos divulgam propostas que Sidney Shalhoub [*16] postulou, como sendo, em primeiro lugar, a existência de um caminho para a civilização, isto é, um modelo de aperfeiçoamento moral e material que teria validade para qualquer povo, sendo dever dos governantes zelarem para que tal caminho fosse mais rapidamente percorrido pela sociedade sob seu domínio; e em segundo lugar há a afirmação de que um dos requisitos para que uma nação atinja a grandeza e a prosperidade dos países mais cultos seria a solução dos problemas de higiene pública.

Os jornais da capital paraibana, como o Gazeta da Parahyba, publicavam notícias desastrosas causadas pela insalubridade, e, consequentemente, pelas doenças, revelando um verdadeiro pavor de uma cidade que estava longe de alcançar a “civilização”, devido a sua degeneração, seu fedor e seus monumentos de lixo, ou lixo em forma de monumentos que se aglomeravam. A situação era tão séria que além da ameaça que vinha de fora e adentrava pelos portos, a

nossa cidade estava cercada de águas onde os miasmas ferviam em vida. Pelas calçadas, os retirantes amontoavam-se misturando as suas excrescências, fazendo com que os transeuntes tapassem o nariz. Assim a ebulição dos miasmas e o amontoado de corpos, de cujos odores putrefatos desprendiam, denunciavam o risco dos corpos ardentes desintegrarem-se e formarem um grande mefítico pântano. O amontoado, o calor das águas, a fervura dos corpos que corriam o risco de apodrecerem pelas febres.[*17]

O ar age diretamente sobre o corpo vivo de diversas maneiras. Pode ser “por simples contato com a pele ou com a membrana pulmonar, por substituições através dos poros, por ingestão direta ou indireta, uma vez que até os alimentos também contêm uma proporção de ar de que poderão se impregnar, de início, o quilo e, em seguida o sangue[*18]”. Portanto, é pelo ar que se expandem os fluidos, os odores, os vírus, as bactérias. As secreções da miséria deveriam ser combatidas todos os dias para abolir as exalações de todos os humores podres, e, só assim, liberar os odores individuais da perspiração, reveladoras de identidade profunda do “eu”. Repugnar os fortes odores do povo, dos retirantes, dos mendigos, dos sujos é, sem dúvida, tornar-se cada vez mais sensível à respiração dessas perturbadoras mensagens da intimidade dos corpos.

A presença dos maus odores permite muitas vezes associar o povo pútrido e fedorento com a morte, com a degeneração, com a carniça, com o pecado, como forma de justificar o tratamento que lhe é imposto pelo governo e pelos próprios habitantes da cidade da Parahyba. Ressaltar a fetidez desses moribundos é acentuar o risco de proliferação de infecções que sua presença nas ruas comporta e, claro, enfatizar o terror a esses corpos “justificatório em que a burguesia se compraz e que canaliza a expressão de seus remorsos”[*19].

Os relatórios apresentados pelo médico da Inspectoria de Higiene, Dr. João José Innocêncio Poggi, nos anos de 1861 e 1862, denunciavam a situação de insalubridade pública. Atendendo a súplica, a Assembleia Legislativa da Parahyba criou no ano seguinte uma série de leis inerentes à salubridade das cidades e vilas por toda a Província. Dentre as principais medidas aprovadas pelo presidente da Província, Francisco de Araújo Lima, estava a de que:

O animal que se achar morto nas ruas desta Vila, povoações do município e estradas públicas, será removido com urgência por seus donos, para onde o mal hálito não incomode aos moradores e viandantes, caso não haja lugar destinado para tais despejos; não podendo sê-lo o rio Paraíba e suas margens, donde igualmente serão retirados os que ali se acharem. Ao contraventor será imposta a multa de 2$000.[*20]

Além dessas, outras medidas, como multas para aqueles que “deitarem em suas habitações e proximidades lixos, imundícies e quaisquer outras infecções, que incomodem ou venham a incomodar o publico[*21]”, assim como a proibição de “inhumações nas igrejas da Vila e povoações em que houver cemitério publico[*22]” e de “curtumes e salgadeiras de couro e exposição destes ao sol nas ruas[*23]” sob a pena de multa de 10$000. Qualquer brincadeira do entrudo com água, lama ou outro líquido que ofenda ou possa danificar a saúde ficava terminantemente proibida.

No que diz respeito às posturas de limpeza, despachamento das ruas e esgotos d’água empossada, os moradores são obrigados “a trazer limpas as testadas de suas habitações até o meio da rua, arrancando o mato e deixando a relva ou varrendo-a sempre que houver risco” . Esses mesmos deverão “entupir os pequenos charcos e buracos, que houverem na frente de suas casas e darão esgotos as águas estaguinadas em seus quintaes e proximidades”[*25]. Quanto às “poças d’água, que alaguem toda ou quasi toda a largura de uma vila ou povoações do município, serão esgotadas pelo procurador da Camara, auxiliado pelos moradores correspondentes”[*26], além de dar passagem “às águas por onde formar natural e conveniente a direção de seu encanamento, decidindo a Camara no caso de aparecer oposição e dúvidas”[*27]. Por fim, ninguém poderá “sem licença do fiscal, a rua desta cidade e povoações do termo, conservar entulhos, madeira e materiais para edificação e quaisquer outros objetos que dificultarem o transito”[*28].

Todas essas medidas são passíveis de multa em caso de desobediência. A pergunta é: qual fiscal era responsável por essa vigilância? Essa informação não consta nos documentos da Inspetoria de Higiene referentes ao período. Quando se aplicava multa, era diretamente pelo Inspetor da Saúde que, enquanto funcionário, não dispunha de auxiliares. Na prática, as medidas não se efetivavam. Pela descrição dos relatórios, chego a sentir os maus odores da cidade e dos corpos.

Já era notório para os médicos, governantes e para a população de forma geral, que as doenças e os maus odores eram fruto da grande quantidade de corpos vivos amontoados e pútridos e dos dejetos fecais misturados às lamas espalhadas pelas ruas. Se uns atribuíam a sujeira das ruas aos retirantes da seca, é porque esqueceram de observar o mau comportamento higiênico de homens e mulheres que lançavam a suas portas lixos, fezes e água suja, como relato de uma falta de educação hígida. Seria mesmo a “civilização” alcançada através da disciplina desses pobres homens? Bem provavel que não somente. A disciplinarização dos corpos não poderia ser proposta apenas aos considerados moribundos, mas também aos ditos cidadãos que habitavam as respeitadas casas da cidade.

Os relatórios da Inspectoria de Higiene da cidade da Parahyba dão a entender que os indivíduos exalavam um fedor animal. Tudo cheirava mal. As ruas fediam à lama, lixo e fezes, a lagoa parecia um pântano malcheiroso, nos abatedouros as moscas disputavam com os tapurus que se alimentavam dos restos de animais, que em estado de putrefação fediam à carniça[*29].

O historiador Roy Porter [*30]diz que “só se pode saber sobre os doentes através dos médicos”. Vou mais além: na cidade da Parahyba, além de sabermos sobre os doentes por meio dos discursos dos médicos, também sabemos sobre a situação de insalubridade da cidade da Parahyba, em especial através da análise dos relatórios apresentados pela Inspectoria de Saúde aos governantes da Província, o que é sempre uma limitação ao acesso àqueles sujeitos. Ainda assim, nas entrelinhas dos discursos oficiais, pude encontrar alguns fascinantes elementos que me ajudaram a entender como sujeitos comuns da cidade da Parahyba, durante o século XIX, enfrentavam a questão da higiene pública, de suas casas e de seus corpos. Situações de extrema dificuldade e incerteza, apresentando as mais diversas maneiras de lidar com as questões que envolvem a higiene, a civilização, a doença e a cura. Médicos na Paraíba Imperial eram artigos raros e caros. Higienizar a cidade, disciplinar os corpos e implantar uma educação higienista na capital foi tarefa lançada aos médicos. Parece que estes “lançaram a peteca” para o século XX.

Referências bibliográficas

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Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba e aluno do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, onde desenvolve a pesquisa intitulada “Corpos Hígidos: o limpo e o sujo na cidade da Paraíba (1912-1924)”, orientado pela profa. dra. Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano. Contato: azemarsoares@hotmail.com.
Cidade da Parahyba era o nome da capital da Paraíba até o ano de 1930. Hoje é chamada de João Pessoa. Desta forma, quando utilizo o termo Parahyba, refiro-me à capital, quando o termo for Paraíba, estou me referindo à Província.
JORNAL GAZETA DA PARAHYBA. João Pessoa (PB), 6 ago. 1889. Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba.
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JORNAL GAZETA DA PARAHYBA. João Pessoa (PB), 6 ago. 1889. Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba.
JORNAL GAZETA DA PARAHYBA. João Pessoa (PB), 7 ago. 1889. Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba.
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