Artigo publicado na edição nº 45 de ezembro de 2010.
UMA PAULISTA NA LUTA PELA CIDADANIA POLÍTICA:
Diva Nazário e sua tentativa de alistamento em 1922
Mônica Karawejczyk [*1]
Atualmente, é difícil imaginar uma época em que era considerado um absurdo uma mulher ir até uma sessão eleitoral votar, já que hoje as mulheres ocidentais exercem o direito ao voto. Afinal, o sufrágio universal e a igualdade de voto só foram conquistados nas primeiras décadas do século XX. Em busca da cidadania, as mulheres percorreram um caminho longo, repleto de barreiras e preconceitos. Até a metade do século XIX, o mundo público e político eram considerados um reduto exclusivamente masculino. O Brasil foi um dos pioneiros na concessão do direito ao voto para as mulheres na América Latina; em 1932, com a reforma do Código Eleitoral – por meio do Decreto n° 21.076 – foram instituídos no Brasil a Justiça Eleitoral, o sufrágio universal direto e secreto e o voto feminino.
Na década de 1920, época em que a mulher ainda não podia exercer de modo pleno a sua cidadania, Diva Nazário, estudante de direito de São Paulo, tem a ousadia de solicitar o seu alistamento eleitoral. Tendo seu pedido indeferido, decide publicar o livro que, segundo suas próprias palavras, foi o meio que encontrou para “divulgar melhor o que se ha dito a respeito e servir quiçá a nobre causa do Feminismo” .
A obra reúne tanto artigos sobre os direitos políticos da mulher quanto o relato de sua peregrinação nas juntas eleitorais para solicitar o seu alistamento. Neste artigo, tenho como objetivo apresentar essa obra de Diva Nazário e trazer alguns temas pertinentes à questão do sufrágio feminino.
Breves considerações sobre a conquista do voto feminino no Brasil
Apesar de o Brasil ter sido um dos pioneiros na concessão do voto para as mulheres, um longo caminho teve de ser percorrido desde o século XVIII e XIX até a conquista na década de 1930. June Hahner salienta que, no Brasil, “as primeiras feministas não tinham advogado o voto da mulher” . Essa luta só começou a ser travada no final da década de 1880, quando a
proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, ofereceu inicialmente a possibilidade de uma estrutura política mais fluida e aberta. Com a extensão do voto, em teoria, a todos os homens alfabetizados, a questão do sufrágio pôde tornar-se um tópico mais vital para as feministas cultas que experimentavam um sentimento de frustração e privação política.
Letícia Canêdo chama a atenção para o fato de que
foi o aparecimento do voto individual masculino que trouxe ‘uma visibilidade sem precedente para a separação política entre os homens e as mulheres’, em razão da não-inclusão das mulheres no corpo eleitoral. Mais do que a exclusão, [...] é a não-inclusão que começou a ser questionada e se transformou em luta política parlamentar e, sobretudo, intelectual.
Pode-se definir que o século XIX se caracterizou por duas frentes de luta do operariado, uma por melhores condições de trabalho e a outra pelos direitos de cidadania, aí incluída a reivindicação do direito de votar e ser votado, sem o critério censitário. O sufrágio universal surge como uma das principais conquistas do final do século XIX, entretanto ela não incluía o sufrágio feminino,
esta foi uma luta específica que abrangeu mulheres de todas as classes, foi uma luta longa, demandando enorme capacidade de organização e uma infinita paciência. Prolongou-se, nos Estados Unidos e na Inglaterra, por 7 décadas. No Brasil, por 40 anos, a contar da Constituinte de 1891.
Tanto os homens sem propriedade quanto as mulheres foram afastados das decisões políticas nas sociedades ocidentais, sendo somente no século XIX que tal situação começou a ser contestada de uma forma mais organizada. Segundo Carla Pinski e Joana Maria Pedro, tanto no Brasil quanto em outras partes do Ocidente, o direito de participar da vida política era considerado como um “monopólio de grupos – só podia votar quem tinha base econômica suficiente” . June Hahner aponta que o advento da República deu às brasileiras argumentos adicionais em favor do sufrágio, mas somente na década de 1920 a luta toma uma direção mais definitiva e definida. Antes disso, a ordem do mundo e o papel que as mulheres desempenham nele só foram questionados de forma mais organizada no século XIX, e isso ocorreu em todo o Ocidente. Anne-Marie Käpelli salienta que é nesse século que surge duas posições teóricas que apoiam as feministas e que
estão essencialmente ligadas a duas representações da mulher: uma, baseada no humano, anima uma corrente igualitarista; a outra, postulando o eterno feminino, engendra uma corrente dualista. [...] A corrente igualitária burguesa considera o legislador como o motor central da mudança. O Estado será o parceiro que vai regular os conflitos de interesses.(grifo meu).
No Brasil, o movimento em prol do voto feminino se vinculou ao movimento igualitário, buscando o reconhecimento como cidadãs pelo caminho legal. As brasileiras queriam o reconhecimento do seu direito de participar da vida pública e política do país, mas sempre garantiam que esse novo papel em nada afetaria sua feminilidade e suas tarefas domésticas e maternas. Assim, desenvolveu-se aqui um “feminismo bem comportado”, tal como o nomeia Céli Pinto.
Na Assembleia Constituinte de 1891 ocorerram debates para estabelecer o sufrágio feminino, com argumentos ora contra, ora favoráveis à inclusão das mulheres, mas não obtiveram sucesso, fracassando até mesmo uma proposta em favor de voto limitado, para mulheres altamente qualificadas, com títulos universitários ou de ensino, ou que tivessem propriedade, sem estarem sob a autoridade do pai ou do marido. Apesar de o voto ter sido negado, foi a partir daí que as discussões em torno dele se acirraram. E é nesse contexto que Diva Nolf Nazário faz a sua tentativa de alistamento em 1922 .
Diva Nolf Nazário e seu livro
Regina Cecilia Maria Diva Nolf Nazário nasceu no município de Batatais, no interior do estado de São Paulo, em 22 de novembro de 1897. Com dez anos de idade empreendeu uma viagem para a Bélgica em companhia dos pais, onde permaneceu até 1917. No retorno ao Brasil, decide cursar direito na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Em 1922, dizendo-se inspirada pelas aulas de seus professores, e depois de estudar a Constituição, decide se alistar para as eleições que se aproximavam. O artigo 70 da Constituição de 1891 não deixava claro que as mulheres não podiam participar das eleições. E é por conta dessa ambiguidade que a acadêmica de Direito decide reivindicar seus direitos. As 175 páginas publicadas em 1923 salienta alguns dos problemas enfrentados pelas brasileiras na luta pelos seus direitos políticos.
A primeira parte de seu livro é intitulada “Casos Directos – Historico do meu pedido de alistamento”. Sabemos que o seu pai a apoia nessa luta, já que é ele que vai pedir informações para um novo eleitor se alistar. Vemos toda a surpresa dos funcionários da junta eleitoral ao constatarem que o novo eleitor era na verdade uma mulher. Seu pedido é indeferido, pois, segundo o juiz, “Não se reconhece ainda, no Brasil, a capacidade social da mulher para o exercício do voto. As restricções que se lhe impõem na ordem cível têm reflexo na ordem política. É certo que não existe em nossas leis uma exclusão expressa a esse respeito.” E lista uma série de impedimentos para aceitar o alistamento, entre eles o fato de que todos reconhecem, baseados na tradição, que as palavras “cidadão brasileiro”, presentes na Constituição, se referem apenas aos membros masculinos da nação. Para ele, os homens seriam os únicos aptos a exercer a cidadania política, uma vez que somente eles teriam a capacidade de pegarem em armas para defender a nação, de serem idôneos para o trabalho, e ainda os únicos que poderiam “pugnar pelos seus direitos na imprensa, na tribuna, na praça publica” . Motivos pelo qual o juiz considera mais do que indeferida a petição.
Diva impetra um recurso junto à 1ª Vara após ter seu pedido negado. Rebate as alegações do juiz uma por uma, quanto ao argumento de que aconteceria uma inversão dos papéis tradicionais na sociedade se as mulheres começassem a se imiscuir na política. Ela lembra que, em 1920, grande parte das mulheres já trabalhavam fora do lar e isso não acarretou uma confusão de papéis. Quanto à questão de que as brasileiras não podiam votar por não serem consideradas cidadãs, Diva rebate tal argumento com base na lei e na gramática. Primeiro, explica o que quer dizer o termo cidadão, mostrando que, tanto homens como mulheres estão sujeitos as penalidades da lei, já que ambos têm deveres a cumprir de forma equivalente. Argumenta que:
Gramaticamente e legalmente os termos empregados no masculino, o são em sentido geral, e, na lei eleitora, as palavras ‘cidadão brasileiro’ não ‘designam o cidadão do sexo masculino’ somente, mas sim o natural do país, maior de 21 anos, salvo as exceções especialmente determinadas pela Constituição, e dentre as quais não se acha mencionada a mulher.
E salienta que, ao estar negando o seu direito de se alistar, os juízes eleitorais não estão cumprindo a lei máxima da pátria, a Constituição. Entretanto, seu recurso é negado. Diva lamenta e solicita que a lei seja reformulada. Clama pela mudança na Constituição lembrando que os tempos são outros daqueles em que a nossa primeira carta constitucional republicana foi elaborada e que agora (década de 1920) o voto feminino já é uma realidade em muitos países. Com o que
veio também a prova de que ruiriam por terra todas as atribuições de fraqueza e de incapacidade da mulher para fins políticos. Tampouco nada perdeu a mulher da graça e do encanto que, em geral, lhe reconhecem; nem sofreu o lar, em país algum, de turbação moral ou material com o voto feminino.
Na segunda parte denominada “Casos indirectos”, a autora dedica 23 páginas para dar visibilidade às discussões que ocorreram na Constituinte e compila as sessões que trataram da redação dos artigos 70 e 71 . Diva também anexa uma carta que recebeu de Juvenal Lamartine em junho de 1922, comentando sobre a sua tentativa de alistamento eleitoral. Cito o trecho final da carta onde se pode perceber o empenho de Lamartine na causa feminista e a convivência harmoniosa e decisiva com Bertha Lutz :
A constituição, diz bem V.Exc., não faz distincção entre os cidadãos do sexo masculino e do sexo feminino, e como a nossa Carta é de poderes limitados o que ella não proihibe expresamente, permite. Este anno renovarei a campanha em favor dos direitos político á mulher brasileira. Estou aguardando o regresso da Senhorita Bertha Lutz dos Estados Unidos, que alem de me trazer valiosos elementos, muito me auxiliará aqui fazendo a campanha pela imprensa.
A terceira parte do livro, denominada “Imprensa”, traz 50 artigos publicados em periódicos paulistas e de outros lugares. Todos eles contêm alguma referência ou aos direitos políticos da mulher no Brasil ou sobre o seu pedido de alistamento eleitoral. Não irei aqui fazer uma descrição do conteúdo desses, somente assinalar que todos foram escolhidos de forma a fazer uma elegia à mulher e à sua plena capacidade mental para fazer parte do mundo político. Nas páginas finais do livro, a autora faz um resumo “De tudo quanto precede”, dos quais destaco:
3º que, á vista dos preceitos da nossa Constituição, não procedem as allegações de cidadania, de sexo, de estado, de tributo de sangue, etc., invocadas para conservar a mulher em situação inferior ao homem;
[...]
9º que actualmente não tem valor o grande argumento, invocado na Constituinte, pelos adversários do voto feminino, da não existência em outros paizes de tal concessão naquella epocha;
10º que finalmente, si continuar tal estado de cousas, uma reforma urgente da nossa lei básica se impõe, para alcançar preceitos mais claros e menos antiquados no referente á situação civil e política da mulher.
Diva não estava errada nas suas previsões. Foi necessária uma revolução no país (1930) para que uma reforma na lei eleitoral fosse proposta e as mulheres finalmente fossem incluídas no corpo político.
No fundo da FBPF no Arquivo Nacional foi possível encontrar referências à publicação do livro de Diva. Em carta de 24 de dezembro de 1923, Bertha Lutz cumprimenta a autora e diz “é um bello serviço prestado a causa e de grande utilidade para a sua documentação” . Em sua resposta, Diva agradece “a nímia gentileza quis emprestar ao meu pequenino trabalho em prol da emancipação da mulher brasileira” . Em 1924, Diva solicita a Lutz que lhe envie uma lista dos novos senadores e deputados para que possa lhes enviar um exemplar, uma vez que
estando provavelmente prestes a entrar em discussão a reforma da Constituição, e, nas emendas preconisadas em varios jornaes, não constando a concessão dos direitos políticos á mulher, julguei oportuno pedir-lhe a indicação de nomes de alguns deputados e senadores a quem eu pudesse endereçar, com certa vantagem para a nossa causa, determinado numero de exemplares do meu livro “Voto Feminino e Feminismo”. É de notar que o tom burlesco empregado por muitos periódicos quando se tratou do meu pedido de alistamento ou de reuniões feministas, tem mudado favoravelmente nas numerosas referencias a meu pequeno livro, o que representa, no dizer de tantos, não pequeno sucesso para os emprehendimentos do sexo fraco entre nós. E quem sabe, tal remessa poderá servir não só de feliz recordação aos mandatários nas Camaras, favoráveis a ideia, como também de propaganda necessaria aos menos inclinados em considerar a mulher apta a uma justa e quiçá requerida intromissão nos negócios políticos da Nação.
A resposta a essa solicitação demorava dois meses para ser enviada, devido ao movimento revolucionário, como informa Bertha Lutz . Os nomes são enviados com a seguinte ressalva:
os deputados ouvidos, disseram-me, todos, ser muito innoportuno o momento para modificar os textos legislativos que não se opõem ao voto, sendo mesmo os mais favoráveis certos a que qualquer tentativa nesse sentido, teria como resultado a discriminação contra, e não a favor.
Assim, mesmo não tendo conseguido se alistar, parece ser correto afirmar que a questão da inserção feminina no pleito eleitoral passou à pauta das discussões na imprensa e dos políticos. De tal modo que após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas, ao assumir a chefia do Governo Provisório, designou pelo Decreto n°19.459, de 6 de dezembro de 1930, uma subcomissão legislativa para estudar e propor a reforma da lei e dos processos eleitorais. Com o novo Código Eleitoral (fevereiro de 1932), a inserção feminina foi aprovada.
O que se pretendeu aqui foi tão somente apresentar o livro de Diva Nolf Nazário e dar uma maior visibilidade à questão da conquista do voto pelas mulheres no Brasil e da luta empreendida pelas brasileiras por seu direito a exercer a sua cidadania política. Acredito não ser demais considerar esse livro uma referência obrigatória a todos que desejam pesquisar o movimento feminista brasileiro, ainda mais para quem pesquisa o movimento sufragista. Afinal, tal obra nos traz o testemunho de uma mulher que superou muitas barreiras para poder exercer definitivamente a sua cidadania. E, pela iniciativa do advogado e professor Cláudio Lembo, ex-governador de São Paulo, a obra foi relançada em edição fac-similar pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo em setembro de 2009.
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