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Artigo publicado na edição nº 46 de fevereiro de 2011.
O ATLÂNTICO, UM MAR DE IDENTIDADES:
etnias africanas no Sudeste brasileiro (Mangaratiba, século XIX)

Manoel Batista do Prado Junior [*1]

O tráfico atlântico de africanos deu ensejo à maior e mais cruel diáspora forçada da história da humanidade, retirando compulsoriamente inúmeros indivíduos de suas terras e desarticulando suas relações sociais então estabelecidas. O tráfico foi responsável, sem dúvidas, por um profundo impacto no crescimento da população brasileira ao longo dos trezentos anos nos quais ele se fez presente. Foram cerca de quatro em cada dez africanos, importados pelas Américas, que desembarcaram nos portos brasileiros entre os séculos XVI e XIX[*2], o que representou uma entrada de quase quatro milhões de indivíduos em terras brasílicas para serem escravizados[*3].

Essas afirmativas nos trazem incialmente dois questionamentos: o primeiro é o de como foi possível a organização desse comércio por mais de trezentos anos, mesmo após a repressão estabelecida pela Inglaterra na década de 1830 e a proibição deste trato em 1831 no Brasil. O segundo, e que será particularmente aqui discutido, é de que regiões da África eram os escravos desembarcados em terras brasileiras, e até que ponto suas matrizes culturais, heranças e recordações de vida pregressa naquele continente foram fundamentais para sua organização no Novo Mundo.

O Sudeste brasileiro, ao longo dos séculos XVIII e XIX, recebeu cativos de basicamente três grandes áreas africanas: África ocidental, centro-ocidental e a costa oriental. Segundo Manolo Florentino, no intervalo entre 1795 e 1811, a África ocidental era responsável pelo envio do pequeno contingente de 3,2% dos cativos desembarcados na praça comercial do Rio de Janeiro, sendo, a partir de 1816, inexistentes os navios oriundos daquela região. A África centro-ocidental, entretanto, se consolidou como a maior exportadora de braços para os estabelecimentos comerciais do agro e da urbe fluminense, com o volume de negreiros oriundos dessa região sendo triplicado em números absolutos após 1811. Ao mesmo tempo, também cresceram os índices de escravos desembarcados no Rio de Janeiro provenientes da costa oriental da África, mais especificamente da Ilha de Moçambique e Quilimane[*4].

No caso específico da África oriental, Florentino infere que ela se consolidou como grande fonte abastecedora do porto do Rio de Janeiro a partir de 1811, ao lado da região de Congo e Angola. Entre 1795 e 1811, segundo dados do autor, a Ilha de Moçambique era responsável por 4,1% do contingente de africanos aqui desembarcados. A partir da abertura dos portos, com o estabelecimento da corte portuguesa no Rio de Janeiro, a exportação de africanos pela costa oriental alcançou um ritmo ainda maior do que as saídas dos portos da costa atlântica. Dentre as hipóteses aventadas por Florentino para tal crescimento, encontra-se a de que o avultamento das exportações de Moçambique e Quilimane denotava a dificuldade dos mecanismos sociais de produção de escravos na zona congo-angolana em responder, de imediato, à grande necessidade de cativos emanada pelo Sudeste brasileiro, em franca expansão urbana das lavouras de café e das plantations de açúcar[*5].

De uma maneira geral, pode-se inferir que até a década de 1830 houve uma entrada massiva de escravos provenientes da zona congo-angolana, ou seja, costa centro-ocidental, de origem Bantu, com um contingente de 81% de todos os cativos desembarcados no porto do Rio de Janeiro sendo oriundos dessa região.

Após 1831, com o desenvolvimento do tráfico ilegal pelo Atlântico, consolidou-se o envio em grande escala de cativos da zona congo-angolana, seguido dos sucessivos desembarques provenientes de Moçambique e Quilimane. Roquinaldo Ferreira demonstrou que para burlar a repressão, o tráfico atlântico, em seu período de clandestinidade, experimentou um processo de dispersão a partir de 1830. Parte dos embarques se deslocou para o norte de Congo-Angola, buscando o refúgio que, segundo o autor, era proporcionado por regiões sem soberania definida, com os portos de Ambriz, Cabinda e a área do rio Zaire. Nesses portos, inúmeros mercadores montaram sua base de atuação e intermediação para o ilícito comércio. Gradativamente, portanto, foram se perdendo os laços com o grande comércio realizado por Luanda e Benguela, tendo em vista que no período de ilegalidade não se faziam mais possíveis grandes embarques[*6].

No Rio de Janeiro, os desembarques também foram deslocados após 1831. As áreas litorâneas como o Norte Fluminense e o litoral sul passaram a ser palco de sucessivos desembarques ilegais, com destaque para os agenciados pela família Breves na restinga da Marambaia, em Mangaratiba. Em relação à fase da ilegalidade do tráfico atlântico, após a lei de 1831, pode-se inferir que Mangaratiba foi uma região inserida nesta prática até, pelo menos, 1854. Estudos recentes abordaram o papel da família Breves na atuação do comércio em escala atlântica, bem como a importância desse trato para o desenvolvimento das lavouras na capitania fluminense ao longo da primeira metade do oitocentos[*7]. Por meio dos registros de embarque e desembarque de cativos, podemos observar a preponderância da região em análise na recepção de africanos para as lavouras fluminenses.

Tabela 1 - Embarques de escravos na África e desembarques no litoral sul fluminense (1800-1850)

* África centro-ocidental (porto não definido) class="materiaText04">** Total de desembarcados no Sul-fluminense referente aos portos de embarque africanos. class="materiaText04">Fonte: Trans-Atlantic Slave Trade database. www.slavevoyages.org. Acessado ao longo do mês de julho de 2010.

A primeira conclusão a que se pode chegar através da análise dos dados acima é de que o movimento de entrada de africanos no litoral sul fluminense foi bastante semelhante ao encontrado no porto do Rio de Janeiro e no Sudeste de uma maneira geral, com uma marcante preponderância do Centro-Oeste africano. No século XIX, essa região era comumente dividida em três áreas principais: Congo Norte (Cabinda), Angola e Benguela[*8].

A importante região conhecida como Congo no oitocentos era definida pela área do Cabo Lopez até a foz do Rio Zaire. Esta recebia muitos aprisionados vindos do estuário de Gabão, que estava localizado ao norte do Cabo Lopez, bem como de toda uma grande área, frutífera ao tráfico, conhecida como do Rio Zaire. Os cativos de toda a grande área do Congo Norte, quando chegados ao Rio de Janeiro, eram conhecidos como Cabinda, ao passo que uma pequena minoria ainda receberia o nome de Gabão. Para o tráfico com o Sudeste, os Cabinda compunham um dos grupos mais numerosos, da mesma maneira que os definidos como Congos e Angolas[*9]. Muitos homens eram recolhidos em diferentes áreas do Congo Norte, inclusive no Gabão, mas eram exportados para a América por este importante porto do tráfico que era Cabinda. Em Mangaratiba, 30% dos desembarcados foram referenciados como procedentes desse porto. Faziam-se presentes também em Mangaratiba os escravos denominados Monjolos e Angicos, oriundos das áreas do Congo Norte. Eles eram facilmente reconhecidos pelas marcas faciais, como apontou J. Rugendas[*10]. A grande quantidade de cativos de Cabinda deveu-se ao fato de os comerciantes da costa do Rio Zaire usarem esse porto como base para suas transações atlânticas.

A preponderância de Cabinda para o sul fluminense se desvenda em seu papel de destaque auferido com o advento do tráfico clandestino no final da década de 1830. Devido à forte pressão e fiscalização britânica sobre os portos que mais movimentavam o malfadado comércio na foz do Rio Zaire e em Luanda, os desembarques se redirecionaram para as áreas mais ao norte[*11]. Regiões como Cabinda, Malemba, Loango e Mayumba ganhariam muito destaque a partir disso.

Outros dois grandes portos de embarque na África eram Luanda e Benguela. Como apontou Mary Karasch, esse contingente de cativos desembarcados no sudeste brasileiro, muitas vezes identificados como Angola, Cassange, Rebolo, Cabundá e Quissamã, possuía imagens positivas dos senhores de escravos cariocas. Foram eles muitas vezes apontados por viajantes como escravos excelentes, que não se revoltavam como os mina e que eram fortes e aptos ao trabalho nas lidas da roça[*12].

Outro grande grupo aportado em Mangaratiba, responsável por 26% dos cativos desembarcados na região, era proveniente da África Oriental. Eram chamados principalmente de Moçambiques, Quilimanes e Ibos. No Rio de Janeiro, os Moçambiques eram valorizados por alguns e desprezados por outros. Quanto às suas qualidades para servir ao cativeiro, eram tidos como bons para o trabalho árduo. Alcançavam preços elevados por serem classificados como inteligentes e mais pacíficos do que os mina, que tinham fama de insubordináveis e, por isso, eram menos valiosos. Os relatos de época geralmente os classificam como feios, ressaltando suas cicatrizes faciais, adquiridas em razão de costumes étnicos[*13]. Os principais portos de embarque dos Moçambiques na costa africana eram na Ilha de Moçambique, em Lourenço Marques, em Inhambane, em Ibo e em Quilimane.

Chama-nos a atenção o fato de que os africanos do leste eram os que tinham de aguentar a viagem mais longa para chegar à América. Provavelmente, em função disso, percebe-se uma maior diferença entre a quantidade de embarcados na África e os desembarcados na costa brasileira. Em Mangaratiba, por exemplo, 7,9% dos que realizaram a travessia atlântica vindos da costa oriental não concluíram a viagem, provavelmente morreram, enquanto apenas 3,3% dos que vieram das áreas ocidental e centro-ocidental africanas não sobreviveram. O valor mais alto dos Moçambiques pode ser explicado também pelo risco assumido pelo traficante que resolvesse comercializar com aquela região, assumindo maiores taxas de mortalidade. Ademais, o deslocamento do tráfico para a costa oriental foi realizado em um momento em que já se marcava uma elevação no preço dos cativos, em decorrência das proibições do tráfico e fiscalizações britânicas.

Pressupostos de uma identidade afro-americana e o Sudeste brasileiro como área de fluxos culturais

Povos de diversas regiões da África, portanto, aportaram no Rio de Janeiro em períodos variados, contribuindo para a formação de escravarias com diferentes origens étnicas. Cabe, no entanto, questionar sobre a representação dessas diferenças demarcadas pelos senhores no seio das hierarquias sociais do Novo Mundo e sobre as suas correlações com os fluxos e refluxos culturais na África. Destacam-se as chegadas recorrentes de afro-orientais e afro-centro ocidentais, todos falantes de língua Bantu. Segundo Robert Slenes, a escravidão nas áreas de lavoura no Rio de Janeiro e em São Paulo, na primeira metade do oitocentos, era quase totalmente africana. Além do maior contingente dos cativos ser oriundo da África, os nascidos no Brasil eram provenientes de famílias compostas por africanos, e criados e sociabilizados em um ambiente repleto de heranças e recordações da outra margem do Atlântico.

Os falantes de línguas Bantu possuíam traços culturais em comum e compunham a quase totalidade dos escravos existentes no Sudeste. Essa constatação vai de encontro a estudos que tenderam a compreender a organização das escravarias salientando as diferenças étnicas entre os cativos como razões possíveis para a inexistência de uma comunidade. O termo malungo, que significava “companheiro de travessia”, foi estudado por Robert Slenes como um dos exemplos de possibilidade de formação de laços identitários entre os cativos antes mesmo da chegada ao Brasil, ao longo da travessia atlântica[*14].

Traçando a significação do termo malungo em algumas línguas de origem bantu, Slenes observou que em umbundu, esse termo, frequentemente, tinha o significado de “companheiro de sofrimento”. Muitos escravos, oriundos não apenas da costa oeste mas também do interior e da costa leste, de acordo com sua argumentação, teriam chegado ao sentido de malungo como irmão/parente. Relacionando o termo malungo à kalunga, que em Kikongo, Kimbundu e Umbundu significam “mar”, Slenes chegou à conclusão de que malungo, no Sudeste brasileiro, significava “companheiro de travessia”, e ainda “para a travessia para uma nova vida”, gerada pela morte branca, de acordo com o jogo de crenças e referenciais culturais da África central-austral[*15].

A significação dos termos assinalados dava-se obrigatoriamente por meio da experiência de cativeiro compartilhada, ou seja, por meio das matrizes culturais reorganizadas e reelaboradas no Novo Mundo, validadas pela conjuntura do cativeiro nas ações cotidianas. Essas questões são fruto de um grande debate acerca do papel das heranças africanas na formação das culturas no contexto da diáspora, demonstrando-se como tema bastante controverso. Seguiremos na observação desses debates para que se possa compreender melhor o papel da cultura e a importância de se remeter à África para a compreensão das relações familiares estabelecidas entre senhores, escravos e libertos.

Foi com base nessas semelhanças linguístico-culturais dos desembarcados no Sudeste brasileiro ao longo do século XIX que Slenes postulou a formação de uma protonação bantu, o que se demonstra muito interessante de se investigar em função dos elevados índices de africanidade. Com a formação dessa unidade no Sudeste cafeeiro, podemos compreender melhor as formas de atuação e estratégias de cativos que permeavam suas visões de mundo.

Outras formas de manifestação de africanidades no Novo Mundo eram os jongos e batuques. Eles são tidos como um lócus privilegiado por alguns historiadores a fim de se compreender elementos de uma cosmologia da África central e sua reestruturação nas fazendas cafeeiras do Sudeste brasileiro[*16]. A utilização de seus pontos como forma de compreender aspectos da cultura africana, manifestados no mundo da diáspora, veio acompanhada do crescimento do conhecimento sobre os povos da África central, graças aos estudos desenvolvidos, entre outros, por Jan Vansina, que já demonstrou a forte unidade cultural que marca essa região[*17].

Os povos da África central, tanto ocidental quanto oriental, guardam estreitas semelhanças em seus pressupostos cosmológicos no que diz respeito à etiologia da doença e do infortuito, tendendo a procurar formas de terapia para se restaurar a saúde, obtendo a fruição em cultos de tambores e aflição, onde ressaltam a música e a dança como formas de cura[*18]. É com base nessas concepções que Slenes chegou à conclusão de que o jongo, dançado e cantado no Brasil, era um fenômeno típico da área centro-africana, tanto da costa ocidental quanto oriental.

Destaca-se ainda a forte noção, enraizada na África central, do ancião como detentor de conhecimento e poder, demonstrando a importância do papel geracional nas famílias, compreendidas então como linhagem. Pesquisas já demonstraram a importância das famílias para o Sudeste cafeeiro, assim como sua presença intergeracional e a organização de cultos de aflição nas fazendas. Todas essas manifestações, não obstante, comprovam o papel de criação, reelaboração e estruturação de fluxos culturais através da prática, da agência cativa, com objetivos, finalidades e resultados dos mais variados. Parte-se do pressuposto não apenas do escravo como sujeito histórico, mas também da cultura como um fluxo contínuo.

O conceito de crioulização e a concepção de cultura em fluxo

Sidney Mintz e Richard Price, no clássico ensaio O nascimento da cultura afroamericana, cunharam o conceito de crioulização ao refletirem sobre a formação da cultura e identidades dos escravos nas sociedades escravistas do Novo Mundo. Para tal empreitada, os autores partiram do pressuposto básico de que a cultura deveria ser pensada diretamente relacionada aos processos sociais nos quais se encontra inserida e é vivenciada, o que os autores denominaram de concepção sociorrelacional de cultura, e que posteriormente seria identificado como as noções de fluxos culturais[*19]. Os autores afirmam que os africanos de todo o Novo Mundo só passaram a ser uma comunidade na medida em que começaram a partilhar uma cultura que eles mesmos criaram. Os sistemas culturais preexistentes na África puderam servir para o processo no qual indivíduos de diversas sociedades forjaram novas instituições no contexto das situações características da escravidão, sem, no entanto, determinarem stricto sensu as ações destes indivíduos nas Américas[*20]. A grande inovação dessa abordagem encontra-se na busca do entendimento dos processos de transformação cultural. O processo de crioulização tem como pressuposto fundamental a própria noção de que nenhuma cultura pode se manter intacta, mas encontra-se sempre em processo de reformulação, tendo em vista os fenômenos sociais pelos quais opera.

Mintz & Price questionam a visão de permanências da África em algumas manifestações culturais nas Américas, argumentando que não há continuidades diretas, mas exemplos de produtos de desenvolvimento e inovações independentes. Tais permanências, desta forma, devem ser analisadas em função das condições básicas em que ocorreram as migrações de africanos escravizados. Os autores acreditam em instituições gerais que foram capazes de unir as comunidades escravas. Tais formas culturais puderam ser forjadas na escravidão, mas não podem ser definidas restringindo-se aos povos ou sociedades cujas origens físicas eram africanas[*21].

O impacto do conceito de crioulização tem sido enorme para os estudos sobre a escravidão e cultura africana, produzindo discussões e duras críticas à Mintz & Price. Uma das problemáticas que mais tem balizado os debates é justamente como se pensa a herança africana. Alguns africanistas acusam os fundadores da escola da crioulização de negarem os vínculos entre a África e suas heranças na diáspora no Novo Mundo[*22]. O africanista Paul Lovejoy sustentou que o conceito de crioulização era eurocêntrico ao enfatizar o quanto a cultura africana havia sido subsumida[*23].

John Thornton, em África e os africanos na formação do Mundo Atlântico, promoveu uma abordagem sobremaneira interessante das trocas culturais entre europeus e as variadas etnias dentro do próprio centro-oeste africano. No entanto, parece que para o caso específico dos africanos nas Américas o autor busca analisar mais as permanências culturais transplantadas pelo Atlântico do que processos de recriação cultural. Thornton critica Mintz & Price, afirmando que eles subestimam o papel das heranças africanas na formação das culturas do Novo Mundo e que postulam uma variedade cultural dos africanos escravizados muito maior do que o que suas pesquisas comprovam. Em sua concepção, os autores sustentam que tal diversidade africana teria funcionado como uma barreira para a construção de uma cultura americana baseada na África[*24].

Percebe-se nesse ponto uma grande distinção entre os autores africanistas e os de orientação da escola da crioulização. Steling Stuckey sugeriu em suas análises a permanência de grandes traços culturais africanos em meio às sociedades escravistas formadas no novo continente. Ao abordar a formação de círculos ritualísticos nos Estados Unidos, percebeu a preservação de fortes raízes africanas abrindo espaço para conjecturações essencialistas em que não figuram diálogos culturais, mas apenas padrões ligados diretamente à África negra[*25].

De maneira diferente de Stuckey, Peter Wade, em interessante estudo sobre os estilos musicais associados aos negros na Colômbia e as concepções de negritude, aproxima-se de Mintz & Price quando, mesmo reconhecendo a permanência de determinados elementos da cultura africana, aborda esses elementos através da pressuposição da existência de transformações inerentes a tais processos. Para o autor, mostra-se fundamental refletir sobre os contextos sócio-históricos, sejam urbanos ou rurais, nos quais se recriaram elementos das culturas africanas[*26]. Consoante a tal perspectiva, encontramos ainda as reflexões propostas por Denis Constant Martin. Por meio das heranças musicais da escravidão, Martin objetiva compreender os processos de crioulização que marcaram os constantes intercâmbios culturais na América do Norte e na África do Sul . O autor se vale dos pressupostos de Édoard Glissant para abordar o conceito de crioulização, definindo-o como o resultado das relações entre diferentes culturas ou vários elementos de culturas distintas em um determinado espaço. Tal crioulização, nessa perspectiva, seria marcada, substancialmente por conflitos e surgido objetivamente a partir da exploração escravagista .

Por meio do que foi aqui brevemente exposto, é possível inferir que cada vez mais ganha espaço a perspectiva transatlântica de pensar o tráfico e as sociedades que se formaram através de diversas matrizes culturais como espaços fundamentalmente marcados pelas trocas simbólicas, em contraposição aos estudos que buscavam enfatizar apenas as heranças africanas como elementos quase que imutáveis não inseridos em um processo de dinâmicas inter-relacionadas à perspectiva social . Nesse sentido, é fundamental que busquemos compreender as manifestações e os processos de criação e recriação cultural que marcaram as escravarias no Sudeste brasileiro. Para tanto, um primeiro e bom passo é termos conhecimento dos grupos, nações, identidades e costumes que aqui aportavam. Esse breve artigo buscou auxiliar na identificação desses principais grupos de africanos aportados no Sudeste brasileiro na primeira metade do oitocentos, produzindo subsídios para a compreensão das manifestações das diversas Áfricas no Brasil.

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Mestrando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense e bolsista do CNPq.
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THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
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MARTIN, Denis-Constant. L´Héritage Musical de l’esclavage. De la creolization à la world music. (artigo inédito para o dossiê tempo 28, em fase de tradução).
Cf: GLISSANT, Édoard. Poétique de La Relation: Poétique III. Paris: Gallimard, 1990.
Pode-se citar como exemplo o trabalho desenvolvido por Paul Gilroy. Cf: Gilroy, Paul. O Atlântico Negro. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001.