Artigo publicado na edição nº 47 de Abril de 2011.
SÃO PAULO DAS ENCHENTES, 1890-1940
Janes Jorge[*1]
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Quem acompanha a história das enchentes paulistanas a partir de fins do século XIX até os dias atuais encontra notáveis continuidades, tanto em seus efeitos destruidores como nas causas que provocam tal fenômeno urbano, respeitadas, é claro, as dimensões da cidade ao longo desse tempo. Há, por certo, rupturas, algumas delas significativas, como o fato da produção de energia elétrica não ser mais fator provocador de enchentes, como ocorreu em grande parte do século XX. O objetivo desse artigo é apresentar e discutir algumas dessas continuidades no período que vai de 1890 até os anos 1940, época em que grandes obras de engenharia ao longo dos rios Tietê e Pinheiros alteraram radicalmente a bacia hidrográfica, dando início a uma outra fase na história das enchentes na região de São Paulo.
Talvez uma das principais continuidades, embora não a mais trágica, seja o colapso que as enchentes provocam no deslocamento de pessoas e mercadorias. Ainda hoje, linhas de trens param de funcionar por conta de alagamentos, provocando situações semelhantes às que ocorreram em 1919. Nesse ano, da estação do Alto da Serra, que depois seria rebatizada de Paranapiacaba, o superintendente da estrada de ferro São Paulo Railway informava à imprensa, por telégrafo, que “devido as contínuas chuvas e enchentes” era impossível restabelecer o tráfego de trens entre São Paulo e Santos, pois, pela manhã, no Ipiranga, as águas haviam subido e interditado 2 quilômetros de trilhos [*2]. Outras ferroviais também interromperam suas atividades, e, não podendo dar expedição às mercadorias recebidas nas suas estações, cobravam para armazená-las, o que provocou protestos dos comerciantes, que teriam de arcar com essa despesa inesperada[*3].
Os trilhos da São Paulo Railway, também conhecida como Santos-Jundiaí, depois de vencerem a Serra do Mar, avançavam sobre a várzea do rio Tamanduateí, em paralelo ao leito do rio, até o centro da cidade, para depois prosseguir até o seu destino final. O traçado da ferrovia, que passou a operar em 1867, procurou evitar a topografia acidentada e zonas edificadas, daí porque buscar a várzea do Tamanduateí, uma longa planura com ocupação rarefeita. Cabe notar que pouco antes da estação de trem do Ipiranga, o Tamanduateí recebia as águas do chamado “rio da Mooca” e, como se nota em mapas do período em estudo, era ali que os trilhos transpunham o leito do Tamanduateí. Teria sido esse o trecho que fora invadido pelas águas?[*4] Talvez sim, mas isso não é possível certificar pela reportagem citada acima.
São Paulo sempre conheceu os transbordamentos dos seus rios e córregos na época das chuvas. Até fins do século XIX, o núcleo central paulistano, no alto de uma colina, ficava em meio às várzeas alagadas dos rios Tietê e Tamanduateí. As cheias causavam alguns inconvenientes, como bloquear caminhos mais curtos para certas localidades, mas, esperadas como as estações do ano, não provocavam grandes tragédias na cidade que evitava ocupar baixadas e várzeas.
Em 1926, o renomado engenheiro-sanitarista Saturnino de Brito lembrava em sua obra Melhoramentos do Rio Tietê em São Paulo que as cheias nem sempre eram prejudicais aos humanos, sendo bastante conhecidos “seus efeitos benefícios para a lavoura, devido à fertilização natural que em certas condições pode ocorrer, como ilustra o famoso caso do Nilo, mas também o da Normandia e outras localidades, inclusive no Brasil, com destaque para Amazonas e Mato Grosso.” Para que as inundações fossem tidas como nocivas, era preciso “que o homem insista em querer ocupar as várzeas inundáveis, ou que as enchentes diluvianas invadam localidades habitadas e nunca dantes inundadas.” [*5]
Infelizmente, em São Paulo, ocorreram as duas situações apontadas por Saturnino de Brito. Isso porque a cidade começou a se transformar radicalmente a partir de fins do século XIX. Ponto de articulação do território paulista, integrou-se ao complexo agroexportador cafeeiro como centro financeiro, mercantil e ferroviário, o que desencadeou um intenso crescimento demográfico: a cidade, que em 1872 possuía 31 mil habitantes, passou a contar 239 mil em 1900. No ano de 1920, quando São Paulo já se consolidara como importante polo industrial do país, eram 579 mil os moradores da capital paulista, número que em 1940 atingiria a marca de 1.326.261 pessoas.
A explosão demográfica, a especulação imobiliária e o desejo de segregação por parte das camadas privilegiadas locais deram início à incontrolável expansão da mancha urbana, que ao mesmo tempo em que engolia as áreas rurais paulistanas, mantinha em seu interior enormes vazios e terrenos ociosos à espera de valorização imobiliária. Surgiram bairros burgueses exclusivos, regiões predominantemente industriais ou comerciais, e, ao povo, relegou-se a periferia distante ou as terras baixas junto aos rios e córregos, numerosos na cidade.
No bairro de Vila Maria famílias trabalhadoras ocupavam a várzea alagadiça de uma periferia distante. Ao longo do século XX, a relação pobres/área de risco/periferia somente aumentou. Na zona central da cidade, os pobres ocupavam as baixadas como a do córrego da Saracura, hoje recoberto pela Avenida 9 de Julho. O Saracura era afluente do Anhangabaú, o primeiro curso d´água da cidade a ser tapado, no ano de 1906.
Assim, entende-se por que o noticiário sobre enchentes se repetia quase todos os anos e retratava, principalmente, regiões proletárias da cidade. O Correio Paulistano, em março de 1902, noticiava que depois de fortes chuvas no bairro do Bom Retiro, junto ao Tietê e ao Tamanduateí,
muitas ruas acham-se transformadas em canais que apresentam um aspecto pitoresco, lembrando as ruas dos bairros populosos de Veneza, com as suas canoas que as percorrem em todos os sentidos [...]. Na rua Luiz Sérgio Thomaz todos os prédios estão inundados e dois deles ameaçam ruir. Numa dessas casas encontraram uma família, composta de Miguel Onarteri, de sua esposa Maria e de cinco filhos, Peppino de 15 anos, Giovanna de 12, Francisco de 7, Giacomo de 6 e Felippe de 3, que se acham quase sem recursos, e como a casa não é muito firme, o dr. Barros (subdelegado do Bom Retiro) deu providência para que sejam recolhidos provisoriamente ao posto policial.
A partir da década de 1920, as enchentes ampliaram seu efeito perturbador sobre o espaço urbano, pois, nessa época, se consolidou a ideia de que “o plano geral das grandes artérias da cidade de São Paulo” se achava “traçado pelas linhas gerais dos seus cursos d’agúa”, conforme afirmava em seu relatório de 1926 o prefeito J. Pires do Rio. Dizia ainda que “já uma grande avenida existe ao longo do Tamanduateí, entre o Monumento do Ipiranga e a Ponte Pequena. Cogitamos atentamente, da grande avenida do Tietê. Serão desses, de futuro, os eixos da cidade, no mapa de sua vias de comunicação [...] Serão essas, cada vez mais acentuando-se o seu caráter, as grandes avenidas dos bairros industriais de São Paulo [...].”[*6] Ao longo do século XX, as avenidas de fundo de vale se multiplicaram, bem como sua ocupação pelas águas.
Acreditava-se, no período, que a montagem e a operação do sistema hidrelétrico da Light – empresa que detinha o monopólio da produção e distribuição de energia elétrica na região de São Paulo e a retificação dos rios Tamanduateí, Tietê e Pinheiros – colocariam um fim nas cheias dos rios, hipótese que não se confirmou, muito pelo contrário. A Light administrava a bacia hidrográfica do Alto Tietê em busca de dois objetivos: o incremento da produção de energia elétrica e a maximização das taxas de lucro, tendo sido exitosa em ambos.
Tal êxito empresarial, entretanto, provocou forte impacto socioambiental e impediu que a administração dos recursos hídricos em São Paulo tivesse como prioridade o combate às enchentes[*7] . Assim, as transformações que ocorriam na bacia hidrográfica do Tietê, a montante de Parnaíba e a montagem e a operação do sistema hidroelétrico na região acabaram por provocar “enchentes diluvianas” que invadiam “localidades habitadas e nunca dantes inundadas”, cujo exemplo maior foi a enchente de 1929.
Mas havia muitos casos em que as enchentes não tinham relação alguma com a forma como a Light administrava os rios e barragens, como, por exemplo, as que ocorriam na região central de São Paulo, no largo do Riachuelo e em toda a baixada do Piques. Durante as chuvas mais fortes, na década 1930 e no início dos anos 1940, o local era invadido pelas águas que afluiam das ladeiras ao redor, interrompendo o trânsito de bondes, danificando automóveis e carroças apanhados de surpresa, com os passantes fugindo apressados para lugares seguros, juntando-se a pequena multidão que então se reunia para observar a fúria das águas.[*8]
Na verdade, o largo do Riachuelo e a baixada do Piques eram o prenúncio de um tipo de enchente que somente aumentaria na cidade, aquela causada por uma drenagem urbana deficiente e pela impermeabilização do solo. Como explica Haroldo Paranhos, engenheiro da Repartição de Águas e Esgotos, no artigo “O problema das enchentes no largo do Riachuelo e a sua solução”, de 1936, no “largo do Riachuelo, reunem-se tres galerias pluviais, que conduzem as águas das baciais do Anhangabaú, Moringuinho e Jaceguay. Estas bacias compreendem toda a área limitada pelos divisores que correm pela Avenida Paulista, Consolação e ruas Vergueiro e Liberdade, com superfície de 415,50 hectares.” Do “largo Riachuelo, ponto de convergência das três galerias, já nomeadas, partem duas coletoras que se desenvolvem pelo Parque e rua Anhangabaú, desaguando no canal do Tamanduateí, nas proximidades do novo Mercado Municipal.” Como “não se esperava no momento em que foram construídas o aumento de áreas pavimentadas, como depois se verificou ao longo dos três vales”, havia “um excesso de vasão nas galerias existentes à jusante do largo do Riachuelo” com o refluxo das águas.[*9]
Para solucionar o problema, segundo o engenheiro, seria preciso retirar das galerias da rua Anhangabaú as “contribuições do Moringuinho e Jaceguay”, que seriam desviadas e enviadas diretamente para o Tamanduateí. O que traria a solução definitiva às enchentes do Piques, “que não só afrontam a grandeza da cidade que é um justo motivo de nosso orgulho, como é uma fonte perene de críticas acerbas que ferem profundamente a capacidade técnica dos departamentos públicos que tem por dever evitar e corrigir os desmandos da natureza”.
Curiosamente, apesar de sua própria explanação provar o contrário, Haroldo Paranhos concluía o seu estudo colocando a culpa das enchentes na natureza. Ainda hoje, no coração da cidade, o vale do Anhangabaú sofre alagamentos.
O fiscal de rios e várzeas
Em 1907, um ato municipal instituiu uma nova regulamentação para o trabalho do fiscal de rios, que, existindo desde fins do século XIX, passou a ser denominado fiscal de rios e várzeas. Entre suas principais tarefas estavam zelar pelo “asseio e desobstrução dos rios e suas margens, cais, pontes, várzeas, balsas e pontos destinados ao embarque e desembarque de materiais”; impedir a alteração do leito dos rios e ribeiros por represas e desvios das águas, bem como que fossem lançados nos rios resíduos líquidos ou sólidos sem licença ou consentimento da administração municipal; não permitir que “os moradores ou proprietários e os confinantes dos prédios, por onde passarem rios e ribeiros” se utilizassem deles para “despejo ou servidão de qualquer natureza”; vigiar os serviços de transporte fluvial e zelar por sua segurança; “orientar o movimento geral das embarcações por ocasiões dos exercícios de remo, regatas e outros divertimentos esportivos” e proibir banhos e exercícios de natação a pessoas que não estivessem “decentemente vestidas ou em lugares impróprios e perigosos” – tarefa que, ao contrário do que parece, não era nada fácil.
Cabia ainda ao fiscal de rios e várzeas prestar serviços “de socorro e salvamento por ocasião das enchentes e inundações, com o fim de garantir a vida e os bens da população ribeirinha” e quaisquer outras “providências e medidas precisas” em casos de “submersão de embarcações, acidentes ou desastres pessoais etc”.
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