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Artigo publicado na edição nº 50 de Outubro de 2011.

A CONSAGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS SAGRADOS NAS FESTAS DO DIVINO ESPÍRITO SANTO:

Dicotomia entre o Sagrado e o Profano


Catiane Matiello [*1]
Gilson Leandro Queluz [*2]

Introdução

O uso da história oral como procedimento metodológico, muito além de objetivar a construção de documentação diante da inexistência de outras fontes, tem ocorrido no Brasil assinaladamente com o sentido de promover uma história a partir do ponto de vista de grupos excluídos das versões ditas oficiais. Esse comprometimento com memórias geralmente silenciadas na história, marcadas por eventos de diversas ordens (material, psicológica, de gênero ou de orientação — política, cultural, religiosa [*3]), traduz-se de forma sensível em uma valorização do indivíduo e de suas experiências nos processos históricos. Esse foi um de nossos principais propósitos ao buscar compreender as representações, os significados e a cultura de resistência construída por famílias desapropriadas pela implantação da usina hidrelétrica de Itaipu, no Oeste do Paraná, acerca desse processo de desenvolvimento tecnológico que marcou suas trajetórias.

Esse foi um de nossos principais propósitos ao buscar compreender as representações, os significados e a cultura de resistência construída por famílias desapropriadas pela implantação da usina hidrelétrica de Itaipu, no Oeste do Paraná, acerca desse processo de desenvolvimento tecnológico que marcou suas trajetórias.

Se no contexto de aceleração do crescimento econômico preconizado pela ditadura militar, baseado na industrialização financiada pelo capital externo, a usina de Itaipu, ao lado de outros grandes projetos de infraestrutura, era considerada fundamental à “segurança e ao desenvolvimento” do país, o que era vivido pelas famílias diretamente afetadas [*4]) contradizia o discurso enaltecedor do governo. Na medida em que a implantação da hidrelétrica ocorria, e assumia os contornos dados pelos regimes autoritários, brasileiro e paraguaio, as práticas da empresa binacional adotadas na região atingida demonstravam uma profunda desconsideração com a população local.

Em 1974, o canteiro de obras já estava sendo instalado, e as informações que chegavam às famílias que seriam desapropriadas eram escassas, de tal modo que estas nem sequer imaginavam que seriam atingidas. Ao longo dos anos seguintes, os(as) agricultores(as) conviveram com prazos de indenização não cumpridos[*5]) , preços considerados inaceitáveis, critérios de indenização obscuros e com a falta de uma política de reassentamento que garantisse minimamente a manutenção de suas atividades econômicas. Isso, somado ao iminente desenraizamento das terras que há poucos anos haviam colonizado e nas quais haviam depositado trabalho, projetos e sonhos, aumentava o temor pelo futuro incerto e a indignação com as injustiças que os estavam vitimando.

Com o auxílio das Igrejas Luterana e Católica e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a revolta contra essa situação ganhou a dimensão de um movimento consciente da necessidade de lutar para que seus interesses fossem respeitados. Após dois anos, o Movimento Justiça e Terra (MJT) conquistou reajustes nos valores pagos e dois reassentamentos em Arapoti e Toledo/PR, marcando a história das lutas camponesas como exemplo e embrião para movimentos de amplitude nacional, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens).

Nas narrativas dos sujeitos que participaram desse movimento, procuraremos observar as práticas e representações criadas pelos agricultores, baseadas em seus costumes, valores e tradições, constituindo uma cultura de resistência frente ao processo de modernização conservadora que a implantação da usina representou.

Narrativas da Resistência

Nossa busca pelas memórias desse processo de resistência iniciou-se em 2009, no âmbito interdisciplinar do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, da UTFPR. Orientamo-nos por uma problemática relacionada aos desafios enfrentados pela sociedade na participação/exclusão do processo de desenvolvimento tecnológico e, metodologicamente, pelos pressupostos da história oral colocados por Meihy. Assim, realizamos onze entrevistas, que partiram de duas redes[*6]. Uma delas foi elaborada conforme as indicações de Werner Fuchs, coordenador da CPT na época das desapropriações e pastor da Igreja Luterana e de Juvêncio Mazzarollo, jornalista que cobriu a atuação do MJT ao lado dos agricultores. Essa rede contou com as entrevistas de Silvênio Kolling, Marcelo Barth e Justino Barth, personagens que ocuparam papel de destaque no movimento dos agricultores. A outra rede, fruto de indicações feitas por pessoas do município de Medianeira, no oeste paranaense, resultou nas entrevistas de Seno C. Lunkes e Hugo L. Heinzman. Juvêncio Mazzarollo e Werner Fuchs, devido à grande participação no movimento, também foram incluídos como colaboradores, por acreditarmos que suas entrevistas pudessem enriquecer a composição da documentação. As esposas dos colaboradores inicialmente indicados, que não haviam sido apontadas nas duas redes, foram incorporadas ao projeto sob uma perspectiva orientada pela valorização de suas experiências e pelo esforço de compreensão das relações entre questões de gênero e sua condição de mulheres do campo. Dentre as mulheres, entrevistamos Deolinda, esposa de Marcelo; Maria, esposa de Justino; Dima, esposa de Silvênio; e Anne, esposa de Seno

As entrevistas foram realizadas sem questionários, de modo livre, pois a intenção era registrar histórias abrangentes no que diz respeito às etapas da vida dos colaboradores, mas pontual em alguns acontecimentos concernentes à especificidade do grupo[*7]. Finalizadas as entrevistas, elas foram trabalhadas em três etapas: transcrição, textualização e transcriação[*8], seguidas de sua conferência por parte dos(as) colaboradores(as).

De modo geral, a maioria das narrativas caracterizou-se pela elaboração de críticas à construção da usina, vista como um marco constituinte da formação de uma cultura de resistência nas trajetórias de vida. Em duas entrevistas encontramos reproduções das visões da ditadura militar a respeito do projeto de desenvolvimento que a construção da usina representava. Como afirmam Holanda e Meihy “o a priori em história oral é sempre uma temeridade” e essas divergências de opiniões somente enriqueceram o projeto ao reafirmarem que a história oral é social na medida em que junta vozes dissonantes.[*9]

A análise das entrevistas nos impôs a realização de escolhas e opções por tratamentos que representaram limites e possibilidades à nossa interpretação. Afinal, lidar com esse tipo de documentação corresponde a trabalhar com uma articulação entre História e vida cotidiana, a encarar o “desnível assustador” da experiência vivida entre pessoas que compartilharam uma mesma época [*10] e a deparar-se com as mais complexas análises e significados construídos pelos sujeitos em sua consciência, a partir de sua experiência cultural.[*11]

Portanto, procuramos trazer à tona a dimensão social constituinte das narrativas, observando nelas a presença de práticas, valores e representações, buscando também compreender os modos pelos quais colaboradores e colaboradoras, em suas comunidades, as constituíram. Dessa forma, a memória da resistência dos(as) agricultores(as) invoca experiências comuns, vivenciadas na aproximação dos interesses e valores identificados à luta contra a forma de ação do Estado. E também revela que elas são organizadas a partir de como cada um dos colaboradores e colaboradoras sentiu e refletiu sobre a experiência de resistência, baseando-se em seus saberes e em sua condição humana, material e política.

Observamos, por exemplo, que narrar a resistência é algo feito a partir de uma distinção de momentos: o tempo em que, diante de um cenário descrito como de desespero, a resistência se condensa na recusa e na indignação e as ações ainda aparecem desarticuladas, sem um sentido de luta coletiva organizada, e um tempo em que se inicia e consolida a luta coletiva, com o desenvolvimento de uma consciência de classe, estabelecimento de reivindicações e organização de ações.

No primeiro momento, os colaboradores relatam que o contexto de incerteza, desinformação e injustiças aumentava o quadro de tensão nas comunidades. Na situação descrita em termos de “desassossego” e de “tormento”, a ideia de que algo precisava ser feito se instalava, mas os colaboradores afirmam que não sabiam exatamente o quê. Como afirmou Marcelo, “a tônica era sempre essa, de ter que fazer alguma coisa, mas não se sabia bem o quê”[*12]. Juvêncio, em sua análise da formação do movimento, também afirma:

[…] no meio de gente que nunca tinha tido experiência de luta contra coisa nenhuma, a não ser contra a seca e o excesso de chuva, ou contra as pragas, ou contra jagunços, mas que de repente se viram em uma multidão de gente com o mesmo problema e que eles tinham que destrinchar o baralho.[*13]

Os agricultores, como eles mesmos analisam, compunham um grupo de pessoas cujas preocupações voltavam-se ao trabalho, sem uma formação direcionada à política. “Eu sabia era trabalhar, colher, comer e pronto” [*14], afirma Silvênio. Mas a prática acumulada de resistências individuais, invisíveis, expressas no cotidiano, bem como sentimentos compartilhados, como a “revolta”, começam a dar lugar ao crescimento de uma consciência de identidade de interesses entre os agricultores das diversas comunidades que seriam atingidas pela desapropriação[*15]. Em documento da CPT, de 1978, encontramos a seguinte transcrição de fala atribuída a um agricultor: “Eu tenho esperança porque acredito em Deus e na minha classe''[*16]. A afirmativa do agricultor é muito representativa de uma tradição de fé cristã e dessa consciência de interesses e direitos comuns a um grupo com experiências compartilhadas no trabalho e nas relações sociais cotidianas. O termo “classe”, para E. P. Thompson, não corresponde a uma “estrutura” ou a uma “categoria”, mas “a algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas”. O autor estabelece uma distinção entre “experiência de classe” e “consciência de classe”, sendo a primeira determinada, em grande parte, pelas relações de produção em que os homens nasceram, ou entraram involuntariamente, enquanto a segunda consiste na forma como “essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais”[*17] . Para Thompson, portanto, a classe operária inglesa não resulta apenas da ação de uma força exterior, como a revolução industrial, sobre um “material bruto, indiferenciado e indefinível de humanidade, transformando-o em seu outro extremo, uma 'vigorosa raça de seres'”. Ela é uma formação cultural, resultado de uma trajetória complexa, vivida em lutas concretas. Portanto, nas reivindicações por direitos individuais e comunitários, contra a autoridade do Estado, observamos a principal forma de reconhecimento de pertencer a uma classe e na união, mediante a resistência, a forma de articular os interesses mobilizados ao longo do processo.

Nesse sentido, a entrada em cena da Comissão Pastoral da Terra e também de igrejas, por meio de pastores e padres, é colocada como um fator determinante pelos agricultores, no auxílio à sua organização. Silvênio compara a criação da Pastoral da Terra, em 1975, no norte do Brasil, a “ganhar na loteria”, dada a importância da formação de uma entidade voltada a auxiliá-los. Marcelo analisa a presença da CPT em sua ação aglutinadora, “amarrando as pontas” dos diversos focos de Foz do Iguaçu à Guaíra, originando uma luta maior.[*18]

Outro ponto das análises elaboradas pelos colaboradores, relacionadas à atuação da CPT, dos bispos, padres e pastores na região, é o destaque à postura de orientação e de formação de lideranças no seio da comunidade, deixando o protagonismo da luta para os agricultores:

E desde a primeira reunião que foi feita com os pastores, padres e bispos, foi deixado claro para si mesmos e para os agricultores que não era a igreja, que não era o bispo ou alguém que iria conduzir o movimento de resistência contra Itaipu, mas eles, os agricultores que deveriam conduzir.[*19]

É interessante observar que os agricultores respeitam e reconhecem na CPT e nas igrejas os interesses e valores comuns aos seus, e é a partir disso que procuravam os pastores e padres para buscar orientações para seus dramas. É, portanto, sobre uma reflexão realizada com base em suas tradições e experiências que eles confiam e participam das reuniões promovidas pelas entidades, e que os aceitam ao seu lado na resistência. A religiosidade é componente fundamental da tradição e vivência cotidiana, e é exposta nas narrativas, por exemplo, quando se utiliza como índice de crescimento da região o fato da comunidade já ser paróquia católica ou já abrigar a residência de um padre, conforme contaram Maria, Marcelo e Justino. Da mesma forma, a redução gradual no número de pessoas presentes nos cultos e missas também é empregada como forma de registrar o minguar das comunidades.

A presença, nas narrativas, da utilização de espaços das igrejas para a organização de reuniões e assembleias, o emprego de expressões ligadas ao universo bíblico para caracterizar momentos da resistência (“muro das lamentações”, “fuga para o Egito”, “Davi e Golias”), a identificação de situações da luta a histórias bíblicas e as referências a eventos como a visita do Papa ao Brasil, compõem um grupo de manifestações que revelam a religiosidade como forma de legitimar, entender e buscar segurança e confiança para enfrentar os “grandes”:

Então na quinta à noite decidiram que iam trancar o escritório da Itaipu na segunda. E o pessoal perguntou: “E a chuva?”. Porque com uma chuva daquelas não saía daquelas estradas de chão vermelho. Daí lembro do Orestes Gasperin dizendo: “Se Deus está com a gente não vai chover, vai enxugar o tempo”. E no domingo parou de chover! Veio um vento e secou as estradas. Tava bonito! Não tinha nem pó![*20]

Portanto, a fé motivava e dava a garantia de uma proteção superior, mas também era experienciada e reintegrada no âmbito de uma consciência de resistência, como nos mostra Silvênio:

Quando você entra nessas lutas, você tem que deixar essas coisas de lado. Você tem que viver aquele Deus e pensar na verdade do que Jesus Cristo fez. Ele não veio pra ser pendurado num templo. Não! Ele veio e assumiu a luta, por isso que ele morreu... tanto é que ele entrou no templo, pegou relho e virou mesa! Se ele fizesse isso hoje, todo mundo chamava ele de vândalo, porque ele fez um trabalho de vandalismo... Mas ele era um revolucionário.[*21]

Outra dimensão do papel das igrejas na forma de luta elaborada pelos agricultores era verificada na escolarização dos colaboradores, uma vez que vários estudaram em seminários católicos ou tem irmãos e parentes próximos formados padres — o que era motivo de orgulho, segundo Juvêncio: “naquele tempo, o seminarista era 'A figura', tinha aquele prestígio, 'Ele vai ser padre!'”[*22] — e na formação de pessoas para ocupar funções dentro das igrejas. Pastor Werner Fuchs, ao comparar a organização do MJT com o início dos trabalhos com as comunidades que dariam origem ao MST, distinguia: “Porque no movimento de Itaipu, a gente tinha ministro de eucaristia, gente culta, que tinha participado de vários treinamentos, de cursos, centros de formação e tudo”[*23]. De acordo com ele, isso facilitou a organização das mobilizações. Marcelo Barth também afirma:

Em 1977, mais ou menos, eu comecei a me engajar mais fortemente na comunidade de Itacorá, que era o ponto central da região e comecei a participar ativamente da organização, da diretoria e também como ministro da eucaristia, participando de cursos e encontros, pra lá e pra cá...[*24]

Esses papéis desempenhados dentro das igrejas, como a função de ministro da eucaristia, significavam assumir uma postura de liderança e de disponibilidade para servir à igreja e à comunidade, experiência que seria levada para o movimento.

Portanto, a partir dos elementos de uma cultura comum, que os identificava, e do vivido, os agricultores foram ocupando seu espaço de luta política, elaborando reflexões e falas para legitimar a batalha e negociar de forma pacífica[*25] . Em cada uma das mobilizações, observa-se o emprego de uma série de estratégias de mobilização, conscientização, comunicação e incentivo. Nas assembleias, por exemplo, os agricultores listavam suas reivindicações, que se transformavam em atas, cartas, manifestos e abaixo-assinados enviados às autoridades e à imprensa nacional. Há inúmeras poesias, contos e cordéis registrando os dramas e as lutas que foram vividos, por vezes, com tristeza, humor ou ironia, mas constituindo-se em espaços criados para questionar o governo. Nos acampamentos, houve a criação da rádio Justiça e Terra — um aparato instalado nos acampamentos, composto de microfone e alto-falante. Além disso, publicações como o jornal O nosso tempo e o boletim Poeira, da CPT, eram reconhecidos como “aliados”. Usando humor e ironia para com o discurso tecnológico de Itaipu, na caixa de som que fazia parte da Rádio Justiça, os agricultores colaram um cartaz que dizia “RÁDIO Justiça — 100% de Potência — com 8.000 Homens kilohörths de fôrça — Situado na rua da Injustiça”. Da mesma forma, Marcelo, ao relatar o episódio de enfrentamento entre os agricultores e o exército, no local que ficou conhecido como “Trevo da Vergonha”[*26] , descreve o seguinte diálogo:

Ele disse que nós não poderíamos ir porque isso seria... como é que ele falou? Ah! Atrapalhar a ordem pública. Mas mais atrapalho da ordem pública do que nós estávamos passando há anos sem poder ter sossego, sem nada! Mas a linguagem e a gramática deles é diferente da nossa.[*27]

Portanto, a apropriação de um argumento utilizado pela empresa também revela a consciência da legitimidade de seus interesses e do uso de uma linguagem vinculada a uma ordem de interesses que não se identifica com a dos agricultores. Acreditamos que essa consciência nasce com e na luta e se verifica também nas narrativas que inserem o processo de resistência num contexto mais amplo: “Você vai aprendendo também, né? Aprende a fazer análise de conjuntura, análise do sistema...”[*28]. Nesta afirmativa de aprendizado, observa-se a resistência dos agricultores formando-se a si própria.

Nesse processo, a organização do movimento estabeleceu práticas para seus encaminhamentos, como a constituição de comissões e assembleias, de modo que as lideranças nunca decidiam nada sozinhas: “Havia a comissão que discutia os encaminhamentos e tal, mas tudo, tudo era aprovado em assembleias. Se Itaipu oferecia um preço tal pela terra, os agricultores diziam 'Vamos conversar com a assembleia, vamos reunir o povo e se concordarem, tudo bem, se não...'”[*29]. Essa característica é analisada pelo pastor Werner Fuchs como uma virtude dos movimentos sociais.

O movimento, por ser uma coisa simples, ao contrário dos sindicatos, com seus nomes “feios” (“quorum”, “ata”, “protocolo”, “estatuto”), permite que as pessoas participem de forma mais ativa: “No movimento é simples. Tem a comissão, se a comissão não funciona, reúne e nomeia outra. [...] É um negócio muito mais chão, muito mais dinâmico. A briga é no aqui, no agora, se o pessoal não tá a fim outras pessoas entram e assumem. É uma coisa muito mais dinâmica, mais fluída, com isso tem condições de penetrar nas frestas do sistema. [...] então essa diferença foi importante da gente descobrir ali.[*30]

Essa característica foi transmitida aos movimentos sociais subsequentes a partir do compartilhamento das experiências pela memória. Alguns dos colaboradores que participaram do MJT participaram da organização de novos movimentos, como nos contou Silvênio:

Na época havia projetos para 25 hidrelétricas no sul do Brasil. Então começou um projeto de barragem no Rio Grande do Sul, começaram outros projetos como a base de Alcântara, no Maranhão [...] não tinha como abandonar a luta, sabe? Porque foi um movimento histórico. Foi praticamente o primeiro movimento de trabalhadores rurais no Brasil [...] Essas lutas trazem muita experiência para fazer outras lutas...”.

Nas narrativas que contam que a luta passou a fazer parte da vida dos colaboradores, observamos que na prática de resistência se firmaram identidades, uma vez que a organização do movimento promoveu novas formas de existir, novas formas culturais a partir da contestação, do engajamento e da solidariedade.

Considerações finais

Se Itaipu se autodenominou como sinônimo de progresso e desenvolvimento, os agricultores que narram a resistência recorrem a memórias de violência e injustiças. Daí a importância de trabalhar com essas falas, que registram as arbitrariedades praticadas pelos representantes do “progresso” e a resistência às forças desse desenvolvimento excludente. As transformações que se processaram tornam-se referências nas memórias dos sujeitos não apenas enquanto avaliação do processo posterior a elas, mas, também, enquanto um novo olhar para o passado. Se o tempo das notícias sobre “Itaipu”, relacionado ao desenraizamento social, é marcado pela desagregação, o tempo do movimento e da resistência é um tempo de sofrimento e dificuldade para homens e mulheres, mas, sobretudo, de aprendizado e de engajamento.

Portanto, observamos que a população diretamente atingida, cujos interesses, opiniões e anseios não foram considerados em momento algum, construiu na organização do Movimento Justiça e Terra uma forma de resistência ao desenraizamento — entendido em sua dimensão moral, de desconsideração dos valores da população atingida e na dimensão de alienação dos agricultores diante do processo de desenvolvimento tecnológico —, quanto de enraizamento. Os agricultores compreenderam que a questão da desapropriação não se limitava ao preço justo, e que, frente a um projeto já definido, era preciso exigir condições que garantissem minimamente a reorganização de suas vidas após a desapropriação. E na orientação às reivindicações e nas práticas desenvolvidas por agricultores(as), os costumes, destacadas a religiosidade e as relações de solidariedade da comunidade, se fazem presentes, sendo articuladas como estratégia e como forma de garantir coragem, estímulo e perseverança para a luta. É a partir do enraizamento que os agricultores e agricultoras reivindicam as condições para manterem seu futuro.

Referências bibliográficas

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MENEZES, Marilda A. de; SILVA, Maria A. M. Migrantes Temporários: fim dos narradores? NEHO-História, São Paulo, n. 1, p. 11-32, 1999.
RIBEIRO, Maria de Fátima Bento. Memórias do concreto: vozes na construção de Itaipu. Cascavel: Edunioeste, 2002.
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______. O termo ausente: experiência. In: ______. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Entrevistas

BARTH, Marcelo. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Itanhangá/MT, 17 jul. 2009.

FUCHS, Werner. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Curitiba/PR, 12-13 abr. 2010.

KOLLING, Silvênio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Garuva/SC, 13 jun. 2009.

MAZZAROLLO, Juvêncio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Foz do Iguaçu/PR, 28 nov. 2009.

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Graduada em História. Mestre em Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE/UTFPR), na linha de pesquisa "Tecnologia e Trabalho".
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE/UTFPR).
HOLANDA, Fabíola; MEIHY, José C. S. B. História Oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007, p. 51.
Cerca de 40 mil pessoas na margem brasileira e 20 mil na margem paraguaia.
Desde 1975, nas primeiras reuniões de “esclarecimento”, o governo federal prometia pagar o que chamava de “preço justo”, estabelecendo como prazo máximo para a indenização o ano de 1980 e afirmando que os agricultores poderiam permanecer na terra “até Itaipu precisar dela”. Em dezembro de 1978 haviam sido realizados menos de 700 acordos que comportaram uma série de injustiças registradas pela CPT (MAZZAROLLO, Juvêncio. A taipa da injustiça: esbanjamento econômico, drama social e holocausto ecológico em Itaipu. São Paulo: Edições Loyola; CPT – PR, 2003. p. 66).
A rede corresponde a um parâmetro que delimita quem será entrevistado. Forma-se por meio de uma pessoa-chave, que indica outros colaboradores para as entrevistas. As diversas redes de uma pesquisa compõem a “colônia”, grupo conceituado a partir de eventos ou características que o distinguem de outros (MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 138).
SANTOS, Andrea Paula dos. Objetividade histórica, subjetividade exposta: o trabalho de campo em história oral de vida com os militares de esquerda. NEHO-História, São Paulo, n. 0, p. 53-70, 1998. p. 62.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 195.
HOLANDA, Fabíola; MEIHY, José Carlos Sebe Bom. História Oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007. p. 129.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. p. 18.
THOMPSON, Edward Palmer. O termo ausente: experiência. In: ______. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
BARTH, Marcelo. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Itanhangá/MT, 17 jul. 2009.
MAZZAROLLO, Juvêncio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Foz do Iguaçu/PR, 28 nov. 2009.
KOLLING, Silvênio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Garuva/SC, 13 jun. 2009.
MENEZES, Marilda A. de; SILVA. Maria A. M. Migrantes Temporários: fim dos narradores? NEHO-História. São Paulo, n. 1, p. 11-32, 1999. p. 21.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Você e as hidroelétricas. Secretariado da CPT do Paraná, 1979, p. 13.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 09-10.
BARTH, Marcelo. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Itanhangá/MT, 17 jul. 2009.
MAZZAROLLO, Juvêncio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Foz do Iguaçu/PR, 28 nov. 2009.
FUCHS, Werner. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Curitiba/PR, 12-13 abr. 2010.
KOLLING, Silvênio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Garuva/SC, 13 jun. 2009.
MAZZAROLLO, Juvêncio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Foz do Iguaçu/PR, 28 nov. 2009.
FUCHS, Werner. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Curitiba/PR, 12-13 abr. 2010.
BARTH, Marcelo. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Itanhangá/MT, 17 jul. 2009.
RIBEIRO, Maria de Fátima Bento. Memórias do concreto: vozes na construção de Itaipu. Cascavel: Edunioeste, 2002. p. 34.
No dia 16 de março de 1981 os agricultores decidiram marchar até o escritório da Itaipu Binacional, em Foz do Iguaçu. Chegando no trevo que distribuia o acesso às obras da hidrelétrica, ao centro da cidade e ao Paraguai, os agricultores foram impedidos pelo exército de seguir adiante. Como solução, decidiram montar acampamento ali onde ficaram por 54 dias, conquistando aumento no preço da terra.
BARTH, Marcelo. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Itanhangá/MT, 17 jul. 2009.
KOLLING, Silvênio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Garuva/SC, 13 jun. 2009.
MAZZAROLLO, Juvêncio. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Foz do Iguaçu/PR, 28 nov. 2009.
FUCHS, Werner. Entrevista concedida a Catiane Matiello. Curitiba/PR, 12-13 abr. 2010.