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Artigo publicado na edição nº49 de Agosto de 2011.

ÁFRICA / BRASIL: materialização das leis nas escolas de Natal/RN

Olga Suely Teixeira[*1]

Uma breve introdução

Em uma época em que a palavra de ordem é globalização, parece estar acontecendo um “descobrimento” da África por parte de todos os outros continentes, mesmo que, nesse âmbito global, quando se menciona a África, a referência não parece ser feita a um continente, e sim a um país; é esquecida a heterogeneidade de culturas, pensamentos e construções sociais.

O desconhecimento sobre o Continente tem causado, ao longo do tempo, um distanciamento no que diz respeito à sua História e Cultura, fenômeno reproduzido no Brasil que, mesmo tendo sido construído a partir do trabalho forçado e do comércio humano do negro, é herdeiro do desinteresse pela sorte desse povo. No Brasil Colônia, eram diferentes envolvidos em uma relação sociopolítica que deixaria profundas sequelas.

Hoje, são grupos que criam mundos diferentes, onde quem pode mais privatiza direitos básicos como segurança, saúde e educação.

Os diferentes mundos do Brasil e sua relação com a África: o cenário educacional

Até pouco tempo, o país vivia uma (in)existência velada de temas africanistas; os negros apareciam nos livros didáticos para ilustrar a expansão mercantilista e o escravismo, mas não estavam nos livros de literatura, ou representando famílias felizes e bem sucedidas e, tampouco, nas histórias de faz de conta, no papel de heróis. A partir dessa problemática, observava-se um drama de duas facetas: o estudante afrodescendente ficava traumatizado por questões étnicas no ambiente escolar iniciadas já no material pedagógico, e o estudante de outras descendências perdia a chance de conhecer uma cultura que possui seus próprios reis e rainhas, perpetuando a eterna mítica dos soberanos loiros e rosados.

Era a desinformação completa e o silêncio constrangedor que guiavam a relação entre a educação brasileira e o continente africano.

O silêncio diz muita coisa: historicamente o continente é visto invariavelmente como o fornecedor de escravos. Hoje em dia urge suprir as muitas falhas referentes ao ensino da dinâmica Histórica da África e de diferentes abordagens da cultura negroafricana além das relações daquele continente com as Américas e não só com o Brasil [...]. A idéia de uma África a-histórica provocada pela colonização européia, infelizmente, ainda é predominante no nosso país.[*2]

O cenário desenhado era, por vezes, desolador. Estudantes que não aceitavam investigar temas específicos da História da África, coordenadores pedagógicos que viam esse trabalho com desconfiança, professores que não sabiam o que ensinar. Mesmo a pesquisa de temas ligados à África nos círculos acadêmicos era incipiente e na maioria das vezes não chegava sequer às próprias salas de aula de nível superior. Havia, então, certo caos educacional.

Ao encontro desse quadro, foi aprovada a Lei n° 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e descortinou, frente à necessidade urgente de mudanças no currículo, uma realidade em que o professor se depara com a precária formação, o material didático compartimentado e o descaso das próprias instituições de educação — que insistem em ignorar os fatos históricos e as leis.

Contemporaneamente, há uma grande confusão quando se pensa em como fazer a lei sair do papel. Projetos individuais ou coletivos têm sido desenvolvidos em diversas escolas, mas ainda há muito por se fazer para que a determinação governamental não caia no esquecimento, como aconteceu com a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), que já mencionava a “Pluralidade Cultural” como elemento a ser trabalhado de forma transversal em todo o processo de ensino-aprendizagem, pois apesar de se ter consciência de que a educação não pode resolver tudo sozinha, ela possui uma grande relevância na discussão sobre questões raciais e identitárias.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais para a área de História [...] destacam os compromissos e as atitudes de indivíduos, de grupos e de povos na construção e na reconstrução das sociedades, propondo estudos das questões locais, regionais, nacionais e mundiais, das diferenças e semelhanças entre culturas, das mudanças e permanências no modo de viver, de pensar, de fazer e das heranças legadas por gerações.[*3]

Enfim, o que se tem de concreto? Decorridos tantos anos da aprovação da Lei, que caminhos percorrem pesquisadores e educadores brasileiros para construir propostas viáveis no que tange ao ensino da História da África nas escolas nacionais?

Segundo Viana[*4] , alguns profissionais sequer tratam da questão; outros abordam a temática após apontar uma série de dificuldades; e alguns poucos enfrentam o fato de que é necessário fazer esse “descobrimento” da África, para que se possa combater o racismo e a discriminação, transformando a trajetória dos afro-brasileiros em práticas inclusivas de resultados positivos. Aqui, a opção pelo conceito de afro-brasileiros em detrimento de afrodescendentes ocorre por se considerar, na discussão sobre o espaço escolar, não o conceito étnico, mas o território onde esse grupo constituiu uma identidade que influenciou e foi ao mesmo tempo influenciada pelos locais.

Para os docentes comprometidos, o trabalho é complicado, uma vez que analisando o Projeto Político Pedagógico das escolas percebe-se que há, no quotidiano escolar traçado por esses documentos, intenções de tratar a questão racial, mas eles não revelam pedagogias que devam ser implementadas na prática.

Investigando a realidade local

Diante de todas essas constatações, surgiu-nos um questionamento pertinente ao universo escolar da cidade de Natal/RN, uma vez que nesse estado a questão africana era, até algum tempo atrás, tida como irrelevante, raciocínio justificado por argumentos como a escassa presença negra no Rio Grande do Norte, ou a chegada tardia da população escrava por aqui. Realizou-se, a partir desse questionamento, um trabalho de pesquisa que se propôs a descobrir como as escolas da cidade estavam materializando o que era exigido pela teoria das leis.

O primeiro passo para responder à questão foi realizar um trabalho de leituras exploratórias, que abrangeram desde a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) até textos produzidos pelos movimentos sociais que discutem a problemática negra no Brasil; depois, foi realizado o trabalho de campo, no qual pode-se observar que a maioria das escolas da cidade ainda não trabalham o tema como a Lei exige. Quando muito, dão destaque ao 13 de Maio e ao Dia da Consciência Negra, num tom bem mais obrigatório do que formador.

Foram encontradas escolas onde a questão negra e o estudo da África são levados muito a sério, mas que encontram barreiras nas velhas questões, como a ausência de formação docente específica — na maioria dos casos, os professores não conseguiam combater o racismo em suas salas de aula por sequer se aperceberem dele— e o material didático, que deve ser pesquisado e compilado pelos próprios docentes.

Nas duas instituições destacadas neste artigo, a iniciativa de trabalhar temas africanistas parte de alguns de seus próprios educadores, que incluem em seus planos de ensino conteúdos e metodologias que lhes permitam essa abordagem.

Numa tentativa de desalienar seus Projetos, as Escolas em questão, no ano de 2010, inseriram o tema África em Projetos Didáticos Interdisciplinares, com subtemas que contemplavam todas as séries, o que demonstra que a sociedade deve se dispor a auxiliar na execução das leis aprovadas pelas instâncias governamentais, pois assim elas serão implantadas de forma significativa, com a participação e esforço de todo o país.

Ambas as escolas davam um bom exemplo de esforço e superação de dificuldades, se destacando na tentativa de abordar, em sua prática letiva, a diversidade étnica e racial e de levar em conta que raça e cor são influências reais; elas tentavam estar aptas a (des)construir (pre)conceitos de uma forma adequada à atual época de mudanças universais.

O nível social e a porcentagem de alunos negros são diferenciados nos dois campos de pesquisa. Na Escola A (Impacto Colégio e Curso) os alunos pertencem à classe média alta, e os alunos negros chegam a pouco mais de dez por cento; na Escola B (Colégio Essencial) os alunos possuem níveis sociais entre classe média e classe média baixa, e os alunos negros representam quarenta por cento do quadro discente. A coleta desses dados foi relevante à medida que se torna necessário observar para quem estão sendo feitas essas mudanças curriculares.

Também é interessante observar a forma como as escolas têm subsidiado seu corpo docente para que realize o trabalho com a temática africana. A Escola A concentra esse processo na figura do professor; a Escola B congrega toda a equipe para descobrir conteúdos, metodologias e as melhores formas de atuação junto aos alunos para a construção desse conhecimento.

O material utilizado pelos docentes também é diversificado e segue praticamente o mesmo padrão nas duas escolas. O trabalho é feito com textos didáticos compilados de várias fontes e inclui materiais alternativos como revistas em quadrinhos, cordéis e jogos.

Impacto essencial: a materialização da Lei n° 10.639/03

Quanto aos Projetos Didáticos Interdisciplinares observou-se que foram organizados em torno de objetos de estudo diferenciados. A escola A teve como tema “A África está em nós, uma homenagem às comunidades quilombolas do RN”, subdividindo-se em resgate das músicas e brincadeiras infantis das crianças africanas, em intercâmbio com a Comunidade de Capoeira dos Negros em Macaíba/RN (educação infantil); resgate da culinária, danças e crenças na África, em intercâmbio com os Negros do Riacho em Currais Novos/RN e com a Comunidade de Macambira em Lagoa nova/RN (ensino fundamental); e “A África, esporte e lazer”, em intercâmbio com a Comunidade Boa Vista dos Negros em Parelhas/RN (ensino médio).

A Escola B trabalhou “De onde viemos? Onde estamos? Para onde iremos? Uma viagem às nossas raízes africanas”. O tema foi subdividido em contos e lendas da África, estudados pela educação infantil; alteridade, aspectos gerais do continente africano e pontes entre África e Brasil, investigados no ensino fundamental I; e reflexões sobre as questões raciais, vistas no ensino fundamental II.

Os Projetos foram trabalhados ao longo do primeiro semestre de 2010 e encerrados em eventos culturais no mês de junho, com o objetivo de partilhar com os pais e a comunidade em geral os resultados das pesquisas desenvolvidas pelos alunos.

Ao observar o que está acima exposto, chega-se à resposta do questionamento inicial: os dois universos educacionais tentam, à sua maneira, contornar uma gama de fatores contrários à implementação das leis sobre as questões ligadas à relação África/Brasil; materializam essas leis integrando os conteúdos e saberes da História e Cultura africanas, com o propósito de valorizar a identidade e a autoestima dos seus alunos negros, e proporcionar aos alunos de outras matrizes o conhecimento que acaba com a estranheza à cultura dos colegas.

Possibilidades

Confrontando a opinião dos especialistas com a realidade, e buscando informações atualizadas a respeito do tema, percebe-se que há indícios de que a sociedade não está paralisada, esperando apenas pelas atitudes das instâncias governamentais. Há ainda, é claro, uma parcela que resiste à proposta da legislação, mas o esforço de algumas instituições — não só no nível básico de ensino, mas também no nível superior — em proporcionar a formação correta aos seus alunos revela sinais de uma mudança em curso.

Essas transformações se realizam quando do estabelecimento de programas de formação continuada por parte de órgãos da administração pública, além da ocorrência de uma renovação dos livros didáticos; vê-se também a realização de um maior número de eventos acadêmicos destinados a contribuir com esse universo temático.

Resta ainda, para que a transformação realmente ocorra no cenário educacional, descobrir como incorporar todos os saberes adquiridos/estampados nesses veículos de divulgação do conhecimento ao quotidiano da sala de aula, ressignificando termos e matizes da História e Cultura africanas. Assim, será trazida à luz de uma nova relação a importância da África na história da humanidade. Um caminho para a positivação desses objetivos seria ouvir os profissionais envolvidos no processo quanto às suas necessidades para lidar com os temas propostos.

Por enquanto, algumas possibilidades têm sido colocadas em prática, demonstrando que o trabalho não é impossível e que, com um pouco de disposição e boa vontade, não seria sequer necessário uma lei que tornasse obrigatória a presença desses temas nos currículos das escolas brasileiras.

Referências bibliográficas

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LAUREANO, Marisa Antunes. O ensino de História da África. Revista Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 44, p. 333-349. jul/dez. 2005.
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MUNANGA, Kabenguele. Superando o racismo na Educação. Brasília: MEC, 2000.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A História africana nas escolas brasileiras: Entre o prescrito e o vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006). História, v. 28, nº 02, p. 143-172, 2009.
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Graduada em História pela Universidade Potiguar – Natal/RN e aluna da Pós-Graduação em História do Brasil na mesma instituição. Professora da rede particular de ensino e pesquisadora de temas ligados às questões educacionais brasileiras. Contato: suely.olga@yahoo.com.br.
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