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Artigo publicado na edição nº 53 de Abril de 2012.

A MODA COMO HISTÓRIA

Luciana Andrzejewski[*1]

Quando falamos sobre Moda e História, não podemos cair na armadilha de uma simples descrição linear sobre a história da moda. A moda precisa ser pensada como objeto representativo da história.

Abordar o tema “moda” não implica, necessariamente, falar sobre roupa. Podemos falar sobre moda sem mencionar uma peça específica, sem descrevê-la ou falar sobre o tecido. A moda é um sentido geral, é a adoção de uma postura, apreensão de uma realidade, de um comportamento, de uma identidade.

Outra coisa a que precisamos ficar atentos é que moda e roupa são partes diferentes de um único objeto: enquanto a roupa se inscreve nas preocupações da sobrevivência, a moda é uma construção, uma intencionalidade da modernidade.

A roupa marca, representa e comunica algo. Considerando o contexto e os dispositivos de uma época, permite a produção e a compreensão do cenário, configura uma linguagem específica, e, por fim, a percepção de uma encenação da realidade – um vir a ser. No entanto, a apreensão dessa informação só pode ser compreendida por quem se envolve ou se identifica com o seu sentido – sentido este que deve ser considerado historicamente.

As considerações devem ser feitas pelo entendimento histórico do processo, ou seja, cores, formas, materiais, momentos e modos, onde e como se deram os indicativos, expectativas e respeito às regras sociais, culturais e religiosas de um tempo. Deve-se considerar que significados ou sentidos são construções e que não existem a partir de um nada ou de vontades individuais; são processos sócio-históricos e resultam e exigem complexas e tensas negociações, ações coletivas dotadas de objetividade e partilhadas pelos atores e projetos envolvidos. Trata-se, portanto, de uma face do mercado simbólico, em que a negociação é o traço permanente e fundamental. E, também, como os atores e projetos sociais não ocupam o mesmo espaço de poder ou lugar social, essas diferenças são responsáveis por estratégias sociais específicas ao peso que eles dispõem.

Por exemplo: para os egípcios, o branco representava pureza – quanto melhor o linho maior seria o reflexo da luz do sol (considerado um deus) –, e a cor vermelha, para os romanos demonstrava poder e prestígio social. O que deduzimos dessa informação é que os sentidos podem permanecer ou assumir outras possibilidades em cada cultura ou em cada tempo. As roupas da antiguidade e as de atualmente trazem as influências da racionalidade e do espírito da época que representam, e os materiais trazidos de diversas regiões introduzem cores nas roupas e novos processos de produção, gerando, assim, novos sentidos para as mesmas finalidades.

Do ponto de vista do processo histórico, as mudanças ocorrem com maior frequência e intensidade a partir da segunda metade do século XVIII. A partir daí, a moda é uma referência constitutiva do capitalismo e do modo de distinção social. A cultura das luzes produzia um novo sujeito.

Foi a partir do século XVII que a França, que contrastava com o puritanismo inglês e com a lógica protestante, começa a se colocar como grande produtora de moda. Surgem as primeiras publicações especializadas no assunto. Luís XIV começou a utilizar a moda para fins políticos, pois a superioridade era estabelecida através da moda e o prestigio da nação se baseava em sua aparência e em seu comportamento. O monarca parece ter sido o primeiro a assimilar que a aparência poderia ser utilizada para transformar a sociedade – no sentido de neutralizar as forças de resistência e definir quem teria as condições ou possibilidades para se aproximar e exercer o poder e o controle social. Mas o que se vê, logo em seguida, é a decadência da nobreza francesa devido à política centralizadora do rei.

Pulando para o século XIX, houve uma mudança radical. Aprofundou-se a era da indústria, do trabalho e do dinheiro, que pôde ser refletida nos ternos pretos, sinal do posicionamento contra o mundo da aristocracia. As mudanças nas vestimentas, o princípio da sobriedade e descrição e o uso de cores “neutras” redefinem a estética e a ideia de prestígio social. No mundo dos homens sóbrios, discretos e vestidos em roupas funcionais, somente as mulheres mantiveram a tradição da excentricidade, das cores, do volume e do exibicionismo, uma vez que eram confinadas a uma vida privada em suas residências. Na verdade, os estudos historiográficos demonstram que existe uma relação: a ociosidade de uma mulher era proporcional ao sucesso financeiro de seu marido.

Na segunda metade do século XIX, a moda foi reinventada, contribuindo para algo novo e diferente. A sociedade de massa começava a se constituir e a cidade adquiria novo sentido para o desenvolvimento da produção e da dominação social. Como podemos perceber, a moda não é uma decisão ou intervenção tomada por indivíduos ou grupos. Ela é uma construção, uma interferência objetiva e estimulada no mundo social e comportamental, uma intervenção externa e intencional valorizada na perspectiva sobre o passado, empenhada em superá-lo, e que remete a uma interpretação do presente e do futuro.

E era neste ponto em que eu queria chegar, no período que ficou conhecido como "Belle Époque", mais especificamente no período da gestão de Pereira Passos, prefeito na cidade do Rio de Janeiro, então Capital da República, no início do século XX, onde os meios de valorização da cidade, tanto nos aspectos arquitetônicos como na vida privada de seus cidadãos, foram expostos e exibidos na busca de um objetivo comum, de "homogeneização". Em que o microcosmo da representação, seria mais tarde, a recém-inaugurada Avenida Central, onde o “mostrar” se tornaria uma prática válida na configuração política, econômica, cultural e, sobretudo, social da cidade. Isso nos permitiria afirmar que a moda faz política quando instaura a ameaça permanente do novo nas formas, nos materiais, nos desejos, nas linguagens e nos comportamentos. A moda encaminhou a mudança nos indivíduos e nos grupos, nas subjetividades e nas relações e comportamentos sociais, enquanto as reformas garantiam a continuidade dos interesses, estratégias, alianças e modelos relacionais e o fortalecimento do Estado e das instituições no controle, na disciplina e na hierarquização da sociedade.

A ideia de "Belle Époque", no Rio de Janeiro do início do século passado, não traduz no espaço e nas relações sociais o mesmo processo vivenciado na França. Trata-se de um termo que amplia uma ideia, não se refere a um estilo de época ou de um modo de olhar o mundo e as relações sociais, culturais e estéticas. Elas certamente foram observadas, mas as condições históricas e o entorno inviabilizaram a ideia de cópia ou reprodução de um conceito. O imaginário social e a produção de projetos sociais estavam orientados por referências externas. A liderança de Pereira Passos e a presença de Oswaldo Cruz e Paulo de Frontim no planejamento e desenvolvimento das ações permitiam a crença na seriedade do investimento, reunindo competência e liderança de suas áreas e experiências de estudos e trabalhos na Europa, que vivia processos de reordenação dos espaços urbanos. No entanto, sempre existe, por trás de qualquer ação de mudança plena, a questão cultural, própria do espaço geográfico e social, em que essas ações estão sendo promovidas.

O Rio de Janeiro era mais que um espaço geográfico, social e político-administrativo, onde se situava o centro do poder; era também o espaço do imaginário e das diferentes representações sociais sobre o urbano e o modelo social importado dos centros do capitalismo. Era um ideal presente em diferentes discursos, uma cidade imaginada por poetas, escritores, compositores, artistas plásticos, políticos, intelectuais. Tratava-se de uma cidade ideal na produção de uma alternativa de mudança. Neste sentido, algumas realidades e situações eram desconsideradas ou secundarizadas nos discursos e representações, principalmente para os grupos mais populares. Um grupo cercado por tensões e contradições, num cenário hostil dominado por “máquinas” políticas e econômicas.

Esse projeto de reformulação do Rio de Janeiro no início do século XX dizia respeito a um conjunto de intervenções realizadas ou estimuladas pelo Estado e suas instituições, em diferentes instâncias, equipamentos sociais e relações, objetivando inserir o Brasil num novo eixo de dominação que se viabilizava na Europa, desvinculando-o do seu passado colonial e área subordinada a Portugal.

A moda, o modo de vestir e de se comportar dentro deste contexto serve como elemento irradiador para demonstração de poder, status e comunicação. A roupa, ao articular o corpo biológico com o ser social, o público com o privado, permitiu reconhecer a linguagem da moda como objeto de estudo para desvendar e entender o aspecto da história de um determinado período.

Como historiadora, procurei acrescentar, na época em que comecei a realizar esta pesquisa (1999), uma maior diversificação no uso das fontes. Busquei fazer uso das plantas arquitetônicas, dos discursos políticos e jornalísticos, das fotografias e principalmente das roupas encontradas em museus e em coleções particulares para um estudo mais efetivo e menos distorcido pelas generalizações excessivas tão comuns em histórias da moda.

A ligação entre História e Moda ocorre porque a roupa está intimamente ligada à história do homem. Segundo Bloch, a História é a ciência dos homens no tempo, já a moda é um dos mais sensíveis indicadores do peculiar “espírito do tempo”, que constitui a base de toda a valoração estética e crítica de um determinado período histórico.

A História está, mal ou bem, ligada a um tempo, mas não presa a ele. A Moda é um aparente paradoxo em que o novo refere-se e dialoga com o antigo. A moda possui uma história, mas ela se nega ao mecanicismo das pretensões evolutivas ou de continuidades.

A história do homem atua no tempo, melhor dizendo, no seu tempo. Essa relação entre homem e tempo deixa exposto que o homem é um ser transitório, temporal e está sujeito a transformações, já a moda é um fenômeno transitório (um fenômeno produzido para ser transitório), tenta sempre fugir do passado, mas acaba, desta forma, por criar o seu próprio passado.

Bloch diz que cada homem atua no seu mundo do seu modo e que as histórias de vida determinam o construir da História. As relações constituem o espaço onde novas relações são sucedidas. O modo globalizante com o qual a história envolve os homens deixa de forma bem explícita que as individualidades são mundos pertinentes a ela.

No Brasil, o Estado e as instituições de controle e regulação não conseguiram deter a capacidade mobilizadora e inovadora da moda, que, como comportamento, linguagem e ideal social, estético e relacional, encontrou no projeto reformista de Pereira Passos o lócus da sua afirmação. Os jornais reúnem um importante acervo de informações sobre a moda, e as fotografias que a apresentam – como vestimenta, principalmente – não deixam de estabelecer uma relação entre o belo, o novo e o espaço urbano.

A moda foi e é uma preocupação e uma presença constante no cenário brasileiro e do seu cotidiano, ao menos no meio urbano, numa sociedade que ganha complexidade em colocar-se face ao mundo capitalista e relações internacionais intensas. Para além do seu sentido estético e funcional, a moda constitui-se como parte de uma lógica empresarial, objeto científico e social valorizado a partir dos anos 50 e transformada em objeto de análise das ciências sociais nos anos 60.

Moda não diz respeito aos trajes e elementos que compõem e se repetem no uso contínuo, trata-se de roupas que veiculam e produzem diferentes sentidos, expectativas, efeitos simbólicos e comportamentos. Ela nos faz refletir sobre as várias questões envolvidas sobre o comportamento humano e nas relações com o contexto.

A indumentária ocupou um lugar estratégico no imaginário social. Trata-se, no Brasil, nesta conjuntura, de um tema essencialmente urbano. Os estudos demonstram que ela atravessa diferentes grupos e classes sociais. A roupa/moda é uma linguagem cultural e social importante para a compreensão da época e da condição de gênero. A moda e os hábitos que ela cultiva são imposições de um sistema de distinção e prestígio social, ela remete à ideia de relações sociais, de partilhamento, de comportamentos e de identidade social.

Moda é, neste caso, uma intervenção que organiza e hierarquiza o mundo e as relações sociais; é uma linguagem de um grupo e de uma época, materializa e oferece sentido aos sujeitos históricos e materializa um estilo de ser e de estar numa sociedade. Deve ser enfatizado que a moda não consegue ser privativa de um grupo. Ao tornar-se pública, ao ganhar as ruas, ela pode ser partilhada por outros grupos ou sofre uma releitura. A Moda converte/opera/valoriza uma “distância” entre os sujeitos, e ao realizar tais processos ela significa e resignifica os sentidos (relacionais).

Nosso olhar, no início do século XXI, coloca para os atores comportamentos, estética e situações da época, elementos que são próprios e significativos para o nosso tempo. Olhamos para os anos dez com os olhos imaginários, representações, desejos, projetos, expectativas, preocupações e fantasias dos nossos dias.

A vestimenta e a moda estão no nosso imaginário e encontram respaldo nas obras de arte e na cultura de massa. Qualquer um possui uma imagem dos anos vinte e dos anos sessenta, imagens e representações viabilizadas pelas artes e pelos meios de comunicação. Na memória dos anos dez/vinte o charme das mudanças não seria completo se a figura estigmatizada do Jeca Tatú andasse pela Avenida Central. Lá era um espaço europeu e elitista do Rio de Janeiro, um espaço de/para poucos, daí as fantasias e as interdições. Um espaço que marcava e permitia a existência e a convivência de posições privilegiadas e que reforçava a hierarquia e o controle social. Recuperar/reescrever/analisar a memória da moda, a moda nas representações sociais e no imaginário social é resignificar um tempo e os atores sociais que construíram uma conjuntura.

Referências bibliográficas

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JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, 2005. 03/03/1910
O BRAZIL ELEGANTE: jornal de modas das famílias brazileiras. Rio de Janeiro, 2005. Localização - PR-SOR 2333, 1894-1904.
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Historiadora da Rede Globo e Mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Atua na área da História Cultural com ênfase em abordagens multidisciplinares. Em sua pesquisa, os assuntos mais frequentes são: História, Memória e Moda. E-mail para contato: luciana.andrzejewski@tvglobo.com.br.