:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 54 de Junho de 2012.

O MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO: reparação simbólica e ações preservacionistas

Julia Cerqueira Gumieri[*1]

Os “espaços de memória” são hoje espaços públicos resultados de políticas de memória empreendidas em torno da temática das necessárias reparações às vítimas e à sociedade pelos crimes cometidos pelas recentes ditaduras, tanto na América Latina como em outros lugares do mundo. De modo geral, a proposta social destes lugares [*2] é estabelecer um vínculo entre as experiências do passado e da vida cotidiana atual; proporcionar conhecimento a respeito do que se sucedeu, por via da documentação histórica recolhida, atribuindo destaque aos testemunhos e, por fim, promover ações que colaborem para a sensibilização da importância do exercício da cidadania, da democracia e do respeito aos direitos humanos (pilares da organização dos “espaços de memória”). Tais espaços, por meio de iniciativas de preservação patrimonial, pesquisa histórica, artística e cultural, incorporam a noção de memória individual e coletiva em seus objetivos sociais e políticos de transmissão de mensagens à posteridade. Nos termos de Elizabeth Jelin, as memórias coletivas serão resultados das lutas políticas dos “empreendedores de memória” no sentido de tornarem suas demandas públicas e legítimas, constituindo-se focos das políticas de memória atuais. Por essa heterogeneidade de atores políticos, os espaços de memória deparam-se sempre como a possibilidade de “un futuro abierto para nuevas enunciaciones y nuevos sentidos”[*3] .

O Prédio do DEOPS

Parte arquitetônica do conjunto ferroviário da The São Paulo Railway no centro histórico de São Paulo, o edifício foi construído em 1914 no Largo General Osório, nº 66, também conhecida como Estação da Luz, sendo reformado em 1939 para abrigar o DEOPS, que funcionou neste endereço até sua extinção, em 1983 [*4] .

Criada em 1924 e regulamentada em 1928 , a Delegacia de Ordem Política e Social, posteriormente denominada Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – DEOPS/SP , foi instituída como parte do aparato administrativo-legal de vigilância, controle e repressão do governo em contenção ao crescimento do anarquismo, do movimento operário de greves gerais (1917) e da fundação do Partido Comunista Brasileiro – PCB (1922). Concomitantemente à criação, em diferentes estados, destas forças policiais especializadas em crimes políticos – os DOPS (no caso de São Paulo, o DEOPS) –, leis federais foram sancionadas para coibir crimes dessa natureza, como a primeira Lei de Segurança Nacional (LSN) brasileira, aprovada em 1935. As modificações na estrutura estatal evidenciavam as mudanças na atuação do Estado como agente de controle social.

Uma das principais atribuições do DOPS era desempenhar a função de polícia política, uma modalidade específica de polícia com funções preventivas e repressivas, conservando a sociedade afastada de conflitos sociais de origem popular e operária, mantendo assim a suposta “ordem político-social”. Executavam prerrogativas de uma polícia judiciária [*5]assim como faziam uso de práticas violentas e ilegais, além da produção e armazenamento de informações. Os alvos da ação desta polícia variava conforme mudanças na conjuntura nacional e internacional, mas suas atividades estiveram sempre ligadas ao policiamento de setores considerados perigosos pela ordem vigente por meio de práticas de controle, vigilância e repressão. O DEOPS/SP serviu tanto ao período de autoritarismo do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), persistindo no período democrático (1945-1964) e sendo fundamental durante o regime militar (1964-1985), quando, incorporando estratégias militares devido ao enfrentamento realizado contra grupos revolucionários de ação armada, o órgão intensificou suas atividades de repressão, tais como prisões ilegais, invasão de domicílio, censura postal, torturas e mortes.

O DEOPS foi fechado em 1983[*6] e a antiga estação foi desocupada pelas atividades do setor. O arquivo produzido pelo órgão foi transferido para a Polícia Federal até 1991, passando então à guarda da Secretaria de Estado da Cultura e cabendo ao Arquivo do Estado de São Paulo a tarefa de organizá-lo, preservá-lo e, posteriormente, disponibilizá-lo às pesquisas [*7]. A respeito do edifício, sua recuperação foi iniciada em meio ao processo mais amplo de revitalização do centro da cidade de São Paulo, sendo tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) em 1999. Por todo o período de atividade da polícia política no Prédio do DEOPS, o edifício ficou, entretanto, associado à repressão e às torturas praticadas em seu interior.

A concepção do Memorial da Resistência de São Paulo

Frente à atuação de ex-presos políticos, de familiares de mortos e de desaparecidos, de algumas organizações de Direitos Humanos e de instâncias governamentais junto ao Poder Público, a administração do antigo prédio do DEOPS foi transferida da Secretaria de Justiça para a Secretaria de Estado da Cultura em 1998, e a partir daí surgiram várias propostas com vistas a novos usos e significações para o edifício – como a instalação de uma escola de teatro ou de música. Depois de reiteradas tentativas de utilização, a Pinacoteca do Estado, atendendo às solicitações da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, desenvolveu um projeto com perspectivas museológicas para o Memorial da Liberdade – que, posteriormente, mudou de nome a contesto de ex-presos políticos que discordaram do uso do termo "liberdade" em associação às torturas e mortes ocorridas no interior do prédio, o qual passou a se chamar Memorial da Resistência de São Paulo, inaugurado em 24 de janeiro de 2009.

O projeto foi elaborado em 2007 por museólogos e historiadores, em parceria com educadores da Pinacoteca do Estado, apresentando o conceito gerador da exposição de longa duração e, também, o delineamento de seu programa museológico. Estruturado em ações de pesquisa, salvaguarda (documentação e conservação) e comunicação (exposição e ação educativa e cultural) patrimoniais, o Memorial é configurado a partir de (e por) seis linhas de ação: Centro de Referência, Coleta Regular de Testemunhos, Lugares da Memória, Exposição, Ação Educativa e Ação Cultural. Não era objetivo criar apenas uma exposição de longa duração, mas, sim, uma instituição voltada à pesquisa e à comunicação[*8] . O Memorial foi articulado em quatro módulos:

Edifício e suas memórias – apresentação dos usos e apropriações do edifício ao longo dos anos, bem como da complexa estrutura e funcionamento do DEOPS/SP;

Controle, Repressão e Resistência: o tempo político e a memória – articulação dos conceitos e das diferentes estratégias de controle e repressão através de documentos e iconografia do DEOPS/SP e das distintas formas de resistência operadas pelas diferentes organizações políticas de oposição ao regime. Expõem-se numa vitrina algumas publicações referenciais e uma maquete do espaço carcerário, construída a partir da memória de ex-presos políticos que estiveram no local;

Construção da memória: o cotidiano nas celas do DEOPS/SP – este espaço é composto pelas quatro celas remanescentes, corredor principal e corredor para banho de sol. Na cela 1, um vídeo apresenta documentos do DEOPS/SP sobre quatro presos políticos mortos em consequência das torturas sofridas e procura prestar uma homenagem aos outros milhares de presos, desaparecidos e mortos da ditadura. Já a cela 2 foi reconstituída conforme memórias de ex-presos políticos. Na cela 3 há um áudio com testemunhos sobre a luta por trás das grades e o cotidiano no DEOPS/SP. Por fim, a cela 4 oferece uma leitura da convivência entre os encarcerados. No corredor principal, um vídeo apresenta algumas manifestações políticas, artísticas e culturais ocorridas na cidade de São Paulo, além de uma referência à missa celebrada na prisão pelos frades dominicanos em 1969;

.Da carceragem ao Centro de Referência – terminais de consulta possibilitam ao visitante o acesso a banco de dados referenciais, a testemunhos de ex-presos políticos e a sites de instituições preservacionistas do Brasil e do exterior. Consta em uma vitrina objetos e documentos originais do DEOPS/SP.

No que diz respeito ao Programa de Ação Cultural, o Memorial procura desenvolver atividades para públicos com diferentes interesses: seminários acadêmicos, peças de teatro, mostras de filmes, lançamentos de livros e exposições temporárias. “Possibilitando reflexões sobre questões do passado recente e atuais, como as práticas da repressão e as ações dos grupos de resistência durante regimes autoritários e até mesmo democráticos, favorecendo o debate sobre a violação dos direitos humanos e o direito à memória e à verdade” [*9]. O Memorial procura frisar seu interesse de, por meio da ação educativa, elaborar projetos a partir do potencial presente no espaço carcerário remanescente, nas memórias de ex-presos políticos e na farta documentação iconográfica e textual apresentados em exposições de longa duração e nas temporárias[*10] . Destacando que, conjuntamente, encontram-se em funcionamento os projetos Encontros com Professores, Rodas de Conversa e as visitas educativas, também integradas ao Programa de Consciência Funcional, desenvolvido pelo Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca do Estado e voltado para a formação dos funcionários [*11]. Cabe sublinhar também as parcerias realizadas entre o Memorial da Resistência de São Paulo com o Núcleo de Preservação da Memória Política do Fórum de ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, com o Arquivo Público do Estado e com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, dentre outros organismos voltados à defesa dos direitos humanos.

O Estado e a iniciativa memorialista

No Brasil, a respeito dos caminhos para a efetividade da justiça transicional, há uma resistência em enfrentar a temática da responsabilização dos agentes que praticaram atos de lesa-humanidade durante a ditadura militar. Este respeito às normas internacionais de direitos humanos foi considerado como obstáculo à reconciliação nacional durante o processo inicial de transição política e, até o momento, nessa questão pouco se avançou quando comparada a outros casos latino-americanos. Roberta Baggio, conselheira da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, percebe nessa resistência uma característica de nossa cultura do esquecimento, cujo principal elemento é o fato da transição brasileira ser marcada “por uma compreensão restrita do significado de “anistia”, que não privilegiou o enfrentamento dos erros do passado [...]” [*12].

No contexto atual, em que as respostas judiciais indicam ainda uma forte tendência à impunidade [*13], a comunidade internacional vem pressionando o Estado brasileiro a cumprir suas obrigações de Estado democrático diante dos atos cometidos no último regime autoritário. Lembramos que, em dezembro de 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Di¬reitos Humanos (Corte IDH) pelos feitos na “Guerrilha do Araguaia”, a partir da qual foi estabelecida uma série de obrigações ao Estado brasileiro, como investigar e punir os responsáveis, realizar atos públicos de reconhecimento de sua responsabilidade sobre o fato e desenvolver iniciativas que buscassem informações sobre e caso e garantissem o acesso a elas. Neste sentido, acompanhamos nos últimos governos presidenciais uma tendência nas diretrizes políticas à valorização do direito à memória e à verdade. É por este caminho que se destaca no trabalho da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República a Diretriz 24 do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), que prevê iniciativas de preservação da memória histórica e de construção pública da verdade sobre períodos autoritários [*14].

O Memorial da Resistência de São Paulo insere-se neste quadro no qual a intenção memorialista parte, em princípio, da ação política do Estado, como nos apontam as palavras do Diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo e das coordenadoras do Memorial e de seu Programa de Ação Educativa: “O Memorial da Resistência de São Paulo nasceu da vontade política do Governo do Estado de São Paulo, por meio da sua Secretaria da Cultura, da reivindicação de cidadãos [...] e do trabalho de profissionais de diferentes disciplinas e especialidades [...]” [*15].

As ações governamentais em torno deste espaço não apenas permitem que o Estado brasileiro cumpra algumas de suas obrigações perante a comunidade internacional mas também, principalmente, apresentam o Memorial da Resistência de São Paulo como uma via para o tratamento de temas ligados ao direito à memória e à verdade, assim como para o debate sobre proteção e valorização dos direitos humanos. Seu norte é o desenvolvimento de atividades de ordem institucional e programas educativos que promovam noções de democracia e cidadania. “O processo educativo em direitos humanos é entendido como interdisciplinar e orientado para a percepção crítica da realidade, visando à apropriação de valores como ética, tolerância e respeito à dignidade intrínseca ao ser humano” [*16].

O Memorial da Resistência de São Paulo, nesta configuração, desenha-se como um espaço social que, ao buscar ampliar sua fronteira de atuação por meio de atividades educativas (teatro, oficinas, intervenções artísticas e exposições fotográficas e documentais) acaba por se constituir, também, como lugar de encontro para socializar memórias vividas. Por sua proposta de resgate das vítimas, manifestada, a princípio, na intenção de complementar suas coletâneas documentais com testemunhos e arquivos de história oral, por fim, engaja-se no processo de ressignificação do espaço carcerário, resultado do trabalho de memória dos ex-presos. A aproximação entre Instituição e testemunhas permitiu a reconstituição do espaço interno de celas e o recolhimento em áudio de testemunhos sobre a luta pela sobrevivência e o cotidiano no DEOPS/SP. Assim como a produção de uma maquete que permite a visualização, pelo visitante, do espaço prisional e a compreensão do funcionamento do DEOPS/SP enquanto polícia política no contexto de repressão da ditadura.

O destaque do projeto é que, percorrendo toda a sua extensão, percebe-se que a dinâmica do Memorial foi construída “invertendo a lógica do período da repressão. Agora o protagonismo é atribuído às memórias dos ex-presos e, a partir delas, a concepção de cada espaço valorizou a resistência como elemento de ligação entre o trágico passado aqui vivenciado e os novos tempos amparados por experiências democráticas”[*17] . A partir desse princípio, o Memorial da Resistência faz da memória do passado de repressão não um exercício unicamente individual, mas uma experiência coletiva no sentido de construir, a partir de uma vivência ou demanda histórica, uma identidade e ao atribuir às testemunhas não apenas um dever de memorar, mas em envolvê-los também no campo da política e da justiça.

Javier Ciurlizza, advogado participante da Comissão de Verdade e Reconciliação do Peru, afirma que “a descoberta da verdade em relação ao que aconteceu é a base da memória histórica dos países que tiveram períodos de atrocidades e arbitrariedade”[*18] . Damos atenção a essa afirmação ao entendermos que as políticas de valorização das vítimas e afetados pela ditadura nos governos recentes brasileiros têm associado o compromisso com a “verdade” como uma forma de ‘justiça como reconhecimento’ ou ‘justiça compensatória’, que restabelece o sentido de justiça outrora quebrado [*19] . Assim, nossa justiça de transição, ao afastar-se dos processos penais e do enfoque punitivo, preserva políticas de memória que valorizem a Comissão da Verdade e os atos memorialistas como peças centrais nos “processos de refundação histórica”. Em comunicação com esta via, é atribuída importância ao Memorial da Resistência de São Paulo ao “materializar” uma identidade do processo que em seu interior se quer descrever, constituir-se num instrumento educativo para as novas gerações e num espaço atual para o processo de reelaboração do passado, tanto pelos ex-presos políticos que se envolveram com o projeto quanto para o Estado, que entende cumprir às exigências de uma reparação ética e moral necessárias.

Considerações finais

As condições herdadas do período ditatorial dão forma aos processos de transição, influindo nas possibilidades das políticas públicas até o momento. Como analisa Alexandra Brito, se os militares conseguiram, ao fim de seus governos, estabilidade política com forte capacidade de negociação com a oposição, a nova democracia talvez seja caracterizada pelo continuísmo dos “partidos com antigas forças ditatoriais cosmeticamente renovadas”[*20] . Sabe-se que, no Brasil, a justiça de transição não avalia os processos penais de torturadores como alternativa para a efetivação de seus deveres enquanto estado democrático, priorizando as políticas reparatórias – de cunho material e simbólico. Portanto, não é coincidência que nossas políticas de memória sejam balizadas sob o termo “Direito à Memória e à Verdade”. Como dito anteriormente, nosso compromisso com a “verdade” norteia-se como uma forma de “justiça como reconhecimento” ou “justiça compensatória’”.

Foi fundamental, entretanto, que o Estado brasileiro declarasse, por suas políticas públicas recentes, reconhecer suas responsabilidades em assassinatos, desaparecimentos e torturas em prisões durante seus últimos governos militares. Mesmo marcado por significativas diferenças organizacionais e estruturais no processo de reparação às vítimas e à sociedade – quando comparado a outros Estados latino-americanos – não se nega a culpa pela perpetração de perseguições sistemáticas aos opositores políticos, com fins repressivos. A importância de tal iniciativa é que, como ressalta Hugo Vezzetti, “el tiempo de la memoria no si mide en años, se mide en generaciones; y las políticas de memória correspondientes deberían pensarse en términos semejantes”[*21] . Ou seja, quando se admite essa extensa temporalidade, necessita-se de um compromisso estatal sólido, pois caso contrário, o risco é de se ter importantes projetos de cunho reparatório configurados como meros objetos de barganha em questões políticas/eleitorais, abandoando-se o caráter de políticas públicas e do enraizamento dos compromissos democráticos. Redemocratizado, o Estado brasileiro assumiu o papel de promover, com ações públicas, o resgate da memória e da verdade mediado pela participação de distintas esferas de saber: órgãos políticos (em suas diferentes instâncias), setores sociais (chamados aqui de “empreendedores de memória”, com destaque para as testemunhas diretas e as vítimas) e diversos especialistas: historiadores, museólogos, pedagogos, psicólogos, etc. Tais envolvimentos darão a essas propostas o maior consenso possível dentro de uma sociedade que, como se sabe, não é homogênea. Mas em resumo, a diversidade participativa vislumbra a maior possibilidade de que o tema se converta numa temática permanente na agenda política das suas democracias.

Como se sabe, o processo de elaboração da memória está sempre em construção, sempre sendo contestado face às novas configurações sociais, às variações dos atores envolvidos nas visibilidades das políticas de memória no presente. Diante deste desafio, deve-se desprender certa atenção por parte destes projetos memorialistas, abraçados pelo Estado e os afetados diretos, na busca permanente pelo envolvimento de outros atores sociais e novos destinatários para suas propostas de representação deste passado, atualizando-os constantemente. Pois as políticas reparatórias devem considerar que a sociedade como um todo foi afetada pela ditadura e não somente o sujeito-vítima, evitando que a discussão recaia sobre os benefícios diretos e não sobre os sentidos destas políticas de reparação[*22] . Assim como avalia Hugo Vezzetti, “esa abertura hacia el futuro es el fundamento de una política de memoria, sin el cual las acciones sobre el pasado quedan reducidas a la expresión de grupos, a una fragmentación replegada y autorreferencial, rodeada de cierta indiferencia conformista que se sostiene en represantaciones estabelecidas [*23]. A atenção aos novos atores e a intenção de construir um espaço de conhecimentos e reflexões coletivas fazem destes memoriais lugares de debate sobre a importância dos direitos humanos (para o futuro), e as consequências em uma sociedade na qual os mesmos não são presentes (reflexos do passado recente). Assim, por um vínculo entre gerações, está parte das esperanças de perpetrar as políticas de memória sobre a ditadura, como já evidenciamos acima.

O Memorial da Resistência de São Paulo é aqui trabalhado como recurso fundamental para a efetividade das políticas de reparação simbólicas destinadas à coletividade, como veículos para a elaboração das memórias – caminho para a ressignificação do passado violento – bem como para a prevenção de práticas semelhantes no presente e no futuro. Baseia-se no propósito da produção de conhecimento e da preservação dos ideais dos direitos humanos, da cidadania e democracia. Concordamos, entretanto, que somente a construção de memoriais e monumentos não cumprem as exigências de uma reparação ética e moral por parte do Estado. E que, da mesma forma, a existência de medidas e políticas de memória e reparação não dizem respeito à sua qualidade e eficácia. A revelação da “verdade”, da desconstrução da “boa memória” proclamada pela história oficial e finalmente confrontada com as versões abrigadas nas políticas memorialistas, preenche uma necessidade social de confirmar oficialmente aquilo que foi, durante muito tempo, negado. Reintegra as vítimas na sociedade, através do reconhecimento do seu sofrimento e oferecendo uma forma de justiça distributiva ou social, contribuindo com recursos não convencionais para promover a memória coletiva.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Marcelo Mattos et al. O Memorial da Resistência de São Paulo e os desafios comunicacionais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010.
BAGGIO, Roberta Camineiro. A incompletude da transição política brasileira e seus reflexos na cultura jurídica contemporânea: ainda existem perseguidos políticos no Brasil. .Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010.
BAUER, Caroline Silveira. Um estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil-militares argentina e brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países. Tese (Doutorado)– Departamento de História: UFRS; Departament d´Història Contemporània: Universitat de Barcelona, 2011.
BRITO, Alexandra Barahona de. Justiça transicional e a política de memória: uma visão global. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 1, jan./jun. 2009.
CIURLIZZA, Javier. Entrevista à Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Entrevistador: Marcelo Torelly. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 1, jan./jun. 2009.
JELIN, Elizabeth; LANGLAND, Victoria. Las marcas territoriales como nexo entre pasado y presente. In: ______ (Comps.). Monumentos, memoriales y marcas territoriales0. Madrid; Buenos Aires: Siglo XXI, 2003. (Coleção Memorias de la represión).
MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Cultura. Governo do Estado de São Paulo. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2009.
MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Cultura. Governo do Estado de São Paulo. Material de divulgação. São Paulo, [s.d.]. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2012.
SOARES, Inês Virgínia Prado; QUINALHA, Renan. Lugares de memória no cenário brasileiro da justiça de transição. Revista Internacional de Direito e Cidadania, [s.l.], n. 10, p. 75-86, jun. 2011.
VEZZETTI, Hugo. Sobre la violencia revolucionaria. Buenos Aires: Siglo Veintiuno de Argentina Editores, 2009.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Topo
Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Os lineamentos gerais foram produzidos a partir de uma síntese das informações divulgadas pelos “espaços de memória” em seus sites. Para o Memorial da Resistência de São Paulo, cf. .
JELIN, Elizabeth; LANGLAND, Victoria. Las marcas territoriales como nexo entre pasado y presente. In: ______ (Comps.). Monumentos, memoriales y marcas territoriales. Madrid; Buenos Aires: Siglo XXI, 2003. (Coleção Memorias de la represión). p. 15.
Antes de ocupar o prédio no Largo, o DEOPS/SP possuiu outras sedes, todas na região central de São Paulo: Rua 7 de abril, nº 81, Rua dos Gusmões, nº 86 e Rua Visconde do Rio Branco, nº 280. (Cf. MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Cultura. Governo do Estado de São Paulo. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2009. p. 39).
A esta justiça compete a apuração de infrações penais por meio de “investigação preliminar” ou “investigação criminal”, formalizada através de inquéritos policiais.
Neste ano, suas atividades foram legalmente extintas pelo decreto n° 20.728, de 4 de marco de 1983, que “Extingue o Departamento de Ordem Política e Social e dá outras providências”.
Por se entender que o Acervo DEOPS é uma documentação de interesse social, deliberou-se sobre o livre acesso aos documentos produzidos pela polícia política de São Paulo ao público interessado. Através da Resolução nº 38, de 27 de dezembro de 1994, da Secretaria de Estado da Cultura, o uso das informações ficou sob a responsabilidade dos consulentes, por meio da assinatura de termo próprio. Normas de Acesso do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Disponível em: .
ARAÚJO, Marcelo Mattos et al. O Memorial da Resistência de São Paulo e os desafios comunicacionais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010. p. 234.
ARAÚJO, Marcelo Mattos et al. O Memorial da Resistência de São Paulo e os desafios comunicacionais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010. p. 238.
ARAÚJO, Marcelo Mattos et al. O Memorial da Resistência de São Paulo e os desafios comunicacionais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010. p. 239.
ARAÚJO, Marcelo Mattos et al. O Memorial da Resistência de São Paulo e os desafios comunicacionais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010.
BAGGIO, Roberta Camineiro. A incompletude da transição política brasileira e seus reflexos na cultura jurídica contemporânea: ainda existem perseguidos políticos no Brasil. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010. p. 249.
Em destaque para a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao alcance da anistia prevista na Lei n. 6.683/1979, que em abril de 2010 “entendeu que a lei fora elaborada e promulgada no contexto de um acordo político que viabilizara a redemocratização naquele momento histórico e que o judiciário não teria poderes para, passados mais de trinta anos, reinterpretar tal pacto com os ‘olhos de hoje’” (Cf. SOARES, Inês Virgínia Prado; QUINALHA, Renan. Lugares de memória no cenário brasileiro da justiça de transição. Revista Internacional de Direito e Cidadania, [s.l.], n. 10, p. 75-86, jun. 2011. p. 78.).
A decisão da Corte IDH reforça a necessidade de iniciativas que promovam a memória da resistência à ditadura militar, seja pelo resgate e sistematização das diversas formas de manifestação cultural, seja pela gestão de monumentos e locais que lembrem as atrocidades do passado e as violações de direitos humanos.
ARAÚJO, Marcelo Mattos et al. O Memorial da Resistência de São Paulo e os desafios comunicacionais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010. p. 231.
ARAÚJO, Marcelo Mattos et al. O Memorial da Resistência de São Paulo e os desafios comunicacionais. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 3, jan./jun. 2010. p. 239.
MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Cultura. Governo do Estado de São Paulo. Material de divulgação. São Paulo, [s.d.]. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2012.
CIURLIZZA, Javier. Entrevista à Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Entrevistador: Marcelo Torelly. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 1, jan./jun. 2009. p. 27.
BRITO, Alexandra Barahona de. Justiça transicional e a política de memória: uma visão global. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 1, jan./jun. 2009. p. 77.
BRITO, Alexandra Barahona de. Justiça transicional e a política de memória: uma visão global. Revista Anistia Política e Justiça de Transição: Ministério da Justiça, Brasília, n. 1, jan./jun. 2009. P. 66.
VEZZETTI, Hugo. Sobre la violencia revolucionaria. Buenos Aires: Siglo Veintiuno de Argentina Editores, 2009. p. 223.
BAUER, Caroline Silveira. Um estudo comparativo das práticas de desaparecimento nas ditaduras civil-militares argentina e brasileira e a elaboração de políticas de memória em ambos os países. Tese (Doutorado)– Departamento de História: UFRS; Departament d´Història Contemporània: Universitat de Barcelona, 2011. p. 219.
VEZZETTI, Hugo. Sobre la violencia revolucionaria. Buenos Aires: Siglo Veintiuno de Argentina Editores, 2009. p. 247.